Antes
que possam me crucificar sob termos pejorativos, já adianto que
sou contra a desmilitarização do nosso efetivo policial ostensivo porque estou
cônscio – e é isto que pretendo demonstrar ao longo deste ensaio – de que isto
não só não resolverá o problema da segurança pública no país, como também é bem
provável que irá apenas piorá-lo. Mas como esta questão é por demais espinhosa,
é preciso de antemão fazer referência a todos os seus aspectos antes de abordarmos
o ponto central.
Como é fato sabido por todos, vivemos num dos
países mais violentos do mundo. De acordo com o último relatório publicado pelo
Estudo Global sobre Homicídios 2013, o Brasil aparece entre os 25 países mais
brutais[1]. Se isto já não fosse ruim
o suficiente, em 2016 tornou-se pior: segundo o Mapa da Violência de 2016, em
2014 obtivemos um índice nacional de quase 60 mil homicídios por arma de fogo,
o pior índice desde que se iniciou esta medição e que coloca o Brasil no topo
do ranking de países com maior número de assassinatos sob o critério de números
absolutos, 12º sob o critério de relação de homicídios a cada 100 mil
habitantes (índice de 29,1). A marca histórica apresentou uma alta de 21,9% em
comparação aos quase 50 mil óbitos ocorridos em 2003, primeiro ano que serviu
de base à pesquisa[2].
Tal índice, no entanto, não é homogêneo entre
os Estados da Federação. Em consulta ao Atlas da Violência 2016[3], no período entre 2004 e
2014, enquanto estados da Região Norte e Sudeste apresentaram queda no número
total de homicídios – sendo o Estado de São Paulo campeão neste quesito, com
uma queda de quase 53% -, todas as Uniões Federativas que apresentaram aumento
igual ou superior a 100% pertencem à região Nordeste. Se destacam nela o Estado
de Alagoas, que apresentou a maior taxa de homicídios, com 56 a cada 100 mil
habitantes, e a cidade de São Luís, com incríveis 90 mortes violentas a cada
100 mil habitantes. Tal fato chamou tanto a atenção da mídia, tendo sido
abordado pelo programa Profissão Repórter, da TV Globo[4].
Outro dado importantíssimo que deve ser citado
nesta reflexão é o índice de letalidade de nossas polícias. Se considerarmos o
mesmo ano de 2014, a ação policial, civil e militar, foi responsável pela morte
de 3.022 pessoas no país, um aumento considerável principalmente nos Estados de
São Paulo e Rio de Janeiro em relação ao ano anterior, com 57% e 40%
respectivamente[5].
Parte deste problema, nos termos do vice-presidente do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima[6], se deve á preparação e ao
planejamento equivocado das políticas de combate à violência.
Apesar de metade destes tipos de homicídio
terem se concentrado nos dois Estados mencionados, há dois pontos associados a
este quesito que devem ser levantados. Novamente segundo o Atlas da Violência
2016[7], há uma diferença drástica
na notificação de intervenções legais no país. Segundo o Sistema de Informações
sobre Mortalidade (SIM), que fornece os registros mais confiáveis sobre as
mortes intencionais, em 2014 teriam ocorrido apenas 681 homicídios por
policiais, ao passo que os registros do Anuário Brasileiro de Segurança Pública
apontam para um total de 3.009 mortes causadas pelos mesmos efetivos, das quais
2.669 foram resultados por policiais em serviço. Em são Paulo, por exemplo,
enquanto sob a primeira plataforma foram registrados 225 homicídios, pela
segunda foram notabilizadas, por sua vez, incríveis 965 mortes.
Uma das causas para a falta de confiabilidade
nestes dados pode ser atribuída, nos termos do sociólogo e jornalista José Maria
e Silva[8], à Resolução nº 8 da
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, de dezembro de
2012, a qual estabelece que, na ocorrência da morte de um civil em um confronto
com a polícia, a expressão até então utilizada, “resistência seguida de morte”,
deve ser substituída, nos autos dos registros oficiais, para “homicídio
decorrente da intervenção policial”. Segundo o mesmo, esta nova descrição, que
representa uma sutil inversão de valores, pode acarretar, entre outras coisas,
numa inflação dos dados futuramente compilados.
O outro ponto é, por um lado, o impacto das
mortes por policiais no número total de homicídios por armas de fogo no país e
o número de mortes destes profissionais por ano no Brasil. Sabendo que tivemos
em média de 48 a 50 mil homicídios por ano entre 2004 e 2014[9], a porcentagem do dotal de
assassinatos deste período que compreende a morte por policiais não ultrapassa
o patamar de 4%: no mesmo período mencionado, considerando os dados
apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de mortes
em decorrência da ação policial foi de, exatamente, 20.418[10]. Já no que tange ao
numero de policiais mortos, só em 2012 houve o assassinato de um policial em
solo nacional a cada 32 horas[11]. Dois anos depois, o
número de mortes, que previamente não ultrapassava a casa dos 300 homicídios,
alcançou o nada modesto índice de 398 profissionais mortos, um dos mais altos
do mundo[12].
