"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Você sabe como o comércio livre pode ser bom para todos? Entenda a teoria da Vantagem Comparativa


 Comumente vejo por aí muitas críticas ao livre comércio e à ideia de especialização do trabalho que a acompanha. A principal delas diz respeito á dependência ou falta de uma suposta autossuficiência que o comércio poderia provocar, especialmente no que diz respeito aos países subdesenvolvidos. Outros argumentam, tal como faz Há Joon Chang, que a ideia de livre comércio é benéfica apenas para as nações já desenvolvidas – o outro lado da moeda da teoria da dependência, em que o livre comércio seria a ferramenta perfeita para impedir o desenvolvimento da indústria e da tecnologia em países assentados sobre a atividade agropecuária e eminentemente extrativista – e, como tal, não deve se aplicar aos países emergentes ou pobres. Num lado mais radical, há também aqueles que afirmam que o comércio representa simplesmente a expropriação de riqueza de alguns por parte de outros que se encontram em posição mais privilegiada.

 Seja por esta visão da soma zero, seja pela visão de que o livre comércio instalou-se em países desenvolvidos quando estes já tinham condições avançadas de infra-estrutura e mão de obra produtiva, a questão das vantagens inegáveis do regime de livre comércio é praticamente obnubilada por um forte viés ideológico que tende a jogar o ônus de sua operação justamente sobre os mais vulneráveis.

 Para entender como funciona a “mágica” do crescimento do bem estar geral provida pelo comércio, é necessário ter em mente que estas críticas costumam confundir conceitos econômicos diferentes no tocante ao fator riqueza e produtividade.  Adam Smith, em a Riqueza das Nações, definiu a riqueza de uma forma diferente como até então os teóricos mercantilistas de então, como Turgot e Quesnay, a entendiam. Para o escocês, esta, distante da acumulação de metais preciosos ou do dinheiro que servia meramente como facilitador das trocas comerciais, devia ser definida como o conjunto de bens e serviços produzidos por uma determinada comunidade, dentro de um certo recorte temporal – o que implicava situá-la como sinônimo do acesso a bens e serviços.

 Como sabemos, o fator riqueza ou crescimento de uma nação passava assim a ser atrelado à divisão do trabalho e ao comércio. Ao primeiro, porque justamente a divisão de tarefas e a especialização permitem um incremento na quantidade final de um bem produzido sem necessitar, por isso, de um aumento no esforço, na quantidade de insumos ou no tempo despendido para sua produção. Ao segundo, porque consiste na condição de possibilidade de especialização do trabalho e de satisfação das necessidades humanas sem precisar fazer de cada ser humano um mestre na produção de tudo aquilo que necessita para sobreviver, algo que, convenhamos, é impossível. É justamente o comércio ou a economia de mercado o instrumento de coordenação das atividades humanas que permite a cada agente dedicar-se à busca do interesse próprio de forma muito mais pacífica do que praticamente qualquer outro sistema político, econômico ou social. Nesse sentido, a descentralização dos processos de tomada de decisão, feitas por inúmeros agentes econômicos em interação e que caracteriza a economia de mercado, funciona como um mecanismo de ajuste eficiente entre as inúmeras vontades individuais, muitas vezes conflitantes, que residem no seio de um mesmo grupo.

 O fator produtividade, portanto, e que hoje definimos como a quantidade de um determinado bem ou serviço produzida por unidade de insumo, é essencial para determinar as possibilidades de produção e, igualmente, de consumo de uma comunidade ou nação. Ou seja, à medida que os fatores de produção, como, por exemplo, a formação de mão de obra, a tecnologia e o capital, se desenvolvem, a quantidade de bens e serviços produzida por unidade de insumo se eleva, o que, por fim, nos conduz a uma riqueza ou bem estar econômico maior. Para ilustrar este raciocínio considere o exemplo trazido pela tabela abaixo, que resume a produção de um país imaginário, a que chamarei de “Marte”:

QTDE QUE PODE SER PRODUZIDA POR INSUMO
PERÍODO A (12/2016)
PERÍODO B (01/2017)
SOJA, EM KG
2000
2976
TVs, POR UNIDADE
680
744

