"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Esquerda e sua Contradição: Qual o significado da atual Crise Brasileira?


Tornou-se praticamente um hábito, diante das instabilidades que atualmente assolam nossa vida civil, levar á cabo protestos que sejam capazes de expressar a reprovação acerca das medidas tomadas pelo governo Dilma, sejam ou não estas resultado de antigas idéias já defendidas por outros membros do Partido dos Trabalhadores ou até mesmo de outras legendas.

 Nesta panacéia de manifestações muitas vezes discordantes entre si, de discursos de grande força moral e retórica e de uma infinidade de críticas ao exercício corrente do poder executivo, uma estratégia finória de cunho fortemente ideológico, originária de certos grupos da sociedade civil, emergiu de forma súbita neste debate sócio-político.

 Esta estratégia, centralizada, sobretudo, sobre um discurso em certa medida oportunista e um tanto quanto irônico, consiste na polarização do espectro político direita-esquerda através de uma “endemonização” da atual chefe do poder executivo e sua equipe econômica, na qual o governo Dilma Roussef personifica com vigor um regime político reacionário e “de direita”. Sendo, para tomar de empréstimo um conceito elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, suas bases o ressentimento e o desagrado que se origina defronte à suposta subversão de ideais máximos por parte de outro grupo alinhado aos mesmos anseios, muitos dos que lhe concedem seu consentimento e devoção findam por não enxergam a grave contradição que se encontra presente no âmago de todo este discurso.

 A fim de desvelar os termos antagônicos que compõem esta posição, bem como a sutil inversão de realidade que é efetuada por este conglomerado de grupos menores, nos valemos aqui do conteúdo já expresso em diversos ensaios deste blogue, tais como “Miopia Ideológica”, “Impeachment? Reação Conservadora?”, “As Falácias da Esquerda face à crise atual” e ambas as partes de “Por que não devemos tributar Heranças, Lucros e Grandes Fortunas?”. Antes, no entanto, cabe precisar com mais minúcia as razões que levam aos doutos acima classificar como um horrendo modelo neoliberal “de direita” o atual governo Dilma Roussef.

 Segundo sua argumentação, as atuais políticas públicas de austeridade, as quais se estendem desde o corte de gastos públicos, benefícios trabalhistas e ministérios até a redução de recursos para programas sociais como “Minha Casa, Minha Vida”, se espelham em medidas postas em prática por outros governos considerados contrários aos ideais socialistas de proteção da classe proletária, de justiça social e de combate ao lucro e ao livre mercado. Frisam que tais políticas apenas servem ao interesse de grandes instituições financeiras em detrimento das reformas sociais necessárias e que a grande população, despossuída dos meios de produção, vê-se sumariamente prejudicada.  Em adição, por fim, tomam os projetos de ajuste fiscal promulgados nestes contextos como outro – o mais digno de réprobo - instrumento de opressão das parcelas mais desprivilegiadas.

 Contra esta visão cabem alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, não há apenas um único modelo de políticas de austeridade. Com efeito, é lugar comum afirmar que aquilo que denominamos de “política de austeridade” consiste numa série de medidas ou reformas de contenção de gastos destinadas ao combate da recessão econômica advinda de causas múltiplas. A retomada do crescimento econômico, neste sentido, é quase sempre o objetivo primordial destas medidas e muitas são as ações idealizadas nestes tipos de contexto.

 Todavia, faz-se crível condensar estes modelos diversos em quatro tipos principais de austeridade: o corte de gastos públicos e a elevação de impostos; a manutenção das despesas públicas e a elevação dos tributos; a manutenção dos impostos nos níveis atuais e o corte de gastos públicos e a redução tributária acompanhada de um corte vigoroso das despesas do Estado. Em termos de recessão econômica e impactos diretos sobre a sociedade, as duas primeiras formas de austeridade conduzem ao agravamento das condições de vida do cidadão e da economia como um todo. Por um lado, o arrefecimento de parte dos gastos públicos reduz, de certa forma, as esferas de intervenção estatal na economia, porém o confisco de capital, principalmente do setor produtivo, acarreta direta e negativamente na redução dos níveis de produção e no aumento das taxas de desemprego.  Por outro, manutenção da irresponsabilidade fiscal do Estado e a elevação dos impostos conduz à estagnação e posterior declínio da economia. O capital da sociedade, responsável por seu crescimento, continua sob confisco, ao passo que os gastos públicos apenas mantêm a ineficiência estatal e os problemas de infra-estrutura que se encontram em seu seio. As atividades econômicas tornam-se cada vez mais subservientes e dependentes do Estado, o qual progressivamente tende a regular ainda mais as atividades dos indivíduos.

