"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A Metrópole ou a Tragédia Brasileira




 
Diante da crise que estamos enfrentando, uma certeza parecemos ter: apesar da magnitude do déficit orçamentário e dos problemas econômicos que lhe estão associados, as causas desta vultuosa instabilidade são bem antigas e conhecidas do público brasileiro.

 Desde os inícios da época colonial, a Coroa Portuguesa tratou de erigir uma máquina burocrática civilizatória em detrimento dos costumes e tradições locais. As práticas de colonização sem dúvida trouxeram aos habitantes locais novidades e benesses do velho mundo, mas findaram, sobretudo, por constituir uma cultura nefasta que perdura até os dias atuais, cuja definição inclui termos notórios como o patrimonialismo, espólio e autoritarismo.

 Não é difícil compreender no que consiste, nem como por quais meios esta cultura ainda está bem viva no nosso meio. Todo o Estado da época, que mais tarde viria a tornar-se independente – sem perder, contudo, suas principais características – fora concebido como um poderoso instrumento de confisco das riquezas produzidas pelas comunidades locais. Riquezas cujo uso destinava-se à posse exclusiva de um estamento político português que enxergava nas relações de clientelismo o poder político de atrair novas adesões à Metrópole além-mar. As antigas prebendas e honrarias concedidas aos corajosos homens dispostos a servir aos interesses da Coroa, mesmo antes que qualquer sociedade local houvesse originado leis harmonizadas a sua própria cultura e história, já evidenciavam os modos pouco honestos de exclusão de rivais e consolidação espúria de alianças que dominariam a vida política até os dias de hoje. Em poucas palavras, a utilização dos aparatos burocráticos para benefício e enriquecimento próprio em detrimento da sociedade civil, aquele patrimonialismo antigo, apenas se intensificou conforme os anos avançavam rumo aos tempos atuais.

 Com é dito em um artigo formidável (http://theglobalp.com.br/os-audios-de-lula-e-sergio-machado-a-crise-do-antigo-regime-brasileiro/), o autoritarismo é a outra face da moeda deste sistema tirânico beneficiador de pequenas elites poderosas. A tentativa de moldar a sociedade civil, seus indivíduos e as comunidades que lhe compunham, segundo seus próprios interesses e planos prévios não nos legou somente uma grave crise de representatividade, um sentimento generalizado de que não há, na numerosa classe política, um só magistrado com quem seja minimamente possível se identificar. Fez consolidar, também, a forte opressão sobre os movimentos populares, sobre ideias liberais e tentativas de reduzir o poder estatal em prol dos interesses legítimos que germinavam na própria conduta dos movimentos da sociedade civil.

 A esbórnia com os recursos do confisco está longe de ser, portanto, algo atípico. Os gastos crescentes da Coroa apenas foram substituídos em termos de sofisticação, quantidade e conjunto de beneficiários. As alianças, as ameaças aos inimigos, o “cassetete da democracia” naqueles que ousam infringir o status quo também permaneceram. A Metrópole subsiste – e não é mais em terras além-mar. Subsiste às expensas da ação livre de muitos indivíduos, contra o empreendedorismo que ajusta as diversas atividades humanas e dá lugar ao novo, ao inesperado, ao inovador.
 
 Ir às ruas e protestar contra a absurda carga tributária é só um pequeno passo dentro de muitos. Na terra dos Tupiniquins, cabe acima de tudo esclarecer e iluminar-se: à redução do espólio deve seguir-se a negação por mais privilégios e políticas de interesses. A realidade da Metrópole é a tragédia, é o Leviatã brasileiro que tem sua última fortaleza no que restou dos conchavos e dos filhos do populismo. É por outro lado incoerência de certa militância que “morde e assopra”, que onera a todos e clama por tantos direitos quantos são possíveis de conceber. A nova política do novo governo Temer parece não ter nada de novo. Não dará a cada um mais liberdade ou autonomia. É só farsa e fingimento. E concluo com uma nova pergunta: como conquistar uma nova independência?

