Encontrei pela internet um texto de esquerda destinado, nas
palavras do autor, a desmistificar o discurso “neoliberal” a respeito das
benesses da não-intervenção do estado na economia no caso de Cingapura[1].
Como sabemos, a ilha do pacífico, um dos Tigres Asiáticos, é considerada um
exemplo de desenvolvimento atingido através de reformas liberalizantes. Porém,
nos termos do autor, o desenvolvimento da ilha ocorre apesar do liberalismo ou
do capitalismo, e não em decorrência de sua estrutura econômica.
O texto se inicia com
críticas do autor àquilo que pensa saber ser o “Estado mínimo” – termo equívoco
melhor substituído por poder limitado – e a “mão invisível”, entendida como o
processo de regulação autônoma do próprio mercado entre seus agentes
econômicos. No entanto, o que mais chama a atenção, e é provavelmente isto que
é totalmente despercebido pelo autor e, diga-se de passagem, por boa parte dos
críticos do capitalismo e das ideias liberais, é a completa redução da economia
de livre mercado a apenas alguns fatores que, sem deixarem de ser importantes,
por si só não garantem que um determinado arranjo seja de fato de ordem liberal
ou possa ser classificado como tal.
Em primeiro lugar, a
experiência social de Cingapura é fincada na convicção da superioridade da
iniciativa privada e da gestão administrativa baseada em critérios puramente
meritocráticos[2]. A
responsabilidade individual obteve uma preponderância muito maior sobre a ideia
de planificação estatal e distributivismo coletivista. Como o afirma o próprio
Lee Kuan Yew, o “fundador” deste novo modelo emblemático de Cingapura:
Assim como
Jawaharlal Nehru [o primeiro primeiro-ministro da Índia, de 1947 a 1964], no
começo me senti influenciado pelas ideias do socialismo fabiano inglês. No entanto, rapidamente me dei conta de que,
para distribuir o bolo, é necessário antes fabricá-lo. Por isso me distanciei da mentalidade do
estado de bem-estar: ela minava o espírito empreendedor e impedia que uma
pessoa se esforçasse para prosperar e seguir adiante.
Também
abandonei o modelo de industrialização baseado na substituição de
importações. Enquanto a maioria dos
países do Terceiro Mundo denunciava a exploração das multinacionais ocidentais,
nós as convidamos todas para ir a Cingapura.
Desse modo conseguimos crescimento, tecnologia e conhecimento
científico, os quais dispararam nossa produtividade de uma maneira mais intensa
e acelerada do que qualquer outra política econômica alternativa poderia ter
feito[3].
É fato que Yew concedeu isenções fiscais a
certas companhias multinacionais e nacionais de grande porte, e que também
redirecionou investimentos a certos setores da economia do país. No entanto, em
medida muito superior e mais veloz, Yew praticamente eliminou, desde os anos
60, as barreiras alfandegárias e abriu as portas da pequena ilha para os
investimentos diretos estrangeiros. Retomou aquilo que havia constituído o
espírito dos moradores do país ao longo dos últimos séculos: a próspera
economia de importação/exportação, dependente, sobretudo, do comércio naval. De
forma análoga, a ilha manteve níveis atrativos e amigáveis (consideravelmente
baixos se comparados à média dos demais países do globo) de tributação e
desregulamentou grandemente muitos setores, reduzindo de forma drástica as
burocracias, os custos e a liberdade de empreender no país. Não à toa, de
acordo com o Instituto Doing Business, Cingapura permanece sendo o lugar com o
maior grau de liberdade para se empreender em todo o continente asiático[4].
Para se ter uma ideia, em Cingapura, se leva em média 03 dias para realizar a
fundação e a abertura de uma nova empresa, sendo a tarifa média para realizar
transações comerciais, nacionais e internacionais, menor do que 1%[5].
Os direitos de
propriedade são também extremamente sólidos, sendo este inclusive um dos pontos
de maior enfoque de Yew nas reformas que implantou. Em termos de corrupção e
solidez das instituições políticas do pais, Cingapura figura entre os 10 países
menos corruptos do mundo, atrás apenas de nações como Dinamarca, Noruega e
Suíça[6].
De fato, desde que assumiu o poder em 1965, Yew foi responsável por estabelecer
um combate ferrenho à corrupção e à ineficiência do setor público. Foi responsável
por estabelecer salários adequados capazes de atrair os melhores talentos do
mercado e por propor, nos anos 1990, uma fórmula salarial diretamente vinculada
ao resultado da economia e da arrecadação fiscal[7]
– ou seja, os salários públicos estão sujeitos à queda ou ao aumento conforme o
desempenho da própria sociedade de Cingapura. Em seguida, também instaurou um
sistema meritocrático não apenas no concurso de admissão aos cargos públicos,
mas vigente também ao longo de toda a carreira do profissional[8].
