"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Você sabe o que Fernando Holiday e Martin Luther King Jr. Têm em comum?

 Antes que possam desvelar as críticas contra mim, respondo de antemão: ambos não possuem praticamente quase nada em comum. Pode inclusive soar um exagero comparar duas figuras de contextos e histórias pessoais totalmente diferentes, e ainda mais se levarmos em conta a importante história de vida de Martin Luther King Jr.

 A verdade, no entanto, é que há de fato algo, ou melhor, uma concepção, que foi defendida pelo ativista americano e que é igualmente partilhada pelo vereador paulistano – e é justamente isto que torna a figura de Holiday tão inusitada a boa parte do movimento negro no Brasil.

 Como sabemos, Martin Luther King Jr. dedicou-se à luta pela igualdade civil, pela abolição do racismo de estado, incorporado e levado à suas últimas consequências nas famosas leis “Jim Crow”, promulgadas no estado da Virgínia ainda no ano de 1924. Por meio delas, todo um arcabouço jurídico destinado a impedir a miscigenação entre brancos e não-brancos, já em avanço em boa parte do sul do país, consolidou-se e tornou praticamente legítimo a segregação racial. As escolas, os banheiros, as bibliotecas, os museus, os cinemas, as igrejas, enfim, ônibus e outros meios de transporte coletivos foram divididos em unidades especiais destinadas a cada “raça”.

 A história deste racismo jurídico é antiga e estende-se até se perder nos séculos passados. O chamado “racismo científico” e a eugenia, que originaram as teorias da supremacia racial nórdica e ariana e a classificação hierárquica entre etnias e raças humanas, é um movimento que encontra antecessores ainda mais antigos. Sempre houve, no decorrer do saber humano, a tendência – e, obviamente, a necessidade - de se estabelecer métodos de análise e classificação dos fenômenos e dos seres vivos. Essa taxonomia moderna também acabou por se estender aos homens e mulheres como um todo.

 No campo da política e do direito, isto se sobressaiu com força, nos Estados Unidos, na Europa e nas colônias europeias ultramarinas, no século XIX. Nos EUA, em especial, a segregação racial parecia ter sofrido um duro e derradeiro golpe com a Guerra Civil e a abolição proclamada por Abraham Lincoln em 1865. Nos anos posteriores, durante a Reconstrução, as políticas antimiscigenação não tiveram vez nos estados que compunham a antiga Confederação. O cenário, porém, começaria a mudar a partir da década de 80, com o retorno dos governos democratas ao poder. É notório, por exemplo, o litígio Pace vs Alabama, de 1883, em que o negro Tony Pace e a branca Mary j. Cox foram condenados a dois anos de prisão, condenados por “fornicação” inter-racial.

 A reação contra as reformas por igualdade política e jurídica atingiu seu ponto culminante entre os anos de 1890 e 1908, quando diversos estados do sul aprovaram novas leis e constituições condicionando o direito de voto à alfabetização e à propriedade. Todo este movimento ganharia, portanto, uma formulação trágica com a já mencionada lei de 1924, também conhecida como “regra da gota de sangue única (one drop rule)”.


 Sob influência de Francis Galton e suas ideias eugênicas desenvolvidas na Sociedade de Antropologia Americana, as regras censitárias americanas que então procediam à divisão dos cidadãos entre brancos, mestiços (coloured) e negros sofreram uma radical mudança: passou-se a definir o “homem branco” como aquele que não possuía traço algum ou de qualquer sangue senão caucasiano; qualquer “gota de sangue” índio, africano ou não caucasiano em contato com o sangue puro branco e europeu, dentro das últimas 4 gerações antecessoras de qualquer indivíduo, já passava, deste modo, a classifica-lo, portanto, como um cidadão fora dos domínios da raça branca. A partir desta lei, que serviu como modelo para outras legislações estaduais, produziu-se o desaparecimento, quase por completo, do conceito de mestiço no uso da lei americana. Em seu lugar, algo muito mais brutal acendeu, a saber, a completa diferença e segregação entre brancos e não-brancos.

 A regra da gota de sangue seria extinta apenas em 1968, após uma longa luta pelos direitos civis dos negros segregados. Lider da Conferência da Liderança Cristã do Sul, da qual era também fundador, proclamou, a 28 de agosto de 1963, em frente ao memorial Lincoln, em Washington D.C., o seu mais famoso discurso. Nele, King não denuncia a insuficiência ou a suposta injustiça de uma Declaração de Independência, mas antes, a desconformidade das políticas então atuais com os valores fundadores da “nação” americana:

Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes[1]".

O ativista, então, continuou com o trecho mais famoso de seu discurso:

Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.

Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais.

Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade.

Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.

Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!

Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje![2]


 Tratava-se o discurso de King de uma afirmação da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, da afirmação de que diferenças forjadas por narrativas mal estruturadas sobre a ciência ou a religião jamais deveriam ser institucionalizadas e operar como um verdadeiro aparato jurídico-político. King punha abaixo qualquer ideia de racialismo, de diferenças raciais inerentes que pudessem ditar de antemão o destino de qualquer homem ou mulher. Colocava em xeque os fundamentos da desigualdade racial, então embasada na ideia da existência de raças ou etnias diferentes, que deveriam conviver separadas, mas “unidas” para o progresso da nação (separated, but equal). Tal luta nada mais seria senão a afirmação mor da igualdade civil e política acima de qualquer caracterização coletiva, e, ainda mais, a igualdade de todos como valor supremo, acima de direitos ou reivindicações coletivas de grupos que desejassem se sobrepor à igualdade da maioria.

  Em 1968, após o assassinato de King, em 04 de abril, a regra da gota única de sangue seria extinta e a segregação, pelo menos em termos políticos e jurídicos, teria fim. À época, King poderia não saber, mas o racialismo, a radical tese de que há ancestralidades distintas para grupos diferentes de pessoas que influem e formam indelevelmente a constituição de cada pessoa, ressurgiria, agora como herança cultural e histórica, não mais como resultado forjado de uma ciência espúria e racista.

 A irresistível vontade de classificar e diferenciar pessoas conforme raças ainda teria mais um episódio – ainda presente nos dias atuais -, no qual a “raça” ou “povo” passam a ser definidos como um conjunto cultural e comum, partilhado por um grande número de pessoas, de tradições, ancestralidades e culturas e – o que é realmente prejudicial -  que assume um caráter ontológico superior à categoria do cidadão – esta nova “raça” é hoje uma medida de definição que faz com que quase todos os indivíduos se definam não conforme o pertencimento a uma comunidade política, a um espaço público partilhado por todos e segundo o qual todos são iguais, independente de suas características físicas, morais ou históricas. Em suma, esta nova “raça” compõe uma definição que se quer superior à categoria do cidadão, que quer possuir para si direitos distintos, arrogáveis somente a si mesma, em detrimento de todos os demais que, por valores ou ancestralidades diferentes, não participam do domínio desta raça.

 Esta nova tese, um ultraje, a que hoje definimos multiculturalismo, nada mais é senão o mesmo discurso do “racismo científico”, ainda que vestido com outros trajes. Se antes se tratava de legitimar a superioridade de uma raça sobre outra, hoje a estratégia tem por objetivo consolidar a narrativa da exploração e da inferioridade forçada por uma luta de raças ou grupos culturais, cuja arbitrariedade em definir e classificar homens e mulheres em grupos culturais nítidos com definições antagônicas é extremamente semelhante à arbitrariedade de diferenciar a espécie humana em possíveis raças geneticamente diferentes.  

 É neste sentido que afirma Fernando Holiday: [Vamos] Acabar com as cotas raciais em concursos públicos municipais: Chega de segregacionismo institucionalizado. Todos somos iguais![3]. É também pela compreensão de que a identificação de todos e qualquer um perante o Estado e a Sociedade Civil deve vir na categoria de Cidadão que Holiday se opõe ao feriado da consciência negra. Porque a luta pelo fim da escravidão, no Brasil, ou pela emancipação dos negros escravos não se deu pela afirmação da superioridade ou da identidade da cultura negra em detrimento do restante da sociedade; tal movimento deu-se, acima de tudo, pela celebração e constituição da igualdade de todos como cidadãos livres e iguais, sem que qualquer fator como a cor da pele ou a ancestralidade pudessem interferir, positiva ou negativamente, no futuro de qualquer indivíduo.

 Passados quase 50 anos do assassinato de Martin Luther King Jr, sua mensagem permanece ainda atual e com ecos importantes, ainda que escassos, no Brasil. Mas a mensagem é clara. A igualdade civil e política é um bem superior, necessário para o estado de direito e, por definição, totalmente antagônico a qualquer reivindicação de direitos coletivos que pretendem, ou se sobrepor, ou constituir privilégios a uma parcela da sociedade em detrimento de todos os demais. É esta mensagem, esta reivindicação da igualdade isonômica, de todos perante a lei, o que há de comum entre Holiday e King Jr.




[1] https://kinginstitute.stanford.edu/king-papers/documents/i-have-dream-address-delivered-march-washington-jobs-and-freedom
[2] Ibidem
[3] https://www.facebook.com/fernandoholiday.mbl/posts/1797674907137334:0

Nenhum comentário:

Postar um comentário