"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

domingo, 30 de outubro de 2016

Ana Julia Ribeiro e O Discurso Vazio


Como tinha de ser, um vídeo polêmico[1] de uma estudante secundarista da escola Senador Manuel Alencar Guimarães viralizou na rede num piscar de olhos. Com voz embargada, a menina de apenas 16 anos proclamou em alto e bom tom o que já suspeitávamos: o senso comum, a vacuidade de um discurso “politizado” que, ao mesmo tempo, se auto nomeia legítimo, legal e reserva a si todas as virtudes da luta política, excluindo do debate, como posições incompreensíveis e erradas, qualquer alternativa de pensamento.

 Desde o inicio de seu discurso, é fácil perceber os equívocos em que ela incorre. “É um insulto dizer que estamos sendo doutrinados”. Não, não é. Pode ser doloroso e mesmo grosseiro dizer que o ensino no Brasil está bem longe do ideal e padece de uma doutrinação estrutural. Mas é, infelizmente, verdade.

 Para constatá-la, basta observar boa parte dos materiais didáticos de história e geografia. Entre os mais vendidos, há visões para lá de distorcidas: zumbi dos palmares é um herói do povo negro sequestrado no continente africano que lutou bravamente contra a opressão da elite e pelo fim da escravização de seus compatriotas. Os índios viviam em paz e harmonia até a chegada dos portugueses. A coluna Prestes trouxe esperança aos famintos e miseráveis do nordeste brasileiro. A revolução de Castro e Che foi o melhor acontecimento da história cubana. Papo furado: zumbi, no quilombo dos palmares, possuía escravos[2]. Os índios eram extremamente violentos, faziam da guerra o modo de relações com boa parte das outras tribos[3]. A coluna Prestes foi pior do que o cangaço[4]. O socialismo foi a pior tragédia da história cubana[5].

 Em sequência, a estudante continua: “Para quem duvidar da legalidade e legitimidade, basta ver o Inciso 6 do artigo 16 da lei 8069”. Pois bem, o referido inciso pertence ao Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em 13 julho de 1990[6]. Nele, o inciso 6 do artigo 16 diz o seguinte: “[o direito à liberdade da criança e do adolescente compreende] participar da vida política na forma da lei.” Em primeiro lugar, por “forma da lei” deve-se entender que uma ocupação de espaço publico não referendada por todos, mas exatamente todos que compõem o corpo político e que viole o direito de ir e vir dos cidadãos é, no mínimo, ilegal - afinal resoluções de uma assembleia estudantil sem registro em cartório e sem escopo jurídico que fundamente sua atividade não tem poder algum sobre qualquer outro cidadão, incluindo aquele poder de força-lo ou fazê-lo deixar de fazer o que tem por interesse fazer. E mesmo que atendesse a tais condições, suas resoluções jamais poderiam sobrepor-se ao artigo 5º de nossa Constituição Federal[7] ou sobre a liberdade individual que é intrínseca ao individuo em razão de sua constituição moral.  

 Em segundo lugar, o ato de participar da vida política pode ser concretizado de maneiras tão variadas que chega a causar risos a ideia de que um projeto de ampla ocupação de escolas corresponda a algo como inteirar-se e participar com cidadania da vida política. Esta, entendida como cidadania, pressupõe um espaço público no qual todos, a despeito de suas diferenças, encontram-se como iguais e discutem, cada um com os mesmos direitos, os aspectos necessários para a manutenção das liberdades e para a conservação das melhores instituições que protegem e dão ânimo a uma comunidade. Ora, o simples fato de se ocupar um determinado local já põe abaixo qualquer respeito pela condição e pelas funções de outrem. É um ato eminentemente autoritário e que divide todo o corpo entre o “nós” que estabelecemos uma assembleia, expulsando aqueles que lá residiam suas funções, e o “eles”, que, do lado de fora, os acompanham como seres apolíticos.