terça-feira, 7 de junho de 2016

A Secessão deveria ser um direito



 Houve na história do Brasil acontecimentos de um tipo tão singular que até hoje manifestam sentimentos indefiníveis e contraditórios nos espíritos daqueles que se debruçam sobre seus detalhes. Seja a Revolução Pernambucana, a Guerra de Canudos ou Guerra dos Farrapos, é difícil estabelecer uma posição definida acerca de seus respectivos desenlaces sem hesitar penosamente ante os aspectos de repressão centralizadora, por um lado, e identidade cultural regional, por outro.

 Fato é que movimentos separatistas e de independência política também permeiam os grandes manuais de história internacional: A guerra civil americana, a Batalha de Bannockburn e a incrível história de William Wallace, na Escócia; o IRI e seus ideias de independência na Irlanda no Norte e a luta pelo fim do Apartheid na África do Sul. Todos os exemplos – até os muitos que não foram citados – nos ajudam a entender e interpretar a longa história humana como um sucedâneo da aspiração de povos e etnias pela liberdade de organizar-se livremente frente a outros poderes tirânicos e despóticos.

 O advento da modernidade experimentou, como disse Hannah Arendt, um significado nunca antes visto para o termo revolução. A fundação de um novo corpo político, a experiência de uma nova liberdade tornou-se o significado premente de um fenômeno político extremamente recente que caracterizou praticamente todo o século XX.

 O que me dá ensejo a escrever este ensaio é a associação entre liberdade e separação que, arrisco dizer, encontro em grande parte dos movimentos políticos de independência. Com efeito, quase todos as guerras de independência africanas ou contextos conturbados de separação das colônias em relação às respectivas metrópoles observados na América e na Ásia partilham de um sentimento evidente: a violação dos costumes, das leis e liberdades de uma civilização local por exércitos e estados-nação claramente movidos por ideias expansionistas e de consolidação de poder econômico e político.

 Mas, quase num movimento de dedução deste princípio, é preciso chamar a atenção para outro fator que nos impulsiona – ou que pelo menos deveria – para uma consideração crítica acerca da própria democracia: a constante e progressiva perda de poder que subsiste em seu seio.  

 Não se trata da perda do poder do governante em relação aos governados, ou dos partidos políticos em relação aos eleitores. É justamente o contrário. Trata-se, antes, da perda do poder de cada indivíduo e, consequentemente a liberdade escolha individual, face ao funcionamento da democracia nos estados nacionais no século XXI.  

 Experienciamos hoje o agigantamento da centralização dos aparatos estatais, com novos instrumentos de controle criados a cada momento. Em praticamente todas as democracias do mundo ocidental, a burocracia cresceu considerável e proporcionalmente aos custos impostos a seus cidadãos para alimentar as pesadas máquinas federais que tentam organizar, centralmente, a vida em cada uma de suas subdivisões.

 Os antigos mitos democráticos de que “a democracia é a vontade do povo” ou de que nela “cada voto conta” perderam – se é que um dia o tiveram – substancialmente seu significado. Ter o direito, salvaguardado em uma constituição, de eleger um presidente ou governador, ou prefeito e mesmo um vereador a cada quatro anos de forma alguma nos protege da coerção que subsiste neste regime. O caso brasileiro é um forte exemplo desta tese, onde boa parte do que ganhamos com o fruto do nosso trabalho é confiscado de forma brutal e direcionado para inúmeros fins sem que possamos ao menos decidir onde, para quem ou o quê será utilizado. Por exemplo: de todas as ONG’s que recebem recursos públicos, você que me lê agora sabe para quais finalidades elas estão ali, se estas finalidades são do seu agrado, se valem o dinheiro que recebem ou se realmente existem? De todos os partidos políticos que são financiados por dinheiro estatal, você concorda com todas as ideologias que cada um defende? Em caso negativo, porque você os financia? O mesmo raciocínio é válido para praticamente tudo: cultura, universidades públicas, segurança pública, empresas estatais, entre outros.

