Escrevo este texto em
resposta a um colega que me inspirou a esta reflexão, através de um texto no
qual classifica toda a nossa ordem pública (“fascismo dominando o Brasil”) como
fascista, questionando-me inclusive a ligar os pontos de forma a compreender
como este fenômeno complexo do fascismo tem sido responsável por todas as
barbaridades e desmandos que frequentemente tem ocorrido. Minha tese
fundamental não consiste em dizer que sejamos incapazes de ligar estes pontos,
ou de que nossas capacidades dedutivas estejam afetadas de algum modo. Minha
tese fundamental, consiste antes, em dizer que não vivemos sob um regime
fascista, fato este que não coloca por terra, evidentemente, a asserção de que
nossas instituições políticas constituem um simulacro de democracia pernicioso
e desfavorável à ascensão social daqueles que mais necessitam dela.
Instituições
Brasileiras
O uso do termo “fascismo” no Brasil tornou-se
tão corriqueiro que – assim como o termo “neoliberalismo” – quase ninguém
parece ser capaz de explica-lo, entende-lo, nem dizer qual sua origem ou sua
natureza.
Com efeito, nosso Estado é autoritário. Isto é
um fator histórico, resultado de transformações e legados histórico-políticos
consolidados através do tempo. Nossa gente sempre foi maltratada, esquecida,
enterrada sob os detritos de construções malfadadas, projetadas por caudilhos,
lideres populistas, elites escravocratas e cafeicultoras, desenvolvimentistas e
protecionistas. E isto tanto à direita, quanto à esquerda.
No entanto, não são acontecimentos isolados
que configuram um regime fascista. Este é composto para uma grande variedade de
fatores que, em conjunção, produzem um regime pessoal, autoritário, violento,
populista, demagógico, protecionista. O primeiro fator a ser notado aqui é a
nossa configuração política: quantos membros da oposição desaparecem, ou foram
censurados, ou tiveram seus direitos políticos e civis violados? Quantos
partidos foram forçosamente fechados ou tiveram suas cartas-programa
censuradas? Até onde sabemos, a oposição ainda é extremamente forte no
Congresso. Ainda influenciam grupos e coligações, estudantes e meios de
comunicação. Quantos candidatos do PT foram impedidos de concorrer a cargos
municipais legislativos e executivos nas últimas eleições simplesmente pelo
fato de pertencerem a estes grupos? Ou irá argumentar que a derrota massiva de
partidos de esquerda, que a decepção, o desencanto de tantos eleitores com os
resultados de uma política econômica desastrosa, levada a cabo por uma
presidente medíocre, ordinária, não se manifestou livremente através do voto,
da vontade, da liberdade de escolha de que gozam nossos compatriotas? A derrota
política acachapante, a liberdade de escolher outros tipos de candidatos é
fascismo? A própria esquerda conseguiu se afundar num lamaçal profundo,
deixando como filhos bastardos um político putrefato como Michel Temer e um
facínora como Alexandre de Moraes e a responsabilidade sobre isto deve recair
sobre os ombros de uma nova ordem conservadora? De onde ela veio, quem a
alimentou? A estas questões urge responder antes de qualquer análise sobre as
nossas formas de governo
O segundo ponto – a liberdade de expressão,
direito sagrado, inalienável de uma sociedade livre, que decorre em última
instância do caráter indelével e íntegro da individualidade, onde teve sua
expressão podada, violada, forçosamente velada? Quais meios de comunicação,
jornais, jornalistas, autores, blogueiros (como eu), youtubers, artistas,
tiveram suas vozes censuradas?
Utilizemos como exemplo o próprio Guilherme
Boulos. Colunista da Folha de São Paulo desde 2014, nunca teve uma só palavra
censurada. Fez discursos de ódio, fomentou invasões e manifestações que
claramente feriam o direito de ir e vir, coordenou pessoalmente a invasão a um
dos principais terrenos da Volkswagen, sem abrir-se em momento algum à
possibilidade de diálogo e sem reconhecer o quão temeroso (para utilizar um
eufemismo) constituía agir desse modo. Desde 2015, participa de um programa de
debates da plataforma UOL, sem nunca ter ocorrido um único episódio de censura.
Agora lhe pergunto: a mídia o está perseguindo?
No mesmo dia de sua prisão,
a rede Globo produziu uma reportagem especial sobre a mesma. Por incrível que
pareça, o texto parecia ter sido elaborado por um membro do próprio MTST. Neste
vídeo, podemos ver que se a emissora foi parcial neste caso, não o foi em
sentido oposto ao de Guilherme Boulos[1].
