"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

domingo, 23 de outubro de 2016

Tributo aos "Dois Tratados" de John Locke

 Não é de menor importância a compreensão dos escritos políticos de John Locke. Filósofo inglês do século XVII, sua obra, extensa e tardia, tornou-se fundamental ao lançar as bases do pensamento político liberal clássico. Juntamente com Adam Smith, John Locke é considerado como um dos precursores da doutrina liberal e da defesa pelo direito inalienável à propriedade.

 Com efeito, suas principais obras no campo da política dizem respeito ao Segundo Tratado sobre o Governo Civil[1] e a Carta sobre a Tolerância,[2] a primeira publicada anonimamente ainda em 1681 e ao lado do Primeiro Tratado, e a segunda em seu exílio na Holanda praticamente uma década antes (não se sabe o ano exato de sua publicação). Nestas duas obras, e sobretudo na primeira, encontramos os fundamentos de um pensamento político profícuo e que anima, até os dias de hoje, a defesa intransigente pela liberdade.

Os Dois Tratados Sobre o Governo Civil

 No Segundo Tratado, vemos a tentativa de se fundamentar um poder político que se queira legítimo. Já no seu subtítulo vemos seu objeto de análise: a verdadeira origem, extensão e objetivo do Governo Civil. No entanto, para compreendê-lo, faz-se necessário remeter ao tratado anterior. Nele há, mais do que as formulações de sua teoria política, as refutações da tese adversa que, dentre outras, fornecia a sustentação teológica e política para o absolutismo real.  Em especial, destina-se o primeiro tratado à crítica bem fundamentada a obra “O Patriarca”, de Robert Filmer[3], a qual consiste numa tentativa teórica de legitimar, sobre balisas teológicas encadeadas de forma dedutiva, a monarquia absoluta de direito divino como única forma de governo “aceitável”.

  Num contexto político e social imerso na prática política fundamentada nos textos da Sagrada Escritura o ponto fundamental de qualquer teoria sobre o poder político deveria ser capaz de fundamentar as razões que conferissem ao soberano o poder – estendido até a atribuição de elaborar leis com penas de morte – sobre seus súditos. As teses transcendentes do poder enfrentavam, pois, esta particular dificuldade inicial.

 Baseando-se na Verdade Revelada, o autor de O Patriarca estabelecia o chamado “Primado de Adão”: no ato de criação do Homem, Deus confiou a Adão um poder, domínio e jurisdição absolutos sobre todas as demais criaturas, sobre a Terra e todos os seus descendentes.   A ele, portanto, em razão de sua condição de “Pai da Humanidade”, conferia-se o poder legítimo de legislar sobre os homens conforme sua vontade e de dominar as criaturas sob seu primado; de possuir todos os bens sobre a Terra e de dispor das posses de seus súditos e de ser, ele mesmo, soberano e executor absoluto de todos as leis, divinas e humanas, sobre todos as gerações futuras. Tal jurisdição é transmitida a seus descendentes exclusivamente, detentores, portanto, do único poder legítimo sobre a terra.

 Em resposta, e com o intuito de demonstrar a Filmer e seus seguidores que a única fonte do direito, ou seja, do poder legítimo, consiste unicamente no consentimento ou cooperação entre os homens, Locke principiará a erigir sua teoria acerca das diferenças entre poder político, paterno e despótico a partir de uma nova base – desta vez descendente – originária do poder político.

 Debruçando-se igualmente sobre as Sagradas Escrituras, dirá Locke que não há evidência manifesta alguma acerca da delegação a Adão de uma jurisdição absoluta sobre todos os demais homens. Antes, Deus fez todos os homens iguais em poder e legislatura, não tendo ninguém, assim, mais jurisdição sobre os seres humanos e as coisas do que qualquer outro indivíduo.  Em decorrência deste fato, também não há um só indivíduo que possua, por determinação divina, um direito maior à propriedade de bens e riqueza, do que qualquer outro.

 Por conseguinte, o poder exercido por um monarca ou príncipe que se creia ilimitado reside, sem qualquer fundamentação que o legitime, na força e na violência tirânicas que desrespeitam tanto as leis divinas, quanto as leis naturais.

 Excluído o Patriarcado de Adão do poder político, este, entendido por Locke como a atribuição de elaborar leis com as mais diferenciadas penas e de realizar a execução destes mesmos ordenamentos, terá suas bases assentadas sobre a lei natural, a determinação da vontade divina, cujo conteúdo expressa-se no dever de cada indivíduo de se preservar a si e a toda humanidade.

 De suas implicações, Locke extrai duas consequências: em primeiro lugar, em frontal oposição ao sentido que o autor de o Patriarca atribui ao termo “liberdade”, ele a define como a capacidade que possui cada individuo de dispor, sem coerção de terceiros, de suas posses, faculdades e si mesmo conforme pretenda sua razão. Diferentemente, todavia, de Filmer, para quem a liberdade é concebida como a isenção total de barreiras à faculdade volitiva, ele assevera ter a liberdade seu campo de ação circunscrito pela lei natural, devendo a primeira, por isso, prestar-lhe estrita observância.  