 “Nosso movimento é apartidário”. Bem, isto é realmente, para dizer o mínimo, MUITO duvidoso. No Paraná, boa parte das escolas ocupadas recebe apoio de entidades como A Associação dos Professores do Paraná[8], em cuja página há menção clara de apoio ao grupo por parte de outras entidades sindicais como a CUT e o MST[9]. Não causa surpresa o alinhamento de boa parte das reivindicações dos estudantes que ocupam escolas com as pautas de muitos sindicatos e grupos políticos do Brasil[10]. Também não se pode dizer que estas ocupações e suas lideranças sejam afeitas ao debate. Não apenas os pais e muitos adultos e estudantes contrários ás ocupações foram muitas vezes impedidos de entrar nas escolas[11] – fato que não justifica, é claro, o uso da violência contra estudantes que realizam as ocupações -, como grupos com visões contrárias tiveram seu acesso ás assembleias impedido e seus membros hostilizados[12][13].

 “Como representantes do Estado, os senhores estão com as mãos sujas de sangue”. De fato, o Estado pode e deve ser responsabilizado por muitas tragédias sociais e econômicas nesse país. No entanto, se há alguém responsável pela morte do jovem Lucas, este alguém não é um parlamentar. Muitos foram os fatores que influíram no assassinato: o uso de entorpecentes, a ausência de adultos, a própria ocupação. Ainda assim, o verdadeiro infrator não deixa de ser aquele que se valeu da navalha. E a questão torna-se ainda mais espinhosa para a estudante quando menciona: “De acordo com o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], a responsabilidade cabe à família, à sociedade e ao Estado”. Bem, sendo seu movimento uma parte – movimentada, iluminada pelas virtudes da cidadania – importante da sociedade, creio que a ela também deve ser reservado um punhado desta sagrada prestação de contas.

 Por fim, “representamos os estudantes” não deixa de ser outro aforismo desajeitado e cheio da mesma vacuidade ilusória. Quais estudantes? Quantos? Onde? Em verdade, o que realmente ocorre é que boa parte dos estudantes secundaristas de cidades onde escolas estão ocupadas colocam-se contra às ocupações[14] [15]. Não vejo como isto, esta posição de desacordo pode representar a livre anuência ou consentimento a um movimento como a da jovem Ana Julia. È incrível inclusive como seu discurso parece desconsiderar a existência de movimentos contrários às ocupações, como o Curitiba contra a Corrupção e o Patriotas.

 Em suma, seu discurso, precedido de muita coragem, mas, que sem conteúdo torna-se estupidez, não é nada novo no cenário da militância política brasileira. Repete lugares-comuns e se baseia de muitas frases de efeito, sem contudo nada trazer de verdadeiro ao debate.  





[1] https://www.youtube.com/watch?v=oY7DMbZ8B9Y
[2] http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/05/13/zumbi-era-um-lider-autoritario-e-tinha-escravos-veja-as-polemicas-sobre-a-escravidao-no-brasil.htm
[3] http://super.abril.com.br/blogs/historia-sem-fim/quem-mais-matou-indios-foram-os-proprios-indios/
[4] http://mundoestranho.abril.com.br/historia/o-que-foi-a-coluna-prestes/
[5] http://oensaistapolitico.blogspot.com.br/2016/10/sim-cuba-e-uma-ditadura-em-todos-os.html
[6] http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei8069_02.pdf
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[8] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/10/1827500-sindicatos-partidos-e-mbl-inflamam-tensao-em-ocupacao-de-escolas-no-pr.shtml
[9] http://appsindicato.org.br/
[10] https://pcb.org.br/portal2/12400
[11] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/10/1826273-protesto-em-escola-ocupada-do-parana-tem-tensao-apitaco-e-xingamentos.shtml
[12] https://www.youtube.com/watch?v=DxkcfLSP21M
[13] https://www.youtube.com/watch?v=ZLuY8GUPXK0
[14] http://paranaportal.uol.com.br/curitiba/curitiba-tera-manifestacao-contra-ocupacao-nas-escolas/
[15] http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2016/10/pais-e-alunos-reivindicam-contra-ocupacoes-de-escolas-em-uberlandia.html

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