 Em suma, muito mais do que se nos assemelha, nossa liberdade em relação à ação de terceiros e de grupos coletivos é exageradamente reduzida. Nos parece que progressivamente nos esforçamos para viver às custas dos demais. Comunidades locais formadas pela livre associação de seus membros também perdem poder e significado quando confrontadas aos poderes da federação. Boa parte das decisões que são tomadas por nossos políticos não precede nossa consulta e raramente influímos de fato nas resoluções que modelam o futuro do nosso país.

 O direito de secessão, desta forma, surge neste cenário como uma alternativa: se a descentralização do poder central em comunidades menores já produz um aumento considerável de autonomia e liberdade, o que nos impede de formar livremente um grupo independente, autônomo, que partilha um sentimento e conjunto de ideias em comum, que é muito mais próximo à realidade de cada membro, que não viola as liberdades individuais e a cujo poder, limitado, cada membro tem acesso de fato sem ameaçar a perda ou redução da efetiva capacidade de escolha dos demais?    

 Na Constituição de 1988, diz-se que a União é formada indissoluvelmente por cada Estado e território. Mas qual o sentido de limitar o próprio direito da escolha livre de cada cidadão? Nos deveria ser facultado também, numa sociedade livre, a escolha autônoma por viver sob o regime político ou tributário que mais nos agrada. Se não haja um só país que represente nossos ideias políticos e econômicos, que direito possuem nossos governantes de nos impedir de fundar uma nova confederação ou república?

 Ninguém outorgou a nossos governantes tamanho poder. A única legitimidade para que nossos mais íntimos valores e preferências sejam assim ofendidas e descartadas reside unicamente no poder bélico e nas Forças Armadas. Pensar a secessão como um direito – não no sentido de que um determinado governo deve prover a este direito – é também pensar, por fim, a possibilidade de algo novo, a possibilidade da liberdade e da política numa comunidade ou associação livres da tirania.

domingo, 5 de junho de 2016

E se o Projeto suíço de Renda Mínima fosse aplicado no Brasil?




  Neste domingo, os suíços foram ás urnas decidir o futuro de seu país em mais um plebiscito federal. Desta vez, a proposta foi em favor da aplicação de uma renda mínima mensal, sem necessidade de comprovação de vínculo empregatício, de 2500 francos para cidadãos adultos e cerca de 624 francos para as crianças. Novamente, como já ocorreu em outras oportunidades, os habitantes locais demonstraram uma enorme sobriedade para por abaixo outro projeto descabido que certamente não teria resultados positivos.

 Com efeito, a ideia, por si só, não deixa de ser atraente. Num momento em que estamos em uma grave crise econômica, um eventual cenário de aplicação garantida e geral de renda mínimo aparenta ser um ótimo remédio para todos os nossos problemas, e é provável que não sejam poucos aqueles que alimentam, ainda que timidamente, uma ideia semelhante. No entanto, longe de ser um paraíso, nesse contexto hipotético a recessão e seus sintomas apenas se agravariam.  

 Se concebêssemos, por exemplo, uma renda mensal de R$ 1.000,00 para cada cidadão brasileiro, independentemente de condições sociais, raça, idade e sexo, teríamos um gasto mensal – considerando o montante de 200 milhões de brasileiros, população atual segundo o último censo do IBGE de 2013 - aproximado de 200 bilhões de reais e um total, ao final de um ano, de 2,4 trilhões de reais. Ora, considerando, em valores arredondados para cima, o PIB de 2015, estimado em 5,9 trilhões de reais, esta cifra constituiria nada menos do que uma bela mordida de 40% das riquezas geradas nacionalmente.

