"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A Função Política da Corrupção

 Tornou-se tema recente dos noticiários nacionais a apuração das investigações da operação Lava Jato, cujas descobertas, que se nos apresentam até o momento infelizmente incompletas, denunciam um amplo esquema de corrupção envolvendo a maior empresa estatal do país.

 Sem dúvida o maior escândalo de corrupção em toda nossa história, tanto no que diz respeito às dimensões do espólio, quanto às repercussões resultantes, o “Petrolão” nos traz à tona a existência de um fragoroso sistema de propinas, desvio de dinheiro público, formação de cartéis, financiamento ilícito de “caixa 2”, composto por profissionais das mais diferentes áreas.  

 A corrosão moral que parece efluir de toda esta inveterada tragédia envolvendo uma quantidade insondável de dinheiro público aumenta à medida que as investigações avançam e novos suspeitos são adicionados à lista das personalidades investigadas. É certo afirmar que boa parte de nossa crise atual, tanto econômica quanto política, encontra suas bases neste imbróglio de relações de influências política e privada. Não se faz forçoso afirmar que o rebaixamento, pela agência Standard & Poor’s, da nota brasileira em seu índice soberano de crédito decorre em parte da queda vertiginosa de prestígio da Petrobrás e da denúncia de sua gestão pública parcial e fraudulenta. O mesmo se pode dizer quanto à queda de popularidade da atual presidente em exercício e os severos problemas de governabilidade dela oriundos, para a qual se podem atribuir os mesmos fatores.

 Sendo tudo isto, indubitavelmente, digno de nota é, não obstante, sumamente importante apontar, nesta reflexão, outro fato que se sobressai à vista e direcionar a atenção do leitor para este aspecto que, em regime política algum, deve ser desprovido de suas legítimas considerações.

 Desde o início do Brasil Independente – e, talvez, até mesmo em épocas precedentes – é qualidade intrínseca de nosso corpo político a concentração de poder no aparato do Estado. Com uma das maiores cargas tributárias do mundo, construída ao longo de muitos anos, não faltam recursos ao detentor do monopólio da coerção física para a aplicação dos mais diferentes projetos e ideais. Na esteira deste processo, as liberdades individuais, que restringem necessariamente as esferas de ação do poder político e civil, apenas em tempos recentes ascenderam ao relevo das reflexões sociais em nosso meio. A repressão do poder público sobre os cidadãos, fosse o primeiro  constituído por elites cafeicultoras ou militares, esteve sempre associada à concentração de recursos e instrumentos nos órgãos de execução da lei civil.

 Ao mesmo tempo, porém, muito em virtude dos discursos populistas do século passado e da extrema regulação estatal na esfera econômica, a asserção de que empresas públicas monopolizadoras de setores estratégicos de nosso país estão à serviço, única e exclusivamente, das necessidades primordiais do “povo” desenvolveu-se até atingir um caráter fortemente indelével. Não se poderia contestar a necessidade da gestão estatal das principais empresas do país, visto que, sob esta égide, a exploração destas atividades através da busca pelo lucro apenas furtaria aos cidadãos da República o uso dos bens produzidos em seu território, além, é claro, da exploração decorrente deste último tipo de gestão. A mais simples menção à privatização de companhias geridas por vias públicas era repudiada com ardor quase ufanista.

 Entrementes, os últimos exemplos de grandes esquemas de corrupção trazidos pelo “Mensalão” e “Petrolão”, bem como por outras denúncias da utilização indevida de recursos públicos promulgadas, ainda que por vias não jurídicas, a outros governantes e partidos, colocam em dúvida a eficiência não apenas do modelo estatal de produção de um bem ou serviço em face de um concorrente privado, mas realçam, sobretudo, a larga distância existente entre as eventuais boas intenções de um plano de governo e os resultados discordantes que são obtidos. Para esta realidade concorrem múltiplos fatores: a ausência de incentivos adequados por parte da gestão pública; a estonteante quantidade de tributos que muito corrobora para a queda de produção e riqueza; a ausência de transparência nas contas do governo; a facilidade, com os recursos obtidos e com a ingerência sobre instrumentos de fiscalização, da criação de estratagemas de propinas e financiamento ilícito de campanhas; a dificuldade em estabelecer cálculos precisos de determinação de preços e salários e a exigência cada vez mais frequente de captação mais ampla de receita.

 Fora, é claro, outras tantas causas que podem ser encontradas no âmago deste fenômeno, salientamos aqui a falsidade de se atribuir, como teoria que, via de regra, fundamenta o esmorecer da moralidade política na influência pérfida de empresas privadas sobre delegações políticas, ao âmbito privado a condição de propulsor deste vilipêndio dos bens públicos. Em forte oposição à esta visão, enfatizamos, conforme reflexões anteriores presentes em ensaios como “Ineficiência e Restrição”, que a ineficiência pública – serviços caros, ruins e demorados - decorre da própria essência do Estado e a corrupção é tanto maior e mais ampla, quanto é mais abrangente a quantidade de recursos nele direcionado e a maior é a restrição à concorrência de iniciativa privada em diversos âmbitos de produção. Ainda mais, nos baseamos na expressão segundo a qual a corrupção, e outros atos de imoralidades semelhantes, tem sua origem antes no próprio indivíduo do que em instituições privadas ou públicas.

 Com tudo isto já teríamos razões para nos defrontarmos com o malogro de qualquer regime civil que não escolha prescindir dos meios necessários à consecução dos ideais de um Estado forte e regulador. A expansão dos instrumentos de poder em posse dos aparatos coercitivos estatais apenas viabiliza em grande medida a extensão do poder público sobre a sociedade civil e os cidadãos que nela residem.

 No entanto, e é esta a função que atribuímos ao presente ensaio, faz-se deveras necessário enfatizar o anseio pelo poder como um fim em si mesmo como um fenômeno que, se não decorre de um Estado inchado e regulador, encontra-se-lhe fortemente associado. Tal como é descrito na petição em prol do impeachment da presidente Dilma (http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/a-integra-do-pedido-de-impeachment-de-dilma-apoiado-pela-oposicao/), a obsessão do Partido dos Trabalhadores pela manutenção à todo custo do poder em suas mãos pôde legitimar as finalidades, quaisquer que estas possam ser, a despeito dos meios empregados para a sua conquista. O perigo já anunciado há séculos por pensadores liberais e conservadores no que tange à arbitrariedade do governo decorrente da retirada das limitações a ele impostas pelas liberdades econômica e política reflete-se na invalidez das normas legitimamente constituídas para assegurar a previsibilidade da ação governamental e individual e para salvaguardar os cidadãos de um eventual poder tirano, autoritário e excessivamente parcial e coercitivo nas decisões que venha a tomar sobre as demais esferas que constituem uma República.


 A atual crise política evidencia, acima de tudo, o hábito, recorrente em nossa história, de conceder à esfera pública a decisão última sobre grande parte das atividades que compõem seu conjunto. As tragédias que se imiscuem em seu seio, tais como a instrumentalização das empresas estatais em favor da manutenção do poder, não devem dissimular o fato de que a virtual deposição do chefe do poder executivo em exercício não produzirá seu efeito desejado caso profundas alterações estruturais em nossa forma de “fazer política” não sejam efetuadas no futuro. É interessantíssimo notar como a tomada de consciência sobre todo este fenômeno parece, pouco a pouco, ganhar força neste cenário. Mas não nos é permitido esquecer, contudo, que a alternativa mais eficaz à nossa crise de condução dos negócios públicos consiste, em última análise, na conquista de amplo espaço para o exercício das liberdades individuais.   

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