É evidente que uma guerra urbana entre
policiais e facções criminosas corrobora para estes trágicos números. É indubitável,
também, que não são raros os casos em que abordagens policiais desumanas
refletem a disparidade entre o tipo de treinamento oferecido aos oficiais e
soldados da Polícia Militar e o contexto em que as ações ostensivas estão
inseridas. Contudo, num país onde aproximadamente 48% das armas de fogo são
ilegais[13], não é difícil imaginar
que boa parte dela se encontra nas mãos de criminosos que dela fazem um uso
absolutamente ofensivo. Ainda mais, conforme reportagem da revista Isto É[14], facções criminosas como
Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital possuem poder bélico muito
superior não somente em relação às policias civil e militar, como também em
relação ao próprio exército brasileiro. Estima-se, por exemplo, conforme dados
da mesma reportagem, que 1 milhão de armas circulam de forma ilegal entre os
“donos do tráfico” na cidade do Rio de Janeiro, sendo que, até janeiro deste
ano, somente no Complexo do Alemão, 185 granadas, 145 fuzis e metralhadoras,
105 revolveres e pistolas e 2 bazucas foram apreendidas em operações policiais.
Em termos de desmilitarização da Polícia
Militar, a disparidade de poder de fogo ganha outros contornos quando
analisamos a formação e treinamento de ambas as polícias. De acordo com estudo
do Fórum de Segurança, realizado em 2013, a formação de policiais no Brasil é
defasada e concluída em um período, no total, 4 meses menor do que o ideal[15]. E além de boa parte
destes cursos de formação não oferecem aulas de resolução de conflitos ou
sociologia – quase todas as matérias referem-se ao estudo do Direito e da
Dignidade da Pessoa Humana-, há o agravante da falta de treinamento com armas
letais. Segundo o Instituto Defesa[16], a principal limitação ao
treinamento prático das polícias com o uso de armas de fogo é o preço
exorbitante delas e da própria munição. Em razão do monopólio da produção e
comercialização de munições no país, encabeçado pela Companhia Brasileira de
Cartuchos (CBC), as munições mais comumente utilizadas pelo efetivo policial
são adquiridas por preços quase quatro vezes maior do que o praticado em outros
países. A alternativa da importação também não se mostra viável: esse processo,
tutelado pelas Forças Armadas, é custoso, burocrático, e, quando aprovado,
tende a encarecer em até 150% os bens adquiridos. Com a dificuldade de
custeamento da munição pelo poder público, surgem casos em que policiais passam
até 10 anos sem praticar tiro[17]. No caso da formação de
policiais civis, os cursos iniciais de tiro possuem a duração insuficiente de
20 horas; finalizado o mal preparo, boa parte deles jamais passa por
reciclagem.
Tudo isto ajuda a explicar as altas taxas de
letalidade policial que possuímos no país. Afinal, bons profissionais e
policias especializadas mundo afora treinam com regularidade. Mas há ainda dois
sintomas da falência da segurança do Brasil que podem ser citados como causa da
violência e que não deixariam de existir caso houvesse um processo de
desmilitarização. O primeiro deles refere-se à impunidade. Hoje, no Brasil, no
máximo apenas 8% dos homicídios são investigados e solucionados – atribuições
que não pertencem à polícia militar - com as consequentes punições dos
envolvidos[18].
Boa parte da ineficiência da polícia investigativa deve-se à escassez de
equipamentos, a falta de preparo e especialização de muitos profissionais
envolvidos na investigação criminal e, evidentemente, o excesso de crimes que
assola a sociedade[19].
O
segundo sintoma, referente ao sistema prisional, é consequência direta da má
administração pública e de outras causas anteriores. Em dezembro de 2014, o
Brasil atingiu a triste marca de 622 mil encarcerados, tornando-se, assim, o
quarto colocado no ranking mundial do número absoluto da população carcerária, trigésimo
sexto no índice global de encarceramento (número de presos a cada 100 mil
habitantes)[20].
Além dos já conhecidos problemas de péssimas condições sanitárias e
superlotação, que conduzem à proliferação de doenças e ao aumento do ódio dos
encarcerados aos efetivos policiais, nosso sistema prisional também contribui
para a articulação de facções e grupos criminosos organizados. Corrupto, permite
que telefones celulares, armas, entorpecentes e dinheiro circulem quase que livremente
em muitos presídios. A aglomeração de presos numa única cela permitiu a
formação e o engrandecimento destes mesmos grupos[21]. O direito à visita
íntima, ampliada e assegurada como um direito a todo e qualquer preso,
independentemente da infração cometida, tornou-se um meio recorrente para a
transmissão de recados e informações entre o preso membro de uma facção e o mundo
exterior[22].
A falha no isolamento dos grandes chefes do crime – há apenas 4 presídios
federais no Brasil, considerados de alta segurança – coroa grandemente esta
falência.