E o que dizer das acusações do Ministério
Público a respeito das ligações entre MTST e o PCC[2]? Ou do enriquecimento
ilícito dos lideres da cúpula do mesmo, que inflamam massas para invasões
enquanto desembolsam um dinheiro graúdo sem explicações compreensíveis, possuem
casarões, mansões, sobrados, apartamentos, patrimônio considerável[3]? Ou do fato de que os
movimentos sociais no Brasil, especialmente em São Paulo, servem de fechada
para instituições criminosas?
O terceiro ponto refere-se aos direitos
individuais e coletivos. Ainda que me prove o contrário, não vi em lugar algum no
Brasil a revogação do Habeas Corpus, do direito de ir e vir (salvo por alguns
grupos que se acham superiores à lei e no dever de praticar a justiça com as
próprias mãos), de se manifestar, de possuir sua propriedade, seu patrimônio,
de ver preservadas sua integridade moral, física e pessoal. Recentemente, a
discussão foi acalorada a respeito da “PEC do Teto” e da possível retirada de
direitos que ela feria. Grande bobagem! Se há terrorismo no Brasil, este foi um
claro exemplo. Uma medida fiscal que congela os gastos não financeiros da
união, não afetando seus repasses futuros aos Estados e Municípios nas esferas
da saúde e da educação. É tão assustadora a ideia de que teremos de viver
dentro de nossas próprias possibilidades financeiras? O que há de tão tenebroso
nisso? Qual artigo da Constituição será violado pela PEC 241/55? Em verdade, se
se queremos preservar estes direitos tão duramente conquistados, às custas de
sangue e vidas, a PEC é necessária, é a garantia de que as gerações futuras
poderão gozar dos mesmos direitos (quiçá ainda mais sólidos) que hoje
possuímos. Ou se esquece de que as tão alardeadas conquistas sociais dos
últimos 14 anos foram produzidas pela estabilidade da moeda, pelo cumprimento
das metas de inflação, pelo conservadorismo fiscal, pelos superávits primários
das duas eras Lula (sim, das duas eras Lula, e quem diria, um crítico tão
ferrenho dos banqueiros, que se dispôs a economizar para arcar com juros e
moratórias da dívida pública?)?
Aliás, vivemos com o último governo o fim do
Brasil. O projeto de governo elaborado nada tinha de bom, de prudente, de
sensato, de promovedor das causas sociais. Pôs em risco alarmante estas
conquistas, ao legar às nossas próximas gerações a carestia que advém ao
período da gastança e a nós, que hoje vivemos, o remédio amargo de tentar
reverter a espiral do fracasso lulopetista.
É irresistível rechaçar este projeto “Brasil”
de nossa presidente, cujo nome me causa um fartum engulhoso inclassificável. O
uso eleitoreiro, político, a má gestão voluntária, danosamente decidida das nossas
riquezas naturais; a clara utilização populista que foi feita do setor
energético, da Petrobrás; a nova matriz econômica tão fracassada, perigosa; a
completa inversão de valores, o desestímulo ao empreendedorismo, fator criador
de riqueza por excelência; a fraude contábil, meticulosamente planejada com
vistas à manutenção do poder e à manipulação dos agentes econômicos, cuja
desonestidade é só um mero apelido para tamanha falta de transparência,
autoritarismo, violação de direitos, submissão do eleitor, do cidadão, a um
poder maior, que nada satisfaz, nem pode deter.
Arrisco dizer, felizmente, que tempos melhores
estão surgindo. Não da forma como
gostaríamos. Michel Temer? Vice-presidente na
eleição mais suja da história? Qual a legitimidade deste processo? Ainda assim,
foi possível dar cabo do projeto mais lastimoso que já tivemos, aquele mesmo
que nada fez pela educação básica, sucateou ainda mais a indústria, legou 12
milhões de desempregados, desestabilizou a moeda, não empreendeu reformas agrárias,
atrasou repasses ao Tesouro para financiar as castas protegidas via BNDES, que enriqueceu
pouquíssimos em detrimento do empobrecimento geral. É este estado social,
inchado, que te atrai em contraposição a um governo de poder limitado liberal?
Quarto ponto: o Estado
Democrático de Direito. Só é possível haver democracia onde há estado de
direito. Somente onde todos são iguais perante a lei, onde esta é igual a
todos, impessoal e sobre a qual ninguém está acima. A justiça não pode ser
feita por grupos organizados, sob pena de tornar-se mera expressão da força, da
virulência do mais forte. Direitos não podem ser relativizados, sob pena de
perda de validade ou – o que é pior – de uso pessoal por parte de um
governante. A relativização dos direitos simplesmente dá lugar a que a vontade
do legislador ou de quem possui mais poder torne-se a medida de todas as
coisas, o arbítrio ilimitado que lança a todos num estado de calamidade,
insegurança e imprevisibilidade. Quanto da atual miséria dos venezuelanos não
se iniciou com as amplas nacionalizações, as tomadas de propriedades através da
violações de direitos básicos perpetrados por Chavez e Maduro, sob o pretexto da
função social da propriedade; ou de que cada cidadão deveria agir em nome do
bem comum, mesmo sabendo que há tantas definições, tantos valores possíveis
associados a este termo quanto há de habitantes no mundo? Eis o risco da
relativização das normas do estado de direito. Não hão como eliminar sua
impessoalidade sem incorrer na ditadura.