 Neste país imaginário[1], graças à melhoria dos fatores que influenciam diretamente na produtividade do trabalho[2], obtivemos, na virada de um ano para outro, um aumento na possibilidade de produção da quantidade de dois bens e, consequentemente, de expansão das possibilidades de consumo. Utilizando os mesmos recursos, mensurados pelo tempo (dias do mês), Marte tornou-se capaz, em janeiro deste ano, de produzir um total de 2976 kg de soja ou (tenhamos sempre em mente a realidade da escassez de recursos) 744 televisores, ou qualquer quantidade destes bens que possa ser compatibilizada utilizando a combinação dos recursos disponíveis na produção de ambos – uma combinação final, por exemplo, de 1488 kg de soja e 372 televisores, que representa o emprego igualmente dividido dos recursos disponíveis na produção dos dois bens. A divisão do trabalho e a especialização permitiram que a riqueza da nação e o bem estar da população – que poderá contar agora com televisores e carne a preços e qualidade mais acessíveis – tivessem um forte incremento dentro do período registrado.

 Agora, tomemos como comparação este outro país imaginário, a que chamarei de “Júpiter” no tocante à produção dos mesmos produtos:
QTDE QUE PODE SER PRODUZIDA POR INSUMO
PERÍODO A (01/2017)
PERÍODO B (02/2017)
SOJA, EM KG
4000
4464
TVs, POR UNIDADE
2160
2232

 Como pudemos observar, Júpiter apresenta uma produtividade e uma condição de possibilidade de produção superior a Marte. Como consequência, seus habitantes gozam de uma possibilidade de consumo maior do que aquela observada em Marte (por exemplo, 2232 kg de soja e 1116 televisores produzidos no mesmo mês), fazendo com que, em termos absolutos, Júpiter seja uma nação mais rica e com maior bem estar do que a primeira.

 A este tipo de comparação, que mede unicamente a produtividade de dois agentes diferentes, denominamos de vantagem absoluta. Júpiter possui, em termos absolutos, vantagens na produção de carne e televisores, afinal necessita de uma quantidade menor de insumos para produzi-los, neste caso o próprio insumo tempo. Noutros termos, sabendo que ambos os meses possuem 31 dias, um total de 44640 minutos, Marte levaria no mês passado 15 minutos para produzir 01 kg de soja ou 60 minutos para produzir 01 televisor, ao passo que Júpiter levaria apenas 10 minutos para entregar 01 kg de soja ou 20 minutos para produzir 01 televisor. 


 Agora, porém, imaginemos que ambos os países estejam lidando com uma situação extremamente difícil de resolver: seus respectivos habitantes estão sequiosos ou necessitam consumir mais de ambos os bens produzidos, mas, dadas as condições atuais de produção, que não podem ser melhoradas por hora, torna-se impossível obter um resultado mais satisfatório. Isto porque, dadas a escassez dos recursos e a atual limitação das condições de produção, fabricar mais de um bem incorrerá produzir uma menor quantidade de outro. Em termos numéricos, se os habitantes de Marte desejarem consumir 2 toneladas de soja, ver-se-ão obrigados a ter apenas 244 televisores à disposição para consumo. Já os habitantes de Júpiter, se desejarem ter 1.300 televisores, precisarão reduzir a produção de soja para apenas 1866 kg.  E, então, como resolver este impasse?

 A alternativa se dá justamente pela via do comércio. E é justamente esta alternativa que costuma ser mal interpretada por aqueles que se opõem ao comércio entre pessoas e nações. Diferentemente de seus detratores, o livre comércio é extremamente benéfico para os países que não possuem vantagens absolutas relevantes. A ideia de proteger a indústria interna ou atividade doméstica da concorrência estrangeira não possui impactos práticos positivos para nenhum dos agentes inseridos num processo de trocas comerciais, e provoca a longo prazo distorções e ineficiências mais profundas justamente nos países menos produtivos.