  Em segundo lugar, o que se deve extrair deste resumo, contudo, é a simples constatação de que, de forma análoga à inexistência de um modelo único de políticas de austeridade, estas não se restringem aos governos adeptos à aplicação dos princípios do capitalismo de propriedade privada e de livre concorrência. O que o último século nos demonstrou, particularmente nas experiências que tiveram lugar na Europa ocidental e nos Estados Unidos, é que a prática de contenção de gastos e de reavaliação dos tributos fez-se presente tanto no projeto americano New Deal – embora se deva fazer a ressalva que a economia estadunidense à época estava longe de um regime de livre concorrência -, quanto, por exemplo, na França sob a tutela do socialista Mitterand ou no Reino Unido de diretrizes sindicalistas, antecessor à era Thatcher.

 Esta observação é tanto mais importante porque nos permite compreender com maior clareza e argúcia o fato de que, em termos de modelo de austeridade, hoje, no Brasil, nos deparamos com medidas que restringem com maior rigidez a liberdade econômica e a condução das atividades privadas dos indivíduos segundo seus próprios interesses. O livre mercado, se em tempos precedentes sofreguidamente mantinha-se vivo, atualmente extinguiram-se-lhe ainda mais os âmbitos da esfera econômica nas quais sua operação pode ser observada. A intervenção estatal em nossa economia atingiu índices altíssimos, e a contenção moderada de gastos, através do corte orçamentário tímido das despesas da União, juntamente com os projetos de elevação de tributos e possível implantação de taxação progressiva de renda, correspondem, certamente, a uma visão keynesiana da economia política, cujos princípios e objetivos estão em diametral oposição à doutrina do liberalismo econômico. Um ajuste fiscal que tenha apresentado, como um de seus pilares, um projeto orçamentário para 2016 que prefigurava um déficit primário de quase R$ 30,6 bilhões de reais enaltece com justeza o valor quiçá máximo desta visão keynesiana e que compreende o discurso socialista: o Estado é o criador por excelência da riqueza econômica.     
Retornando, agora, à posição dos grupos mencionados no início do presente ensaio, resta-nos introduzir o leitor no aspecto contraditório e irônico de toda esta confusão.

 Não fosse suficiente classificar com extremo descuido as condições políticas e econômicas atuais, tendo como base uma estratégia de polarização, moral e política, de posições ideológicas, ocorre ainda que os venerandos senhores desta esquerda se esquecem dos fatores que contribuíram para o execrável estado em que nos encontramos. De fato, é indubitável que nos últimos 13 anos a política econômica nacional foi determinada e conduzida segundo os princípios de combate à pobreza e à desigualdade entre ricos e pobres. Porém, a manutenção de amplos programas sociais de distribuição de renda exige um controle maior sobre as atividades econômicas dos indivíduos, onde a redistribuição de renda, para ser efetivada segundo um planejamento prévio, demanda, por seu turno, um complexo aparato de captação de recursos via taxação e regulação de certos preços e salários. Todo este sistema burocrático acarreta à longo prazo, além da eliminação das condições de livre concorrência, na elevação de preços de bens intermediários e produtos finais, no encarecimento da produção, no crescente sucateamento de boa parte da infra-estrutura produtiva, na queda do consumo e na desaceleração progressiva do crescimento econômico. Os efeitos colaterais deste dirigismo central sobre boa parte da esfera econômica também se fizeram sentir no campo político, onde os escândalos de corrupção evidenciam a utilização de empresas estatais como instrumentos políticos e a fragilidade da sociedade civil em face da alta concentração de poder e recursos no Estado.

 A grave contradição da esquerda brasileira - sem levar em consideração, neste preciso momento, as divisões internas entre os diversos grupos que compõem a ala socialista – consiste, deste modo, em não tomar nota de que são, justamente, a busca política pela justiça social e pelo bem comum as causas para as crises instauradas em nossa República. E ainda em contrapartida ao o que advoga, a elevação de tributos e manutenção de gastos governamentais não representam, de forma alguma, uma alternativa plausível à recessão que nos toma de assalto e que dá sinais de grave piora. Somente o quarto modelo (redução drástica de tributos e despesas governamentais) apresenta uma forma de se fazer austeridade compatível a um governo liberal e “de direita” e capaz de retomar o caminho do crescimento, porquanto limite as esferas de ação do poder político e devolva a autonomia essencial ao dinamismo das atividades econômicas. Mais do que isso, ousamos afirmar que é através da implementação dos princípios da doutrina liberal que a salvaguarda da estabilidade de nossas instituições políticas, bem como dos direitos individuais responsáveis pela limitação do escopo de ação de um líder político que se pretenda tirano, se faz sólida como lhe exige uma sociedade livre.    

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