Desde o inicio de seu discurso, é fácil perceber
os equívocos em que ela incorre. “É um
insulto dizer que estamos sendo doutrinados”. Não, não é. Pode ser doloroso
e mesmo grosseiro dizer que o ensino no Brasil está bem longe do ideal e padece
de uma doutrinação estrutural. Mas é, infelizmente, verdade.
Para constatá-la, basta observar boa parte dos
materiais didáticos de história e geografia. Entre os mais vendidos, há visões
para lá de distorcidas: zumbi dos palmares é um herói do povo negro sequestrado
no continente africano que lutou bravamente contra a opressão da elite e pelo
fim da escravização de seus compatriotas. Os índios viviam em paz e harmonia
até a chegada dos portugueses. A coluna Prestes trouxe esperança aos famintos e
miseráveis do nordeste brasileiro. A revolução de Castro e Che foi o melhor acontecimento
da história cubana. Papo furado: zumbi, no quilombo dos palmares, possuía
escravos[2]. Os índios eram
extremamente violentos, faziam da guerra o modo de relações com boa parte das
outras tribos[3].
A coluna Prestes foi pior do que o cangaço[4]. O socialismo foi a pior
tragédia da história cubana[5].
Em sequência, a estudante
continua: “Para quem duvidar da legalidade
e legitimidade, basta ver o Inciso 6 do artigo 16 da lei 8069”. Pois bem, o
referido inciso pertence ao Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado em
13 julho de 1990[6].
Nele, o inciso 6 do artigo 16 diz o seguinte: “[o direito à liberdade da criança e do adolescente compreende]
participar da vida política na forma da lei.” Em primeiro lugar, por “forma
da lei” deve-se entender que uma ocupação de espaço publico não referendada por
todos, mas exatamente todos que compõem o corpo político e que viole o direito
de ir e vir dos cidadãos é, no mínimo, ilegal - afinal resoluções de uma
assembleia estudantil sem registro em cartório e sem escopo jurídico que
fundamente sua atividade não tem poder algum sobre qualquer outro cidadão,
incluindo aquele poder de força-lo ou fazê-lo deixar de fazer o que tem por
interesse fazer. E mesmo que atendesse a tais condições, suas resoluções jamais
poderiam sobrepor-se ao artigo 5º de nossa Constituição Federal[7] ou sobre a liberdade
individual que é intrínseca ao individuo em razão de sua constituição moral.
Em segundo lugar, o ato de participar da vida
política pode ser concretizado de maneiras tão variadas que chega a causar
risos a ideia de que um projeto de ampla ocupação de escolas corresponda a algo
como inteirar-se e participar com cidadania da vida política. Esta, entendida
como cidadania, pressupõe um espaço público no qual todos, a despeito de suas
diferenças, encontram-se como iguais e discutem, cada um com os mesmos
direitos, os aspectos necessários para a manutenção das liberdades e para a
conservação das melhores instituições que protegem e dão ânimo a uma
comunidade. Ora, o simples fato de se ocupar
um determinado local já põe abaixo qualquer respeito pela condição e pelas
funções de outrem. É um ato eminentemente autoritário e que divide todo o corpo
entre o “nós” que estabelecemos uma assembleia, expulsando aqueles que lá
residiam suas funções, e o “eles”, que, do lado de fora, os acompanham como
seres apolíticos.
“Nosso
movimento é apartidário”. Bem, isto é realmente, para dizer o mínimo, MUITO
duvidoso. No Paraná, boa parte das escolas ocupadas recebe apoio de entidades
como A Associação dos Professores do Paraná[8], em cuja página há menção
clara de apoio ao grupo por parte de outras entidades sindicais como a CUT e o
MST[9]. Não causa surpresa o
alinhamento de boa parte das reivindicações dos estudantes que ocupam escolas
com as pautas de muitos sindicatos e grupos políticos do Brasil[10]. Também não se pode dizer
que estas ocupações e suas lideranças sejam afeitas ao debate. Não apenas os
pais e muitos adultos e estudantes contrários ás ocupações foram muitas vezes
impedidos de entrar nas escolas[11] – fato que não justifica,
é claro, o uso da violência contra estudantes que realizam as ocupações -, como
grupos com visões contrárias tiveram seu acesso ás assembleias impedido e seus
membros hostilizados[12][13].
“Como
representantes do Estado, os senhores estão com as mãos sujas de sangue”.
De fato, o Estado pode e deve ser responsabilizado por muitas tragédias sociais
e econômicas nesse país. No entanto, se há alguém responsável pela morte do
jovem Lucas, este alguém não é um parlamentar. Muitos foram os fatores que
influíram no assassinato: o uso de entorpecentes, a ausência de adultos, a
própria ocupação. Ainda assim, o verdadeiro infrator não deixa de ser aquele
que se valeu da navalha. E a questão torna-se ainda mais espinhosa para a
estudante quando menciona: “De acordo com
o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], a responsabilidade cabe à
família, à sociedade e ao Estado”. Bem, sendo seu movimento uma parte –
movimentada, iluminada pelas virtudes da cidadania – importante da sociedade,
creio que a ela também deve ser reservado um punhado desta sagrada prestação de
contas.
Por fim, “representamos
os estudantes” não deixa de ser outro aforismo desajeitado e cheio da mesma
vacuidade ilusória. Quais estudantes? Quantos? Onde? Em verdade, o que
realmente ocorre é que boa parte dos estudantes secundaristas de cidades onde
escolas estão ocupadas colocam-se contra às ocupações[14] [15]. Não vejo como isto, esta
posição de desacordo pode representar a livre anuência ou consentimento a um
movimento como a da jovem Ana Julia. È incrível inclusive como seu discurso
parece desconsiderar a existência de movimentos contrários às ocupações, como o
Curitiba contra a Corrupção e o Patriotas.
Em suma, seu discurso, precedido de muita
coragem, mas, que sem conteúdo torna-se estupidez, não é nada novo no cenário
da militância política brasileira. Repete lugares-comuns e se baseia de muitas
frases de efeito, sem contudo nada trazer de verdadeiro ao debate.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=oY7DMbZ8B9Y
[2] http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/05/13/zumbi-era-um-lider-autoritario-e-tinha-escravos-veja-as-polemicas-sobre-a-escravidao-no-brasil.htm
[3] http://super.abril.com.br/blogs/historia-sem-fim/quem-mais-matou-indios-foram-os-proprios-indios/
[4] http://mundoestranho.abril.com.br/historia/o-que-foi-a-coluna-prestes/
[5] http://oensaistapolitico.blogspot.com.br/2016/10/sim-cuba-e-uma-ditadura-em-todos-os.html
[6] http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei8069_02.pdf
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[8] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/10/1827500-sindicatos-partidos-e-mbl-inflamam-tensao-em-ocupacao-de-escolas-no-pr.shtml
[9] http://appsindicato.org.br/
[10] https://pcb.org.br/portal2/12400
[11] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/10/1826273-protesto-em-escola-ocupada-do-parana-tem-tensao-apitaco-e-xingamentos.shtml
[12] https://www.youtube.com/watch?v=DxkcfLSP21M
[13] https://www.youtube.com/watch?v=ZLuY8GUPXK0
[14] http://paranaportal.uol.com.br/curitiba/curitiba-tera-manifestacao-contra-ocupacao-nas-escolas/
[15] http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/noticia/2016/10/pais-e-alunos-reivindicam-contra-ocupacoes-de-escolas-em-uberlandia.html
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