 Para entender isso, é necessário inserir outro conceito muito importante: o custo de oportunidade. Como vimos, em Marte, leva-se 15 minutos para se produzir 01 kg de soja, e 60 minutos para se fazer 01 televisor. Dito de outro modo, há uma relação de custo na combinação de produção de ambos: para fazer 01 televisor, os habitantes de Marte precisam abrir mão de fazer 04 kg de soja; e, para produzir estes mesmos 04 kg, abrem mão de apenas um televisor. É a esta relação que denominamos custo de oportunidade - o custo para se obter um bem é igual aquilo que se abre mão para obtê-lo. O custo de oportunidade na produção de 01 kg de soja é igual a ¼ de 01 televisor, ao passo, que inversamente, o custo de oportunidade de 01 televisor é de 04 kg de soja.

 O mesmo raciocínio aplica-se a Júpiter. Por levar 10 minutos para produzir 01 kg de soja e outros 20 minutos para produzir 01 televisor, o custo de oportunidade do primeiro bem é de ½ televisor, enquanto o custo de oportunidade deste é de 02 kg de soja. Para ilustrar melhor esta relação, veja esta oura tabela:

PAÍSES
CUSTO DE OPORTUNIDADE/SOJA
CUSTO DE OPORTUNIDADE/TELEVISORES
MARTE
¼ TELEVISOR
04 KG DE SOJA
JUPITER
½ TELEVISOR
02 KG DE SOJA

 Isto significa, em resumo, que o produtor que necessita abrir mão de uma quantidade menor de um bem para produzir outro possui um custo de oportunidade menor para esta confecção. No caso assinalado, por abrir mão de uma quantidade menor de televisores para produzir 01 kg de soja, Marte possui um custo de oportunidade menor para produzir este bem, enquanto Jupiter, por abrir mão de uma quantidade menor de soja para produzir 01 televisor, desfruta de um custo de oportunidade menor para produzi-lo.

 À comparação entre os custos de oportunidade de dois produtores chamamos de vantagem comparativa, e ao produtor que possui um custo de oportunidade menor na produção de determinado em relação a outro produtor dizemos que possui uma vantagem comparativa em relação a este. E será justamente esta vantagem comparativa que irá permitir aos habitantes de cada país aumentar a quantidade de consumo desejada dos dois bens sem ter de, com isso, depender da melhoria das possibilidades de produção.

 Para obter os 2.000 kg de soja tão desejados, Marte poderá especializar-se na produção deste bem e, através do comércio com Júpiter, aumentar também a quantidade de televisores disponíveis para consumo interno sem necessitar de uma quantidade maior de insumos, como tempo de trabalho, mão de obra ou capital. Neste caso, por exemplo, Marte poderia dedicar todo o tempo disponível para a produção de soja, enquanto Jupiter poderia dedicar 75% dos mesmos recursos para a produção de televisores. Veja abaixo a quantidade de cada bem produzido dada esta divisão:
PRODUTO
MARTE
JUPITER
QUANTIDADE DE SOJA
2976
1116
NUMERO DE TVs
0
1674

 E, produzidas estas quantidades, Marte e Jupiter poderiam estabelecer uma relação comercial para trocar entre si as unidades excedentes de acordo com os níveis desejados de consumo mencionados anteriormente: Marte venderia 976 kg de soja em troca de 474 televisores de Jupiter, já que este deseja ter 1300 televisores e o primeiro 2000 kg de soja, sem, contudo, sofrer redução no consumo do outro bem. Realizada a troca, veja a quantidade de bens disponíveis para consumo em cada país:
PRODUTO
MARTE
JUPITER
QUANTIDADE DE SOJA
2000
2092
NUMERO DE TVs
374
1300

