Antes que possam desvelar as críticas contra
mim, respondo de antemão: ambos não possuem praticamente quase nada em comum.
Pode inclusive soar um exagero comparar duas figuras de contextos e histórias
pessoais totalmente diferentes, e ainda mais se levarmos em conta a importante
história de vida de Martin Luther King Jr.
A verdade, no entanto, é que há de fato algo,
ou melhor, uma concepção, que foi defendida pelo ativista americano e que é
igualmente partilhada pelo vereador paulistano – e é justamente isto que torna
a figura de Holiday tão inusitada a boa parte do movimento negro no Brasil.
Como sabemos, Martin Luther King Jr.
dedicou-se à luta pela igualdade civil, pela abolição do racismo de estado,
incorporado e levado à suas últimas consequências nas famosas leis “Jim Crow”,
promulgadas no estado da Virgínia ainda no ano de 1924. Por meio delas, todo um
arcabouço jurídico destinado a impedir a miscigenação entre brancos e
não-brancos, já em avanço em boa parte do sul do país, consolidou-se e tornou
praticamente legítimo a segregação racial. As escolas, os banheiros, as
bibliotecas, os museus, os cinemas, as igrejas, enfim, ônibus e outros meios de
transporte coletivos foram divididos em unidades especiais destinadas a cada
“raça”.
A história deste racismo jurídico é antiga e
estende-se até se perder nos séculos passados. O chamado “racismo científico” e
a eugenia, que originaram as teorias da supremacia racial nórdica e ariana e a
classificação hierárquica entre etnias e raças humanas, é um movimento que
encontra antecessores ainda mais antigos. Sempre houve, no decorrer do saber humano,
a tendência – e, obviamente, a necessidade - de se estabelecer métodos de
análise e classificação dos fenômenos e dos seres vivos. Essa taxonomia moderna
também acabou por se estender aos homens e mulheres como um todo.
No campo da política e do direito, isto se
sobressaiu com força, nos Estados Unidos, na Europa e nas colônias europeias
ultramarinas, no século XIX. Nos EUA, em especial, a segregação racial parecia
ter sofrido um duro e derradeiro golpe com a Guerra Civil e a abolição
proclamada por Abraham Lincoln em 1865. Nos anos posteriores, durante a
Reconstrução, as políticas antimiscigenação não tiveram vez nos estados que
compunham a antiga Confederação. O cenário, porém, começaria a mudar a partir
da década de 80, com o retorno dos governos democratas ao poder. É notório, por
exemplo, o litígio Pace vs Alabama, de 1883, em que o negro Tony Pace e a
branca Mary j. Cox foram condenados a dois anos de prisão, condenados por “fornicação”
inter-racial.
A reação contra as reformas por igualdade
política e jurídica atingiu seu ponto culminante entre os anos de 1890 e 1908,
quando diversos estados do sul aprovaram novas leis e constituições
condicionando o direito de voto à alfabetização e à propriedade. Todo este
movimento ganharia, portanto, uma formulação trágica com a já mencionada lei de
1924, também conhecida como “regra da gota de sangue única (one drop rule)”.
Sob influência de Francis Galton e suas ideias
eugênicas desenvolvidas na Sociedade de Antropologia Americana, as regras
censitárias americanas que então procediam à divisão dos cidadãos entre
brancos, mestiços (coloured) e negros
sofreram uma radical mudança: passou-se a definir o “homem branco” como aquele
que não possuía traço algum ou de qualquer sangue senão caucasiano; qualquer
“gota de sangue” índio, africano ou não caucasiano em contato com o sangue puro
branco e europeu, dentro das últimas 4 gerações antecessoras de qualquer
indivíduo, já passava, deste modo, a classifica-lo, portanto, como um cidadão
fora dos domínios da raça branca. A partir desta lei, que serviu como modelo
para outras legislações estaduais, produziu-se o desaparecimento, quase por completo,
do conceito de mestiço no uso da lei americana. Em seu lugar, algo muito mais
brutal acendeu, a saber, a completa diferença e segregação entre brancos e
não-brancos.
A regra da gota de sangue seria extinta apenas
em 1968, após uma longa luta pelos direitos civis dos negros segregados. Lider
da Conferência da Liderança Cristã do Sul, da qual era também fundador,
proclamou, a 28 de agosto de 1963, em frente ao memorial Lincoln, em Washington
D.C., o seu mais famoso discurso. Nele, King não denuncia a insuficiência ou a
suposta injustiça de uma Declaração de Independência, mas antes, a
desconformidade das políticas então atuais com os valores fundadores da “nação”
americana:
Quando os arquitetos de nossa
república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da
Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo
americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens,
sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os
direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio
que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta
obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um
cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes[1]".
