"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 11 de novembro de 2017

O Curioso Caso STF versus ENEM

 Não é razoável supor que uma mera redação do Exame Nacional do Ensino Médio possa incorrer numa violação dos direitos humanos. Requer muito esforço de imaginação pensar que as palavras escritas por um indivíduo qualquer tenham como resultado a perda injusta da liberdade, da moradia ou da vida de um ser humano que esteja do seu lado ou a muitos quilômetros de distância.

 Durante parte da Idade Média, como bem retratou Humberto Eco em sua brilhante obra “O Nome da Rosa”, creia-se que a realidade de um ente ou fenômeno manifestava-se, de certa forma, apenas com o pronunciar do seu enunciado – um tipo de platonismo aperfeiçoado com uma roupagem nova, diga-se de passagem.

 O veto contra a penalidade de anulação da redação em virtude da violação ou mesmo da mera apologia à violação dos direitos humanos, expedido pelo STF horas antes da realização da prova, representa uma decisão acertada, sóbria. “Não se pode combater intolerância social com intolerância estatal”, escreveu a meritíssima Carmen Lúcia. A liberdade de expressão ficou assim resguardada, tanto mais porque não se definiu bem, no edital da prova, quais eram esses tão sagrados direitos humanos ou com a definição de qual entidade se associava a cláusula.

 Os mais inditosos defensores da moralidade da luta contra a “barbárie neoliberal” se rebelaram, quase enfurecidos. Afinal, argumentaram, o fascismo poderia discorrer à vontade, sem que nada se lhe opusesse. Ironicamente, contudo, a decisão do STF lhe foi extremamente benéfica.

 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, representa o breviário, o estatuto internacional com o qual todas as noções e esforços correntes de proteção dos direitos humanos se referendam. São já notórias as advertências que a ONU dirige ao Brasil no que tange à proteção da dignidade da pessoa humana. Os jovens negros e a comunidade LGBT constituem o foco de atenção e a fonte de muitas das preocupações das organizações multilaterais que concorrem para a promoção dos direitos inalienáveis da pessoa humana. Escreve o projeto Vidas Negras que a cada 02 horas 05 jovens negros são vitimados no país. Salienta a última resolução do Conselho de Direitos Humanos que a cada 28 horas um homossexual/transexual/travesti é assassinado por aqui, muito embora, em contrapartida, não se explique quais são os outros grupos étnicos ou qual a sexualidade dos demais mortos no mesmo espaço de tempo. Segundo o Anuário de Segurança Pública, a cada 02 horas 14 pessoas perdem a vida de forma violenta no Brasil. Se 05 são jovens negros, os restantes só podem ser pessoas brancas, e/ou mestiços e/ou índios, etc... Da mesma forma, temos 196 mortos a cada 28 horas, mas parece interessar a alguns frisar o sofrimento apenas de uma pequena parte da amostra.

 Incongruências à parte, há outros direitos humanos que são violados em nossas terras tupiniquins e cuja defesa (da violação, não da preservação do direito) é hegemônica, para não dizer lastimosa. A Declaração é clara ao considerar a propriedade um direito, e sua violação uma clara violência à dignidade humana. Não fosse o STF, defender as invasões do MST ou do MTST não cairia nada bem. O Conselho dos Direitos Humanos também é claro ao atestar a fragorosa violação em massa dos direitos humanos em Cuba e Venezuela. Não fosse o STF, apoiar Maduro ou apostar nos elogios à Fidel e sua ilha privada tampouco soaria bem. Basta lembrar da obra “Antes que Anoiteça”, do cubano exilado Reinaldo Arenas. E o que dizer então do comunismo? Chegados os 100 anos da Revolução Russa, veem a tona os muitos aspectos ditatoriais e, novamente, intrinsecamente violadores da dignidade humana presentes na doutrina. Tanto que é possível encontrar, online, o Memorial das Vítimas do Comunismo, entidade sem fins lucrativos que se destina ao honroso trabalho de denunciar as inúmeras privações e mortes ocorridas sob o encanto utópico da luta contra a exploração do capital. Andrei Sakharov e sua luta memorável pela instalação de liberdades civis na Rússia comunista que o diga. Não fosse o STF, os jacobinos de Marx, do lulopetismo insano da quimera “socialismo e liberdade” seriam reprovados aos montes.

 A noção de direitos inalienáveis da pessoa humana é uma ideia valiosa. Serve principalmente ao fito de estabelecer uma linha rígida de proteção da integridade individual face ao poder abusivo de um governo. A soberania do indivíduo e a autonomia para realizar-se em sociedade, unir-se com quem quiser e perseguir seus intrincados sonhos constituem um dos pontos fundamentais do seu arcabouço filosófico. Uma grande ideia burguesa, portanto.

 Graças, deste modo, ao STF, mas, mais especialmente à rosa que tem sua realidade derivada não do nome, mas de sua concretude empírica, salvaguarda-se a possibilidade do discurso de esquerda mais radical. Se assim não fosse a linguagem ou a realidade epistemológica, imagine-se o sangue que não se faria verter das mãos daqueles que escrevessem “o comunismo representou um baluarte na resistência contra a civilização ocidental, um ponto positivo para a história humana”.

 Bibliografia   


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