 Num primeiro lançar de olhos, o primeiro obstáculo para que essa distribuição se realizasse viria com a elaboração dos métodos institucionais necessários para coloca-la em prática. Além de ser um empreendimento praticamente impossível do ponto de vista prático, a sua consequência imediata seria o agigantamento do aparato burocrático de administração, que já não é pequeno e exigiria um aumento na quantidade de impostos. Considerando a atual carga tributária, a 14ª maior em todo o globo, teríamos, novamente num período de doze meses, cerca de 80% do PIB convertido em impostos. E mesmo se considerarmos o corte de programas assistenciais que encontrariam suas contribuições contempladas nos R$ 1.000,00 dados a cada cidadão, a carga de tributos dificilmente se reduziria para menos de 70% do PIB.

 Num momento subsequente, observaríamos uma queda ainda maior do poder aquisitivo da população.  Com mais papel moeda em circulação e, consequentemente, com uma economia ainda mais inflada, os preços de bens e serviços subiriam drasticamente, afetando toda a estrutura de produção no país. A desvalorização do real perante ao dólar se intensificaria; bens de capital, estimando que as tarifas de importação permanecessem as mesmas, se tornariam mais escassas e a indústria perderia ainda mais em produtividade. Seu poder de competição em nível internacional chegaria à zero, com os mesmos efeitos podendo ser observados nos setores agrícola e de serviços, onde, no primeiro, a subida de preços dos insumos importados exerceria aqui o mesmo resultado em termos de competividade internacional e o aumento da oferta interna por commodities, decorrente da renda mínima, não tornaria mais acessíveis alimentos que já não o são e impediria o consumo generalizado de outros que são facilmente obtidos ; e, no segundo, com uma elevação tão drástica de tributos, micro e médias empresas certamente deixariam de existir, outros empreendimentos nem sairiam do papel e a concorrência responsável pela inovação e pela queda de preços se tornaria praticamente inexistente. Outros monopólios ou oligopólios fatalmente surgiriam, e as regulamentações em cada setor apenas auxiliariam na consolidação de serviços verdadeiramente ruins.

 Em pouco tempo, mesmo com um possível aumento inicial nos níveis de consumo que poderia aquecer o mercado de contratações, a evidente falta de mão-de-obra qualificada, aliada aos fatores acima mencionados, certamente tornaria tudo isto ainda mais insustentável. A taxa de desemprego voltaria a subir após redução inicial, as taxas de juros chegariam a um montante ainda mais alto e ao fim e ao cabo, outras medidas político-econômicas teriam que ser tomadas se se quisesse manter o projeto da renda mínima.
  
 Veríamos então uma participação ainda maior do estado na economia, com estatizações e financiamentos públicos de outros serviços, uma vez que estes se tornaram insustentáveis para a incipiente produção local. Para lutar contra a inflação, velhas medidas, como o congelamento de preços e salários e juros, seriam retomadas em conjunto com racionamentos em nível federal. O resultado não seria nada mais do que a escassez de produtos básicos nas prateleiras dos supermercados, a fome a miséria. E, mesmo que a renda mínima neste modelo fosse rebaixada para valores mais modestos, efeitos tão negativos não estariam descartados.
 
 Em suma, mesmo não podendo opinar sobre um país cujas realidades política, econômica e social desconheço inteiramente, arrisco dizer que o “Não” foi a decisão mais sábia tomada neste plebiscito. E que nossos políticos também se deem conta das consequências nefastas que muitos de seus projetos nos trariam já nos trazem quando colocados em ação.   

sábado, 4 de junho de 2016

As Duas Faces da Realidade USPiana


 “A USP está em greve, de novo?” – Sim, está. Novamente, a maior universidade da América Latina encontra-se paralisada em mais uma greve que, tudo indica, há de se estender por tempo indeterminado. Iniciada com a paralisação total dos funcionários da universidade no último dia 12 de maio, não levou muito tempo para que também os alunos e alguns professores aderissem ao movimento.