 E em segundo lugar, uma vez que é dever comum de cada individuo preservar a si e proteger a humanidade, concede a lei natural a disposição de ser cada um seu juiz e executor. Em resposta a qualquer delito ou “ofensa”que represente uma transgressão a lei natural, poderão os homens, sejam ou não as vítimas diretas deste ato, punir o agressor e reparar os danos por ele eventualmente causados.   

 Por conseguinte, em essência e em estado de natureza são todos os homens completamente livres e iguais. Não há qualquer indivíduo que seja capaz de, salvo pelo uso da força e da violência, exercer um poder desigual de domínio sobre as posses, liberdade e vida de qualquer outro. Em adição, neste mesmo estado são também os homens detentores do poder de aplicar a lei natural e de serem juízes sempre que houver um litígio entre partes conflitantes.  

Conceito de Propriedade

 Com efeito, dado que a liberdade e a igualdade caracterizam a essência natural do homem e que a terra foi concedida para o uso comum entre todos os membros da humanidade, a propriedade necessitará ser fundamentada noutros termos. Para tanto, Locke irá remetê-la ao trabalho.


 Todos os bens, objetos que resultarem do trabalho de um indivíduo constituir-se-ão sua propriedade.  O trabalho, desta forma, desempenhará no pensamento de Locke um papel, sobretudo, individualizante à medida em que é através de sua ação que os homens imprimem aos frutos da natureza as marcas distintas de sua personalidade. Por meio deste processo, todos os “produtos” da natureza que sofrerem pelos mãos do homem uma ação consciente e direcionada de transformação artificial de suas condições naturais em outro objeto mais elaborado não serão mais considerados “propriedade de uso comum”. Isto porque, através da atividade laboral, o indivíduo separa e retira o objeto ao qual despendeu suas energias do grande mar de terras comuns e o torna seu, a cujo uso e posse, portanto, apenas ele e aqueles a quem conceder permissão, terão direito.

 Deste modo confere o filósofo um estatuto ontológico ao conceito de propriedade que, além de incluir a extensão corpórea do sujeito produzida pelo trabalho, corresponde, em sua formulação final, à liberdade e à vida.

Sociedade Civil

 A despeito do estado de amizade e cooperação mútuas que caracterizam o estado de natureza, a instabilidade destas mesmas relações, que decorre da parcialidade dos julgamentos e da impossibilidade de uma fruição completa dos homens de seus direitos naturais, a criação de um corpo político torna-se necessário. Os homens deixam tal Estado e incorrem na fundação de um corpo político no momento em que consentem em abrir mão de uma parte de sua liberdade natural, concedendo a determinados indivíduos eleitos pela maioria o poder de elaborar leis e de executá-las em prol do bem comum, isto é, da preservação da propriedade de cada um.

 Sendo a sociedade civil em última instância, portanto, a união de homens na qual cada membro tem a quem apelar em caso de violação das leis naturais e positivas, a passagem deste estado de perfeita liberdade e igualdade a um regime político pode ser interpretada como a institucionalização dos direitos naturais: o objetivo último do corpo político consistirá na conservação da vida, liberdade e propriedade de cada um de seus membros por meio da efetivação de instrumentos de regulação e limitação do poder legislativo, entendido como poder supremo, dentro das esferas às quais cabem a sua livre operação.

Conclusão

 Passados mais de 300 anos desde sua publicação, os Dois Tratados ainda são objeto de estudo e fornecem um dos principais sustentáculos para o chamado Estado de Direito – toda a extensão dos valores da vida, propriedade e liberdade, fundamentais como condição para se estabelecer quaisquer outros direitos e como esfera de ação privada que confere à sociedade civil um espaço de limitação ao poder público.

 Doravante, regimes cujas propostas idealizem a supressão da propriedade privada e da liberdade individual em prol de um poder absoluto incorrem em massiva arbitrariedade, tirania e limitação das esferas de “refúgio” privadas e deslegitimação sucessiva do Estado de Direito, o qual, originário também na tradição liberal, sugere a igualdade de todos os elementos do corpo político perante a lei. Tal é, assim, a relevância dos escritos de John Locke para nosso tempo: a propriedade como condição necessária básica para a constituição de uma sociedade livre; a vida como valor supremo que não pode ser dissociada do direito à posse dos meios de auto conservação; e a liberdade, como princípio máximo que pressupõe a autonomia e ação livres de qualquer poder e restrição que não encontram sustentação senão na mera força e na arbitrariedade.




[1] https://direitasja.files.wordpress.com/2012/04/dois-tratados-sobre-o-governo.pdf
[2] http://dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/edh_locke_carta_tolerancia.pdf
[3] http://www.constitution.org/eng/patriarcha.htm

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