Parte deste sucesso se
deve também à própria visão de Yew quanto ao parasitismo que pode ocorrer – e
sempre ocorre – quando o governo tem como finalidade a mera equidade de renda
ou simplesmente o dispêndio de benefícios sociais:
Aproveitamos
todas as vantagens que nos legaram os ingleses: o idioma, o sistema jurídico, a
democracia parlamentarista e a administração imparcial. Mas conseguimos evitar ceder ao charme do
estado de bem-estar social. Já vimos
como um povo inteiro pode competir entre si para se afundar na miséria e na
mediocridade. As pessoas menos
empreendedoras e trabalhadoras não podem ser igualadas ao resto à custa de
piorar a situação das mais empreendedoras e esforçadas. E também já vimos quão difícil é desmantelar
um sistema de subsídios tão logo as pessoas se acostumam às benesses que o
estado lhes proporciona.
[...]
O estado de
bem-estar e os subsídios destroem a motivação para as pessoas se esforçarem e
crescerem. Se for para ajudar alguém, é
preferível que seja dando-lhes algum ativo ou dinheiro e permitido que tenham
total liberdade para decidir como gastá-lo.
Quando as pessoas se tornam dependentes dos subsídios e o estado não
pode mais continuar lhes pagando, elas protestam. Tornaram-se mal acostumadas[9].
Isto ajuda a entender
o ponto nevrálgico da tese mal sucedida do autor do texto sobre Cingapura. É
também verdade que há inúmeras empresas estatais operando em Cingapura, talvez
até mais do que companhias privadas. Mas é interessante observar como até nisto
Yew diferenciou-se de seus antecessores e políticos contemporâneos ao redor do
globo. Além de implementar a seleção e promoção de funcionários conforme
unicamente critérios objetivos e baseados no mérito, todas as empresas públicas
tem como objetivo o lucro. Não há como negar que tais empresas operam com
capital oriundo de arrecadação de seus pagadores de impostos, mas a finalidade
de tais companhias é igual a de qualquer outra empresa privada. A eficiência é
o critério último para a decisão da sobrevivência ou extinção de cada empresa
pública[10].
Com efeito, é também
notório observar o desempenho das contas públicas, visto que, ao contrário do
que muito se diz, os gastos públicos constituem no mais das vezes uma variável
ainda mais importante do que a carga de tributos para a avaliação de uma
economia livre. Afinal, gastos crescentes e déficits públicos seguidos conduzem
a esgotamento de recursos dos setores produtivos, expansão da oferta de moeda e
consequente desajustamento do setor produtivo, aumento da burocracia e alocação
ruim dos recursos disponíveis. No caso de Cingapura, o gasto total do setor
público é cerca de 1/3 de do gasto sueco, país semelhante em termos de numero
de habitantes e dimensões territoriais[11].
E, muito embora a dívida pública nacional esteja em mais de 100% em relação ao
PIB – oriundos especialmente com as crises asiática de 1996 e mundial de 2008 –
foram muito poucas as oportunidades em que houve um afrouxamento das contas
fiscais. Apenas no final dos anos 80 e em outros da década subsequente, o país
incorreu em déficits fiscais[12].
Há de fato inexistência de uma percepção de insolvência por parte do governo
local que contribui fortemente com a continuidade de investimentos estrangeiros
vindos ao país.
Na esfera monetária,
chama a atenção a completa ausência de interferências governamentais no momento
crucial de estabelecimento de uma moeda forte e estável. Operando por um
sistema de currency board, a moeda local basicamente passou a operar de acordo
com a quantidade de reservas internacionais, com a quantidade de moeda
estrangeira que circula pelo país e a qual a moeda cingapurense esteve atrelada[13].
A partir de uma taxa de câmbio fixo, pôde-se conquistar a estabilidade da
moeda, impondo forçosamente uma disciplina ao sistema bancário e às políticas fiscais
de governo. Como resultado, entre os anos de 1982 a 2005, o dólar de Cingapura
tornou-se a moeda que menos apresentou depreciação em todo o mundo[14].