  Obviamente, não se trata de algo novo. Não raro greves, sem ou com esta mesma magnitude, tomam noticiários e são decretadas também em outras universidades públicas ou federais Brasil afora. Cumpre notar, no entanto, que todo este cenário seja, talvez, antes mais um sintoma de um quadro geral que tem se arrastado há vários anos do que o problema por excelência desse setor.  

 Desde os anos 1990 verdadeiras crises orçamentarias tem acometido boa parte das universidades públicas no Brasil, em especial no Estado de São Paulo. Em nossa década, estes números se tornaram ainda mais agravantes no que tange à Universidade de São Paulo, que opera desde setembro de 2015 com congelamento de 20% de seus gastos previstos. Atualmente, mais de 100% da receita obtida pela universidade com os Repasses do Tesouro do Estado é direcionada ao pagamento de salários e benefícios de seus servidores e também por isso suas próprias reservas financeiras tem sido utilizadas, desde 2014, para a quitação do rombo que é deixado a cada ano pelo déficit orçamentário.

 O culpado da vez é João Grandino Rodas, antecessor do atual reitor Marco Antonio Zago, o qual, segundo se afirma, teria alavancado em proporções desmedidas os gastos da universidade. Possíveis desvios ilícitos de receita também lhe são creditados, sem denúncia formal por enquanto, mas evidenciam mais um aspecto da falta de transparência e, consequentemente, da atual crise universitária para a qual endereço agora estas reflexões.

 Também não é de hoje que é saliente uma certa “injustiça” no funcionamento da instituição: numa universidade cujos recursos advém de um dos principais tributos sobre consumo do Estado (ICMS), a absoluta maioria de seu corpo estudantil é constituída, sobretudo, por alunos tidos brancos que não fizeram uso do ensino público durante prévia formação, enquanto o espólio nada generoso do estado que a financia não discrimina ou se restringe a parcelas específicas da população . O resultado, sem dúvida, dá-se com o aumento das desigualdades sociais e econômica observadas no Estado. As soluções elencadas para este problema não são, todavia, promissoras. Por um lado, as cotas raciais – refiro-me especificamente a elas em razão de não terem sido, até o momento, implementadas pela universidade em questão - padecem de um velho problema: em sua maioria modelos importados de outros países, não levam em consideração a confusão que se faz comumente entre cor e raça e a extrema dificuldade que consiste em, numa população cuja parte majoritária é afrodescendente, distinguir fatalmente e sem equívoco negros de brancos ou de indígenas.  Como diria o autor de As Raízes do Brasil, a miscigenação é um conceito histórico chave para se entender a realidade política e social brasileira. Por outro, as muitas conjeturas para substituição do vestibular por outra porta de entrada esbarram muitas vezes em obstáculos prévios ou extremismos. No primeiro caso, a sugerida implantação de um método americano de seleção de alunos recém-formados no ensino médio tampouco seria justa em virtude dos sérios problemas que atingem a educação básica. No segundo, a extinção do vestibular sem substituição por outro método coloca em xeque os recursos da universidade, que são escassos e com certeza não seriam capazes de suportar, no sentido de fornecer um serviço com requisitos mínimos de funcionamento, nem mesmo um ligeiro aumento do número total de alunos matriculados. Mesmo a alternativa de se cobrar um tipo de “mensalidade” sobre os alunos mais afortunados, talvez com o intuito de criar vagas específicas para os estratos mais desfavorecidos com a receita obtida, não escapa à chamada “dupla tributação”, fenômeno onde a pessoa tributada para a existência de determinado serviço ainda precisa, num segundo momento, pagar diretamente pela utilização do mesmo.

