Não é razoável supor que uma mera
redação do Exame Nacional do Ensino Médio possa incorrer numa violação dos
direitos humanos. Requer muito esforço de imaginação pensar que as palavras
escritas por um indivíduo qualquer tenham como resultado a perda injusta da
liberdade, da moradia ou da vida de um ser humano que esteja do seu lado ou a
muitos quilômetros de distância.
Durante parte da Idade Média, como bem
retratou Humberto Eco em sua brilhante obra “O Nome da Rosa”, creia-se que a
realidade de um ente ou fenômeno manifestava-se, de certa forma, apenas com o
pronunciar do seu enunciado – um tipo de platonismo aperfeiçoado com uma
roupagem nova, diga-se de passagem.
O veto contra a penalidade de anulação da
redação em virtude da violação ou mesmo da mera apologia à violação dos
direitos humanos, expedido pelo STF horas antes da realização da prova, representa
uma decisão acertada, sóbria. “Não se pode combater intolerância social com
intolerância estatal”, escreveu a meritíssima Carmen Lúcia. A liberdade de expressão
ficou assim resguardada, tanto mais porque não se definiu bem, no edital da
prova, quais eram esses tão sagrados direitos humanos ou com a definição de
qual entidade se associava a cláusula.
Os mais inditosos defensores da moralidade da
luta contra a “barbárie neoliberal” se rebelaram, quase enfurecidos. Afinal,
argumentaram, o fascismo poderia discorrer à vontade, sem que nada se lhe
opusesse. Ironicamente, contudo, a decisão do STF lhe foi extremamente
benéfica.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem,
promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, representa o
breviário, o estatuto internacional com o qual todas as noções e esforços
correntes de proteção dos direitos humanos se referendam. São já notórias as
advertências que a ONU dirige ao Brasil no que tange à proteção da dignidade da
pessoa humana. Os jovens negros e a comunidade LGBT constituem o foco de
atenção e a fonte de muitas das preocupações das organizações multilaterais que
concorrem para a promoção dos direitos inalienáveis da pessoa humana. Escreve o
projeto Vidas Negras que a cada 02 horas 05 jovens negros são vitimados no
país. Salienta a última resolução do Conselho de Direitos Humanos que a cada 28
horas um homossexual/transexual/travesti é assassinado por aqui, muito embora,
em contrapartida, não se explique quais são os outros grupos étnicos ou qual a
sexualidade dos demais mortos no mesmo espaço de tempo. Segundo o Anuário de
Segurança Pública, a cada 02 horas 14 pessoas perdem a vida de forma violenta
no Brasil. Se 05 são jovens negros, os restantes só podem ser pessoas brancas,
e/ou mestiços e/ou índios, etc... Da mesma forma, temos 196 mortos a cada 28
horas, mas parece interessar a alguns frisar o sofrimento apenas de uma pequena
parte da amostra.
Incongruências à parte, há outros direitos
humanos que são violados em nossas terras tupiniquins e cuja defesa (da
violação, não da preservação do direito) é hegemônica, para não dizer
lastimosa. A Declaração é clara ao considerar a propriedade um direito, e sua
violação uma clara violência à dignidade humana. Não fosse o STF, defender as
invasões do MST ou do MTST não cairia nada bem. O Conselho dos Direitos Humanos
também é claro ao atestar a fragorosa violação em massa dos direitos humanos em
Cuba e Venezuela. Não fosse o STF, apoiar Maduro ou apostar nos elogios à Fidel
e sua ilha privada tampouco soaria bem. Basta lembrar da obra “Antes que
Anoiteça”, do cubano exilado Reinaldo Arenas. E o que dizer então do comunismo?
Chegados os 100 anos da Revolução Russa, veem a tona os muitos aspectos ditatoriais
e, novamente, intrinsecamente violadores da dignidade humana presentes na
doutrina. Tanto que é possível encontrar, online, o Memorial das Vítimas do
Comunismo, entidade sem fins lucrativos que se destina ao honroso trabalho de denunciar
as inúmeras privações e mortes ocorridas sob o encanto utópico da luta contra a
exploração do capital. Andrei Sakharov e sua luta memorável pela instalação de
liberdades civis na Rússia comunista que o diga. Não fosse o STF, os jacobinos
de Marx, do lulopetismo insano da quimera “socialismo e liberdade” seriam
reprovados aos montes.
A noção de direitos inalienáveis da pessoa
humana é uma ideia valiosa. Serve principalmente ao fito de estabelecer uma
linha rígida de proteção da integridade individual face ao poder abusivo de um
governo. A soberania do indivíduo e a autonomia para realizar-se em sociedade,
unir-se com quem quiser e perseguir seus intrincados sonhos constituem um dos
pontos fundamentais do seu arcabouço filosófico. Uma grande ideia burguesa, portanto.
Graças, deste modo, ao STF, mas, mais
especialmente à rosa que tem sua realidade derivada não do nome, mas de sua concretude
empírica, salvaguarda-se a possibilidade do discurso de esquerda mais radical.
Se assim não fosse a linguagem ou a realidade epistemológica, imagine-se o
sangue que não se faria verter das mãos daqueles que escrevessem “o comunismo
representou um baluarte na resistência contra a civilização ocidental, um ponto
positivo para a história humana”.
Bibliografia
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