Com relação
especialmente às políticas de moradia popular, da qual dependem cerca de 85%
dos habitantes do país, vale destacar que nenhum direito coletivo é financiado
diretamente pelo erário público. Foi criado ainda nos anos 70 o Fundo
Providente Central, algo semelhante ao CPF brasileiro, que opera como um
instrumento financeiro que possa garantir a independência financeira de cada
cidadão na terceira idade. Este sistema de responsabilidade pessoal – cuja
fortuna futura está estritamente associada ao desempenho presente -, cujos
valores têm origem numa contribuição mandatória de 33% de cada cidadão, são
depositadas numa conta individualizada com liquidez nominal. A existência
destes fundos simplesmente fez com que o próprio governo de Cingapura pudesse
aliviar-se dos custos oriundos com políticas sociais. Além disso, à titulo de
explicação, tais fundos são investidos em títulos da dívida do governo, o que
implica dizer que, para tomar de empréstimo o dinheiro de seu “contribuinte”,
este precisa emitir um título de devedor em favor da pessoa física cujos fundos
pessoais estão sendo objeto de captação[15].
Isto também ajuda a explicar porque a dívida pública do país é tão alta.
Em suma, à guisa de
conclusão, o modelo adotado em Cingapura difere muito dos modelos
público-privados adotados no ocidente. Politicamente, o país ainda padece de
restrições à liberdade de expressão, e os direitos políticos, como a livre
associação e formação de coligações partidárias, ainda encontram sérias restrições.
No entanto, há que se situá-lo em direção diametralmente oposta a um
capitalismo de estado tal como observamos na China, na Venezuela ou na
Argentina Kirchnerista. A prosperidade da ilha, que se reflete na renda per
capita anual de aproximadamente 50.000 dólares por habitante, deveu-se aos
fatores essenciais a qualquer economia liberal e que constituem aquilo que
podemos chamar de baixa intervenção governamental: ampla liberdade individual e
de comércio, direitos de propriedade bem fundamentados, sólidas instituições
civis, baixa intervenção estatal constatada através das pouquíssimas
regulamentações em seus diversos setores e da limitada condução planejadamente
central dos agentes econômicos; gastos públicos controlados e baixos; divisão e
especialização estimuladas do trabalho e tributos atrativos. Mais uma vez,
pudemos observar como um representante da esquerda desperdiçou seu tempo
incendiando um espantalho.
[1] http://www.panoramicasocial.com.br/2013/08/singapura-exemplo-de-sucesso-neoliberal.html
[2]
CASTRO, P. R. DE. O Mito do Governo
Grátis. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2014, p. 274.
[3] https://www.amazon.com/The-Singapore-Story-Memoirs-Kuan/dp/0130208035
[4] http://www.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/singapore/
[5] http://www.heritage.org/index/country/singapore?ac=1
[6] https://noticias.uol.com.br/album/2014/12/03/veja-os-10-paises-menos-corruptos-do-mundo-segundo-ranking-de-ong.htm#fotoNav=7
[7] http://www.beefpoint.com.br/cadeia-produtiva/espaco-aberto/como-cingapura-venceu-a-corrupcao-por-marcos-sawaya-jank/
[8] Ibidem.
[9] https://www.amazon.com/The-Singapore-Story-Memoirs-Kuan/dp/0130208035
[10] http://m.noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2015/05/21/as-contradicoes-de-cingapura-e-o-estranho-legado-de-lee-kuan-yew.htm
[11] http://m.noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2015/05/21/as-contradicoes-de-cingapura-e-o-estranho-legado-de-lee-kuan-yew.htm
[12]
CASTRO, P. R. DE. O Mito do Governo
Grátis. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2014, p. 277.
[13] http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2059
[14] https://fred.stlouisfed.org/graph/fredgraph.png?g=15eP
[15]
CASTRO, P. R. DE. O Mito do Governo
Grátis. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2014, p. 281.
muito bom, parabéns
ResponderExcluirAdorei. Queria muito que o Brasil seguisse esse exemplo
ResponderExcluirObrigado!
ResponderExcluirA vontade é a mesma.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir"Em 25 anos, o programa de construção de casas populares do governo de Cingapura tirou 1,3 milhão de pessoas de terras invadidas, favelas e colônias de assentamento. Hoje, 82% da população da cidade-estado vivem em imóveis construídos pelo governo em um conceito de cidades compactas, onde emprego, serviços públicos, lazer e moradia estão a poucos quilômetros."
ResponderExcluirhttp://oglobo.globo.com/sociedade/nossa-cidade-nao-tem-guetos-pobres-nem-areas-nobres-diz-urbanista-que-revolucionou-cingapura-14028255