Não é de menor importância a compreensão dos
escritos políticos de John Locke. Filósofo inglês do século
XVII, sua obra, extensa e tardia, tornou-se fundamental ao lançar as bases do
pensamento político liberal clássico. Juntamente com Adam Smith, John Locke é
considerado como um dos precursores da doutrina liberal e da defesa pelo
direito inalienável à propriedade.
Com efeito, suas principais obras no campo da
política dizem respeito ao Segundo
Tratado sobre o Governo Civil[1]
e a Carta sobre a Tolerância,[2] a primeira publicada
anonimamente ainda em 1681 e ao lado do Primeiro Tratado, e a segunda em seu
exílio na Holanda praticamente uma década antes (não se sabe o ano exato de sua
publicação). Nestas duas obras, e sobretudo na primeira, encontramos os
fundamentos de um pensamento político profícuo e que anima, até os dias de hoje,
a defesa intransigente pela liberdade.
Os
Dois Tratados Sobre o Governo Civil
No Segundo
Tratado, vemos a tentativa de se fundamentar um poder político que se
queira legítimo. Já no seu subtítulo vemos seu objeto de análise: a verdadeira
origem, extensão e objetivo do Governo Civil. No entanto, para compreendê-lo,
faz-se necessário remeter ao tratado anterior. Nele há, mais do que as
formulações de sua teoria política, as refutações da tese adversa que, dentre
outras, fornecia a sustentação teológica e política para o absolutismo
real. Em especial, destina-se o primeiro
tratado à crítica bem fundamentada a obra “O Patriarca”, de Robert Filmer[3], a qual consiste numa
tentativa teórica de legitimar, sobre balisas teológicas encadeadas de forma
dedutiva, a monarquia absoluta de direito divino como única forma de governo “aceitável”.
Num
contexto político e social imerso na prática política fundamentada nos textos
da Sagrada Escritura o ponto fundamental de qualquer teoria sobre o poder
político deveria ser capaz de fundamentar as razões que conferissem ao soberano
o poder – estendido até a atribuição de elaborar leis com penas de morte –
sobre seus súditos. As teses transcendentes do poder enfrentavam, pois, esta
particular dificuldade inicial.
Baseando-se na Verdade Revelada, o autor de O
Patriarca estabelecia o chamado “Primado de Adão”: no ato de criação do Homem,
Deus confiou a Adão um poder, domínio e jurisdição absolutos sobre todas as
demais criaturas, sobre a Terra e todos os seus descendentes. A ele, portanto, em razão de sua condição de
“Pai da Humanidade”, conferia-se o poder legítimo de legislar sobre os homens
conforme sua vontade e de dominar as criaturas sob seu primado; de possuir
todos os bens sobre a Terra e de dispor das posses de seus súditos e de ser,
ele mesmo, soberano e executor absoluto de todos as leis, divinas e humanas,
sobre todos as gerações futuras. Tal jurisdição é transmitida a seus
descendentes exclusivamente, detentores, portanto, do único poder legítimo
sobre a terra.
Em resposta, e com o intuito de demonstrar a
Filmer e seus seguidores que a única
fonte do direito, ou seja, do poder legítimo, consiste unicamente no
consentimento ou cooperação entre os homens, Locke principiará a erigir sua
teoria acerca das diferenças entre poder político, paterno e despótico a partir
de uma nova base – desta vez descendente – originária do poder político.
Debruçando-se igualmente sobre as Sagradas
Escrituras, dirá Locke que não há evidência manifesta alguma acerca da
delegação a Adão de uma jurisdição absoluta sobre todos os demais homens. Antes,
Deus fez todos os homens iguais em poder e legislatura, não tendo ninguém,
assim, mais jurisdição sobre os seres humanos e as coisas do que qualquer outro
indivíduo. Em decorrência deste fato,
também não há um só indivíduo que possua, por determinação divina, um direito
maior à propriedade de bens e riqueza, do que qualquer outro.
Por conseguinte, o poder exercido por um
monarca ou príncipe que se creia ilimitado reside, sem qualquer fundamentação
que o legitime, na força e na violência tirânicas que desrespeitam tanto as leis
divinas, quanto as leis naturais.
Excluído o Patriarcado de Adão do poder
político, este, entendido por Locke como a atribuição de elaborar leis com as
mais diferenciadas penas e de realizar a execução destes mesmos ordenamentos,
terá suas bases assentadas sobre a lei
natural, a determinação da vontade divina, cujo conteúdo expressa-se no
dever de cada indivíduo de se preservar a si e a toda humanidade.
De suas implicações, Locke extrai duas
consequências: em primeiro lugar, em frontal oposição ao sentido que o autor de
o Patriarca atribui ao termo “liberdade”, ele
a define como a capacidade que possui cada individuo de dispor, sem coerção de
terceiros, de suas posses, faculdades e si mesmo conforme pretenda sua razão.