Há grandes propriedades em desuso? Sem dúvida.
Isto é justo? Não sei. Mas não é justo que esta seja violada, sob a pretensa
justificação de que está em desuso. É violento que pessoas que nada possuem
tenham seus barracos destruídos? Absolutamente sim! Como disse, nosso Estado é
responsável em grande medida pelo fato de que 10% de nossa população não tenham
onde morar. O que dizer dos aumentos de impostos sobre propriedade, que afastam
os mais pobres dos grandes centros? Das Leis de impedimento ou de restrição á
construção de grandes prédios, que criam escassez artificial de moradias e
elevam seus preços? Das exageradas regulamentações que criam burocracias e
encarecimento dos serviços e produtos? Ou das leis trabalhistas engessadas que
impedem a geração de novos empregos e a entrada dos mais desvalidos no mercado
de trabalho? Ou, pior ainda, que dizer do fato de que propriedades construídas
pelas mãos nuas de tantos empobrecidos não possam ser regulamentadas ou
regularizadas? Não há nada mais autoritário do que não reconhecer o fruto do
trabalho de outrem.
Se a
prisão de Boulos foi autoritária e descabida, há grandes razões pelas quais
desconfio que realmente foi. Mas dizer daí que enfrentamos uma criminalização
dos movimentos sociais consiste numa passada superior à perna. Quantas
universidades, federais e públicas, não sofrem com os desmandos de movimentos “estudantis”
que desfraldam bandeiras partidárias, fazem dos centros de ensino verdadeiros celeiros
para recrutamento, palco para consolidação de poder político-partidário sem que
haja uma única voz, uma única força, um único instrumento legítimo, legal, que
possa dar um basta neste processo odioso, de sucateamento de nosso ensino e da
nossa juventude? O Brasil talvez seja o país onde mais movimentos sociais ocorrem
simultaneamente e tenham carta branca para agir. Violam direitos
constitucionalmente salvaguardados, e ninguém tem a coragem, o destemor de
ousar levantar um dedo, fazer valer os direitos pétreos que nossa Carta magna
tão amorosamente tem em seu seio, tamanha a “bunda molice”, a falta de caráter
de nossos representantes. É verdade que muitos manifestantes do grupos como MST
e MTST são vitimas de seguidas violências injustas. Mas não há como negar que
boa parte destas violações não são provocadas pelo fato de pertencerem a estes
grupos, nem esta fato constitui ensejo para afirmar que os movimentos sociais
no Brasil, em caráter geral e universal, estão sob perseguição política.
E sobre a relação amistosa entre fascismo e
liberalismo: talvez tenha lido o texto do veículo Voyager a respeito do assunto[4]. Apenas digo que este
texto é fruto de uma desonestidade atroz, capaz inclusive de ter distorcido as
fontes citadas e imputado ao texto citações que seus autores nunca disseram.
Prontamente, já me detive sobre o assunto e produzi a minha réplica, a qual
pode ser livremente consultada[5].
Em suma, caro amigo, muito
se diz que os intelectuais se detem a interpretar a realidade que os circunda,
sem muito fazer para alterá-la. Discordo frontalmente. Intelectuais produzem
realidades, criam narrativas sobre o mundo que os rodeia, de tal forma que
conseguem, quando assim deseja, enxergar aquilo que suas lentes estão
preparadas de antemão para ver. Não vivemos sob um regime fascista, e muito
daquilo que hoje poderíamos designar com tal alcunha, é mais um resultado
histórico, fruto dos últimos governos ou da longa trajetória política
brasileira, do que os 9 meses do atual governo Temer. Espero sinceramente
melhores dias ao nosso país e a nossos compatriotas, os que hoje vivem e os que
estão por nascer. Farei de tudo para que dias melhores possam surgir na
alvorada do amanhã. E, sinceramente, torço para que faça o mesmo.
[1] https://www.youtube.com/results?search_query=Reportagem+globo+pris%C3%A3o+do+Boulos
[2] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2016-08-05/msts-pcc.html
[3] http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,msts-foi-criado-para-disfarcar-organizacao-criminosa-diz-delegado,10000067210
[4] http://voyager1.net/historia/pare-de-achar-que-liberalismo-e-fascismo-sao-opostos/
[5] http://ocorreioliberal.blogspot.com.br/2017/01/cuidado-voyager-nao-sabe-o-que-diz.html
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