 A causa primordial para as greves dos últimos anos, entretanto, parece residir em ainda outro aspecto que não deve deixar de ser mencionado quando o assunto é USP.  Com efeito, ela tem sido frequentemente utilizada como instrumento de disputas político-partidárias exógenas, como celeiro de recrutamento de membros e militantes que, manobrados, agem e hasteiam bandeiras das mais diversas siglas partidárias. Obviamente, não quero dizer com isso que o movimento estudantil seja ilegítimo ou não deva existir. Nada há de mais arbitrário. O que se sobressai é antes o aparelhamento destes movimentos organizados como braços estendidos de legendas políticas que possuem finalidades distintas de uma universidade. Como já fiz notar, a falta de transparência nas contas universitárias é motivo suficiente para se desconfiar de esquemas gigantescos de desvio de recursos públicos, onde, nesta verdadeira festa da canalhice, quase “todo mundo deseja fazer uma boquinha”.

 Isto é mais claro quando se leva em consideração a ação do SINTUSP (Sindicato dos Trabalhadores da USP). Além de recair num problema mais geral da ausência de liberdade sindical e da contribuição obrigatória, cada vez mais se discute sobre a irrelevância, ou melhor, sobre os impactos negativos da ação de associações sindicais sobre os próprios funcionários e, no caso da USP, sobre toda a comunidade universitária. Não há qualquer tipo exigência à transparência dos recursos repassados e geridos por sindicatos brasileiros, nem tampouco estes são exemplos de representatividade no sentido lato do termo. Inclusive, a impressão que se tem é que a USP age como um refém do próprio SINTUSP, sem possuir meios de barganha ou de proteção contra a ação unilateral e muitas vezes autoritária deste último.


 E qual é, afinal, o diagnóstico que se tem da realidade USPiana? Em duas palavras: privilégio e ineficiência. A USP infelizmente é responsável por consolidar de forma autoritária, direta ou indiretamente, privilégios da elite econômica, de grupos partidários e de outros pequenos grupos emparelhados com funções partidárias implícitas. Como todo empreendimento público ferrenhamente protegido e concentrador de grandes fortunas, a universidade parece mais servir a outros interesses do que aqueles propriamente associados ao segmento do ensino.   E como quase todo empreendimento público, há mais gasto do que arrecadação. Os excessos de burocracia são também notáveis para este fator por encarecerem reformas e aquisição de novos materiais, geralmente comprados com valor acima do mercado. De forma análoga ao funcionamento da “coisa pública” no Brasil, nossas estruturas redistribuem a riqueza dos pobres para os mais abastados. O ensinamento que se tira de todo este cenário não pode ser senão que o desmonte e a precarização dessa universidade, e provavelmente de muitas outras públicas e federais, não resultam (pasmem!) da figura temível do espantalho do “neoliberalismo”, mas antes da própria insuficiência de modelos falidos de gestão e administração de recursos e direitos.     

quinta-feira, 2 de junho de 2016

A Moralidade do Feminismo






 Há três anos estava eu na PUC-SP, assistindo a uma partida de futsal em companhia de um grande amigo sírio ao qual, por curiosidade, questionei a respeito do que achava sobre o feminismo. Sua resposta foi a mais intrigante possível: a igualdade das mulheres perante os homens em todo o mundo é algo que não deveria encontrar opositores entre os entes racionais. Mas remendou: mas alguma coisa neste “feminismo” tem algo de irracional...

 Passado todo este tempo, nunca deixei de me questionar a respeito desse movimento, suas ideias, quando teria nascido e suas formas de ação.  Notei, evidentemente, que existiam muitos “movimentos” dentro desta cultura de luta feminista contra a opressão, velada ou implícita, dos homens e dos valores nomeadamente machistas que se encontravam difundidas na sociedade. Mas, fato curioso, aquela resposta final de meu amigo anos antes ainda verberava na minha memória, como se de fato alguma verdade estivesse contida ali. Sabia que muito estava por vir.