Outro aspecto que não poderia ser desprezado
diz respeito á corrupção. É óbvio que a corporação da Polícia Militar está
envolta por exemplos e mais exemplos de associação ao crime organizado, ao
tráfico de drogas, condutas e enriquecimento ilícitos. Não obstante, é
necessário lembrar que esta prática não somente não é privilégio da Polícia
Militar ou Civil – acusada de tantos escândalos de corrupção quanto a outra[23] -, como também assola
quase todos os serviços públicos brasileiros, incluindo a Justiça. Segundo
reportagem do O Estadão: “o relatório do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre as irregularidades pela magistratura
nas diferentes instâncias e braços especializados do Judiciário mostra que a
instituição pouco difere do executivo em matéria de apropriação indébita e
malversação de dinheiro público, de mordomia, nepotismo e fisiologismo, de
corrupção, enfim. As maracutaias são tantas que é praticamente impossível
identificar o tribunal com os problemas graves[24]”.
Com efeito, ainda que houvesse um processo
profundo de desmilitarização, a corrupção, originária na ação humana, tenderia
a subsistir em todos os membros notadamente corruptos que por ventura se vissem
atribuídos de uma nova função.
Por tudo isso, não hesito em afirmar que a
Polícia Militar, a despeito dos problemas que residem no seio da corporação –
apontadas por críticas sempre válidas – ainda representa o pouco que nos resta de
segurança e proteção face às arbitrariedades. Vivemos praticamente num cenário
de guerra, onde os profissionais dedicados ao combate ao crime vivem sob
constante ameaça, e as causas desta criminalidade desenfreada decorrem muito
mais da ineficiência na solução dos crimes, do alto custo de treinamento e
aquisição legal de material bélico e do tráfico de drogas - que a meu ver deveriam ter seu comércio e produção legalizados e desregulamentados. Muitas são as
reformas que devem ser feitas na esfera da segurança pública para que os
números apresentados sejam positivamente revertidos: a lei penal precisa ser reelaborada;
a execução da pena precisa vir acompanhada de um sistema penitenciário decente
capaz de conferir aplicabilidade à lei penal; e o estado democrático de direito
poderá apenas ser mantido se tivermos uma polícia bem equipada e bem treinada
para prevenir e reprimir a violência, quando necessário[25].
De volta ao Atlas[26], os Estados do Espírito
Santo e Paraná lograram deixar o status de unidades mais violentas do país a
partir da integração entre as polícias civil e militar, no fortalecimento do
trabalho de inteligência policial e científica, na prevenção ao crime e na
repressão qualificada com grandes investimentos realizados nos aparatos
ostensivos. Este foi o caminho adotado, por exemplo, pelo nosso vizinho Chile,
de condições históricas e socioeconômicas similares. Quiçá, também há de ser o
nosso[27].
[1] http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/os-25-paises-mais-violentos-do-mundo-brasil-e-o-18o
[2] http://oglobo.globo.com/brasil/mapa-da-violencia-2016-mostra-recorde-de-homicidios-no-brasil-18931627
[3] http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf
[4] http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/08/brasil-tem-65-homicidios-por-hora-aponta-mapa-da-violencia.html
[5] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1689789-mortes-por-policiais-no-pais-em-um-ano-equivalem-a-um-11-de-setembro.shtml
[6] Ibidem.
[7] http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf
[8] http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/brasil/o-perigo-e-a-falacia-da-desmilitarizacao-da-policia/
[9] http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=27412
[10] http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf
[11] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2012/10/1178051-brasil-tem-um-policial-assassinado-a-cada-32-horas.shtml
[12] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1689789-mortes-por-policiais-no-pais-em-um-ano-equivalem-a-um-11-de-setembro.shtml
[13] http://institutoavantebrasil.com.br/brasil-tem-16-milhoes-de-armas-476-sao-ilegais/
[14] http://istoe.com.br/113928_OS+SENHORES+DAS+ARMAS/
[15] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/08/1328443-em-metade-das-escolas-policial-e-formado-em-seis-meses.shtml
[16] http://www.defesa.org/municao-cara-limita-treino-da-policia/
[17] Ibidem.
[18] http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2014/04/maioria-dos-crimes-no-brasil-nao-chega-ser-solucionada-pela-policia.html
[19] http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2014/04/pericia-policial-nao-consegue-identificar-assassinos-no-brasil.html
[20]http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/cultura/brasil-e-no-minimo-o-34o-em-numero-de-presos-por-100-mil-mas-jornais-caem-na-maquiagem-do-relatorio-do-infopen/
[21] http://nova-criminologia.jusbrasil.com.br/noticias/2548061/solucoes-para-o-problema-da-seguranca-publica
[22] http://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil/brasil/o-perigo-e-a-falacia-da-desmilitarizacao-da-policia/
[23] https://flitparalisante.wordpress.com/2016/05/16/cresce-corrupcao-na-policia-civil-paulista/
[24] http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-corrupcao-na-justica-imp-,757037
[25] http://nova-criminologia.jusbrasil.com.br/noticias/2548061/solucoes-para-o-problema-da-seguranca-publica
[26] http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf
[27] http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2014/05/justica-do-chile-consegue-combater-violencia-com-seguranca-publica.html
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