Diferentemente, todavia, de Filmer, para quem a liberdade é concebida como a
isenção total de barreiras à faculdade volitiva, ele assevera ter a liberdade
seu campo de ação circunscrito pela lei natural, devendo a primeira, por isso,
prestar-lhe estrita observância.
E em segundo lugar, uma vez que é dever comum
de cada individuo preservar a si e proteger a humanidade, concede a lei natural
a disposição de ser cada um seu juiz e executor. Em resposta a qualquer delito
ou “ofensa”que represente uma transgressão a lei natural, poderão os homens,
sejam ou não as vítimas diretas deste ato, punir o agressor e reparar os danos
por ele eventualmente causados.
Por conseguinte, em essência e em estado de
natureza são todos os homens completamente livres e iguais. Não
há qualquer indivíduo que seja capaz de, salvo pelo uso da força e da violência,
exercer um poder desigual de domínio sobre as posses, liberdade e vida de
qualquer outro. Em adição, neste mesmo estado são também os homens detentores
do poder de aplicar a lei natural e de serem juízes sempre que houver um
litígio entre partes conflitantes.
Conceito
de Propriedade
Com efeito, dado que a
liberdade e a igualdade caracterizam a essência natural do homem e que a terra
foi concedida para o uso comum entre todos os membros da humanidade, a
propriedade necessitará ser fundamentada noutros termos. Para tanto, Locke irá remetê-la
ao trabalho.
Todos os bens, objetos que resultarem do
trabalho de um indivíduo constituir-se-ão sua propriedade. O trabalho, desta forma, desempenhará no
pensamento de Locke um papel, sobretudo, individualizante à medida em que é
através de sua ação que os homens imprimem aos frutos da natureza as marcas
distintas de sua personalidade. Por meio deste processo, todos os “produtos” da
natureza que sofrerem pelos mãos do homem uma ação consciente e direcionada de
transformação artificial de suas condições naturais em outro objeto mais
elaborado não serão mais considerados “propriedade de uso comum”. Isto porque,
através da atividade laboral, o indivíduo separa e retira o objeto ao qual
despendeu suas energias do grande mar de terras comuns e o torna seu, a cujo
uso e posse, portanto, apenas ele e aqueles a quem conceder permissão, terão
direito.
Deste modo confere o filósofo um estatuto
ontológico ao conceito de propriedade que, além de incluir a extensão corpórea
do sujeito produzida pelo trabalho, corresponde, em sua formulação final, à
liberdade e à vida.
Sociedade
Civil
A despeito do estado de amizade e cooperação
mútuas que caracterizam o estado de natureza, a instabilidade destas mesmas
relações, que decorre da parcialidade dos julgamentos e da impossibilidade de
uma fruição completa dos homens de seus direitos naturais, a criação de um
corpo político torna-se necessário. Os homens deixam tal Estado e incorrem na
fundação de um corpo político no momento em que consentem em abrir mão de uma
parte de sua liberdade natural, concedendo a determinados indivíduos eleitos
pela maioria o poder de elaborar leis e de executá-las em prol do bem comum,
isto é, da preservação da propriedade de cada um.
Sendo a sociedade civil em última instância,
portanto, a união de homens na qual cada membro tem a quem apelar em caso de
violação das leis naturais e positivas, a passagem deste estado de perfeita
liberdade e igualdade a um regime político pode ser interpretada como a institucionalização
dos direitos naturais: o objetivo último do corpo político consistirá na
conservação da vida, liberdade e propriedade de cada um de seus membros por
meio da efetivação de instrumentos de regulação e limitação do poder
legislativo, entendido como poder supremo, dentro das esferas às quais cabem a
sua livre operação.
Conclusão
Passados mais de 300 anos desde sua
publicação, os Dois Tratados ainda
são objeto de estudo e fornecem um dos principais sustentáculos para o chamado
Estado de Direito – toda a extensão dos valores da vida, propriedade e
liberdade, fundamentais como condição para se estabelecer quaisquer outros
direitos e como esfera de ação privada que confere à sociedade civil um espaço
de limitação ao poder público.
Doravante, regimes cujas
propostas idealizem a supressão da propriedade privada e da liberdade
individual em prol de um poder absoluto incorrem em massiva arbitrariedade,
tirania e limitação das esferas de “refúgio” privadas e deslegitimação
sucessiva do Estado de Direito, o qual, originário também na tradição liberal,
sugere a igualdade de todos os elementos do corpo político perante a lei. Tal
é, assim, a relevância dos escritos de John Locke para nosso tempo: a
propriedade como condição necessária básica para a constituição de uma
sociedade livre; a vida como valor supremo que não pode ser dissociada do
direito à posse dos meios de auto conservação; e a liberdade, como princípio
máximo que pressupõe a autonomia e ação livres de qualquer poder e restrição
que não encontram sustentação senão na mera força e na arbitrariedade.
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