O ativista, então, continuou
com o trecho mais famoso de seu discurso:
Eu digo a você hoje, meus amigos, que
embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um
sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Eu tenho um sonho que um dia esta
nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós
celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são
criados iguais.
Eu tenho um sonho que um dia nas
colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos
dos desdentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da
fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia, até
mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça,
que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de
liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho que minhas quatro
pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas
pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia, no
Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios
gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos
negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas
brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje![2]
Tratava-se o discurso de
King de uma afirmação da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, da
afirmação de que diferenças forjadas por narrativas mal estruturadas sobre a
ciência ou a religião jamais deveriam ser institucionalizadas e operar como um
verdadeiro aparato jurídico-político. King punha abaixo qualquer ideia de
racialismo, de diferenças raciais inerentes que pudessem ditar de antemão o
destino de qualquer homem ou mulher. Colocava em xeque os fundamentos da
desigualdade racial, então embasada na ideia da existência de raças ou etnias
diferentes, que deveriam conviver separadas, mas “unidas” para o progresso da
nação (separated, but equal). Tal
luta nada mais seria senão a afirmação mor da igualdade civil e política acima
de qualquer caracterização coletiva, e, ainda mais, a igualdade de todos como
valor supremo, acima de direitos ou reivindicações coletivas de grupos que
desejassem se sobrepor à igualdade da maioria.
Em
1968, após o assassinato de King, em 04 de abril, a regra da gota única de
sangue seria extinta e a segregação, pelo menos em termos políticos e
jurídicos, teria fim. À época, King poderia não saber, mas o racialismo, a
radical tese de que há ancestralidades distintas para grupos diferentes de
pessoas que influem e formam indelevelmente a constituição de cada pessoa,
ressurgiria, agora como herança cultural e histórica, não mais como resultado
forjado de uma ciência espúria e racista.
A irresistível vontade de classificar e
diferenciar pessoas conforme raças ainda teria mais um episódio – ainda presente
nos dias atuais -, no qual a “raça” ou “povo” passam a ser definidos como um
conjunto cultural e comum, partilhado por um grande número de pessoas, de
tradições, ancestralidades e culturas e – o que é realmente prejudicial - que assume um caráter ontológico superior à
categoria do cidadão – esta nova “raça” é hoje uma medida de definição que faz
com que quase todos os indivíduos se definam não conforme o pertencimento a uma
comunidade política, a um espaço público partilhado por todos e segundo o qual
todos são iguais, independente de suas características físicas, morais ou
históricas. Em suma, esta nova “raça” compõe uma definição que se quer superior
à categoria do cidadão, que quer possuir para si direitos distintos, arrogáveis
somente a si mesma, em detrimento de todos os demais que, por valores ou
ancestralidades diferentes, não participam do domínio desta raça.
Esta nova tese, um ultraje, a que hoje
definimos multiculturalismo, nada mais é senão o mesmo discurso do “racismo científico”,
ainda que vestido com outros trajes. Se antes se tratava de legitimar a
superioridade de uma raça sobre outra, hoje a estratégia tem por objetivo
consolidar a narrativa da exploração e da inferioridade forçada por uma luta de
raças ou grupos culturais, cuja arbitrariedade em definir e classificar homens
e mulheres em grupos culturais nítidos com definições antagônicas é
extremamente semelhante à arbitrariedade de diferenciar a espécie humana em
possíveis raças geneticamente diferentes.
É neste sentido que afirma Fernando Holiday: [Vamos] Acabar com as cotas raciais em
concursos públicos municipais: Chega de segregacionismo institucionalizado.
Todos somos iguais!”[3]. É também pela compreensão
de que a identificação de todos e qualquer um perante o Estado e a Sociedade
Civil deve vir na categoria de Cidadão que Holiday se opõe ao feriado da
consciência negra. Porque a luta pelo fim da escravidão, no Brasil, ou pela
emancipação dos negros escravos não se deu pela afirmação da superioridade ou
da identidade da cultura negra em detrimento do restante da sociedade; tal
movimento deu-se, acima de tudo, pela celebração e constituição da igualdade de
todos como cidadãos livres e iguais, sem que qualquer fator como a cor da pele
ou a ancestralidade pudessem interferir, positiva ou negativamente, no futuro
de qualquer indivíduo.
Passados quase 50 anos do assassinato de Martin
Luther King Jr, sua mensagem permanece ainda atual e com ecos importantes,
ainda que escassos, no Brasil. Mas a mensagem é clara. A igualdade civil e
política é um bem superior, necessário para o estado de direito e, por
definição, totalmente antagônico a qualquer reivindicação de direitos coletivos
que pretendem, ou se sobrepor, ou constituir privilégios a uma parcela da
sociedade em detrimento de todos os demais. É esta mensagem, esta reivindicação
da igualdade isonômica, de todos perante a lei, o que há de comum entre Holiday
e King Jr.
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