 Eis que muito recentemente uma reação inesperada tomou conta das pessoas nas redes sociais e nas mídias em todo o Brasil. O estupro coletivo de uma menina de 17 anos, perpetrado por 33 homens, provocou nos mais diversos grupos uma série de questionamentos, dúvidas, reprovação (mais ou menos) generalizada e uma necessidade de encontrar uma justificativa racional para algo tão abjeto como uma violência nestas dimensões. Alguns culpabilizaram a vítima e as escolhas que eventualmente tivesse feito; outros, com muito mais sensibilidade e acerto, condenavam a ação injustificável dos 33. Mas algo diferente aconteceu desta vez. Em pouquíssimo tempo começou a se apregoar uma ladainha enfadonha na qual se afirmava, ou assim parecia, que a culpa não só residia na sociedade como um todo, na famigerada “cultura do estupro” – nas entrelinhas, se originava pelo homem e como tal, cabia a todos eles (os homens) o envergonhar-se e o responsabilizar-se por todo este deletério estado de coisas.

 Pois bem. Peço licença aos leitores homens, aos leitores em conjunto e principalmente às leitoras que me leem. A todos em conjunto, porque não falarei de política ou de economia, temas que frequentemente trato aqui, embora esta questão não deixe de pertencer ao panteão dos assuntos humanos. Às leitoras e leitores homens porque, como não sei – e, sendo franco, tampouco importaria se soubesse – qual a visão de cada um a respeito, não do estupro em si, mas do feminismo, confesso que provavelmente não agradarei a todas e todos. Mas, convenhamos, num tema tão controverso como este, o conflito é muito mais esperado do que o acordo.

 A conveniência para um crime tão hediondo e abominável é ato absurdo e não é a isso que me refiro. A “igualdade sexual” de direitos e acesso a bens e serviços, a profissões e carreiras também tem razões óbvias para ser defendida. Não é a isso novamente que me refiro.  Antes, chamo a atenção para um caráter indelével que encontramos no feminismo: a existência, nele, de uma estratégia ou método ou “psicologismo” longe de ser novo, já bem antigo e já denunciado. “Todo homem é um potencial estuprador”, dizem muitos, com um domínio quase espetacular. Sem dúvida alguma, uma constituição reativa lhe dá vida, precedida principalmente por uma negação singular, por uma classificação nos piores e mais baixos termos. “O homem é mau, a cultura que o envolve e que de seu domínio nasceu não pode ser outra coisa que não má, machista, opressora. Os papeis e funções sociais constituídos historicamente nos oprimem” – dizem as feministas. “Representamos o que há de melhor para as mulheres, o que é bom e só pode lhes fazer bem”, afinal, eles, sua cultura, seus valores submetem, tornam violenta uma relação de existência que deveria ser a mais fraterna possível.

 A libertação das mulheres, por tudo isso e segundo elas, só pode vir através de uma única via.  O feminismo, segundo elas, há de ser o único bálsamo libertador das mulheres e da civilização masculinizada do ocidente, a anátema e solução para a estrutura de opressão na qual todos nascemos e somos criados. Porém, o mal-estar, a angústia partilhada por todos frente a este estado de coisas, é na verdade, o resultado da entronização, da naturalização da culpa que envergonha e faz de todos os homens e mulheres dissidentes potenciais e violentos vilões. “Sou culpado, minha consciência assim o diz, mesmo sem nada ter feito”.

 O feminismo se tornou uma moral, ressentida e tão opressora quanto as muitas “morais” que combatia. Em seu seio gesta-se sua contradição, está o oposto daquilo que advoga. Escravidão, sexismo, coerção, (ir)representatividade. E isso tudo é irracional.   

 Se pudesse voltar no tempo e reviver a cena descrita no inicio deste ensaio, apenas menearia a cabeça, com pesar partilhado, ao arremate de meu colega. Na ocasião, não lembro o que disse, mas é provável que o tenha questionado, sem entender sua resposta. Hoje, digo sem receio: o feminismo não é libertação; é algo, em certos termos, ultraconservador e extremamente moralista, por excelência coercitivo. Do que realmente necessitamos? Ora, precisamos de mais Nietzsche, direitos individuais mais sólidos e - claro – menos feminismo.