 Como podemos observar, graças à especialização do trabalho propiciada pelo comércio, tanto Marte quanto Jupiter puderam expandir as possibilidades de produção, isto é, tanto os habitantes do primeiro quanto do segundo obtiveram uma quantidade maior de ambos os bens para consumo, o que significa que o acesso aos mesmos foi facilitado, elevando desta forma o bem estar geral e a quantidade final de produção sem necessitar de uma quantidade maior de insumos. No primeiro caso, se antes Marte devesse ver o consumo de televisores ficar restrito a 244 unidades caso quisesse produzir 2000 kg de soja, agora pôde obter 374 televisores sem com isso precisar reduzir a quantidade de soja disponível para consumo. Um aumento incrível de 70% no número de televisores! No segundo caso, se antes Jupiter tivesse de ficar restrito a ter apenas 1866 kg de soja á disposição caso concentrasse a produção em 1300 unidades de televisores, após a permuta conseguiu obter 2092 kg de soja, sem precisar abrir mão de nenhuma unidade dos 1300 televisores. Um aumento de mais de 12%, pequeno se comparado a Marte, porém importantíssimo aos habitantes dos dois países, que passarão a desfrutar agora de um bem estar econômico maior do que se tivessem optado pela via da autossuficiência.


 Repare que o aspecto mais notável de todo este processo é que, contrariamente ao que poderiam afirmar seus críticos, foi o comércio livre o fator que mais trouxe benefícios ao país mais “pobre” nesta relação comercial. Claramente, Marte obteve um benefício, em termos de riqueza e acesso a bens de consumo, exponencial e maior, em termos relativos, do que seu concorrente (e parceiro de negócios) Júpiter. E isto só foi possível porque, mesmo em condição de “subdesenvolvimento” em relação a Júpiter, pela ótica dos custos de oportunidade, Marte possuía uma vantagem comparativa em relação a ele que pôde ser explorada por seus habitantes.

 A grande confusão que muitas vezes induz protecionistas e críticos do livre comércio ao erro situa-se ao fato de confundirem a prática do mercado com uma relação simples entre vantagens absolutas, isto é, tomam como critério de julgamento do comércio a vantagem absoluta – e não comparativa – que um determinado país possui quando comparado a outro. Mesmo em condições de desvantagem absoluta, países relativamente pobres como Marte possuem poder de barganha em relação a outros concorrentes e parceiros comerciais devido às vantagens comparativas que possui.

 Em termos ainda mais específicos, mesmo quando se afirma que a vantagem comparativa produz dependência de um país em relação à produção sofisticada de outro, não podemos deixar de lembrar que esta relação de dependência é também verdadeira para o agente mais rico nessa relação comercial. No caso em questão, da mesma forma como a queda no preço da soja pode prejudicar Marte, a subida neste preço pode igualmente prejudicar Júpiter. O aspecto fabuloso desta questão é que é o fator produtividade, é a especialização numa determinada atividade que confere a um país uma competividade maior no setor internacional, à imagem do que ocorre no mercado doméstico quando a maior produção de um determinado bem reduz seu preço final e facilita o acesso, principalmente para as camadas mais pobres da população. Tal como muitos países no comércio internacional real, como Chile, Canadá, Perú, Rússia, Irlanda, Nova Zelândia, Paraguai, foi a especialização naquilo que faziam de melhor que tornou sua produção competitiva e vantajosa em termos comerciais, resultando num crescimento da riqueza total.

 De fato, é extremamente difícil imaginar que seja possível possuir vantagens absolutas em todos os setores da economia, o que significa dizer que a ideia de autossuficiência é falaciosa e traz apenas resultados ruins para todos. Em maior ou menor grau, a interdependência é o que nos define nessa complexa rede de relações que chamamos de capitalismo. Desde os inícios esquecidos das muitas civilizações humanas, o comércio sempre foi a alternativa mais eficiente e viável para a satisfação de necessidades que, sozinhos em nosso ambiente, não seriamos capazes de satisfazer adequadamente. O comércio livre é bom para todos justamente porque permite expandir nossas possibilidades de consumo sem precisar com isso trabalhar mais ou empregar uma quantidade maior de recursos. Numa troca livre, todos os agentes envolvidos só têm a ganhar, e isto ocorre justamente devido ás vantagens comparativas.




[1] Para fins de brutal exemplificação, tomaremos como exemplo apenas a produção de dois produtos diferentes.
[2] Assumimos que o país em questão tenha como arranjo sócio econômico uma economia de mercado pautada pela divisão e especialização do trabalho. 

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