"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Carta ao Amigo - Por que não vivemos num regime Fascista


 Escrevo este texto em resposta a um colega que me inspirou a esta reflexão, através de um texto no qual classifica toda a nossa ordem pública (“fascismo dominando o Brasil”) como fascista, questionando-me inclusive a ligar os pontos de forma a compreender como este fenômeno complexo do fascismo tem sido responsável por todas as barbaridades e desmandos que frequentemente tem ocorrido. Minha tese fundamental não consiste em dizer que sejamos incapazes de ligar estes pontos, ou de que nossas capacidades dedutivas estejam afetadas de algum modo. Minha tese fundamental, consiste antes, em dizer que não vivemos sob um regime fascista, fato este que não coloca por terra, evidentemente, a asserção de que nossas instituições políticas constituem um simulacro de democracia pernicioso e desfavorável à ascensão social daqueles que mais necessitam dela.

Instituições Brasileiras

 O uso do termo “fascismo” no Brasil tornou-se tão corriqueiro que – assim como o termo “neoliberalismo” – quase ninguém parece ser capaz de explica-lo, entende-lo, nem dizer qual sua origem ou sua natureza.

 Com efeito, nosso Estado é autoritário. Isto é um fator histórico, resultado de transformações e legados histórico-políticos consolidados através do tempo. Nossa gente sempre foi maltratada, esquecida, enterrada sob os detritos de construções malfadadas, projetadas por caudilhos, lideres populistas, elites escravocratas e cafeicultoras, desenvolvimentistas e protecionistas. E isto tanto à direita, quanto à esquerda.

 No entanto, não são acontecimentos isolados que configuram um regime fascista. Este é composto para uma grande variedade de fatores que, em conjunção, produzem um regime pessoal, autoritário, violento, populista, demagógico, protecionista. O primeiro fator a ser notado aqui é a nossa configuração política: quantos membros da oposição desaparecem, ou foram censurados, ou tiveram seus direitos políticos e civis violados? Quantos partidos foram forçosamente fechados ou tiveram suas cartas-programa censuradas? Até onde sabemos, a oposição ainda é extremamente forte no Congresso. Ainda influenciam grupos e coligações, estudantes e meios de comunicação. Quantos candidatos do PT foram impedidos de concorrer a cargos municipais legislativos e executivos nas últimas eleições simplesmente pelo fato de pertencerem a estes grupos? Ou irá argumentar que a derrota massiva de partidos de esquerda, que a decepção, o desencanto de tantos eleitores com os resultados de uma política econômica desastrosa, levada a cabo por uma presidente medíocre, ordinária, não se manifestou livremente através do voto, da vontade, da liberdade de escolha de que gozam nossos compatriotas? A derrota política acachapante, a liberdade de escolher outros tipos de candidatos é fascismo? A própria esquerda conseguiu se afundar num lamaçal profundo, deixando como filhos bastardos um político putrefato como Michel Temer e um facínora como Alexandre de Moraes e a responsabilidade sobre isto deve recair sobre os ombros de uma nova ordem conservadora? De onde ela veio, quem a alimentou? A estas questões urge responder antes de qualquer análise sobre as nossas formas de governo

   O segundo ponto – a liberdade de expressão, direito sagrado, inalienável de uma sociedade livre, que decorre em última instância do caráter indelével e íntegro da individualidade, onde teve sua expressão podada, violada, forçosamente velada? Quais meios de comunicação, jornais, jornalistas, autores, blogueiros (como eu), youtubers, artistas, tiveram suas vozes censuradas?

 Utilizemos como exemplo o próprio Guilherme Boulos. Colunista da Folha de São Paulo desde 2014, nunca teve uma só palavra censurada. Fez discursos de ódio, fomentou invasões e manifestações que claramente feriam o direito de ir e vir, coordenou pessoalmente a invasão a um dos principais terrenos da Volkswagen, sem abrir-se em momento algum à possibilidade de diálogo e sem reconhecer o quão temeroso (para utilizar um eufemismo) constituía agir desse modo. Desde 2015, participa de um programa de debates da plataforma UOL, sem nunca ter ocorrido um único episódio de censura. Agora lhe pergunto: a mídia o está perseguindo?
No mesmo dia de sua prisão, a rede Globo produziu uma reportagem especial sobre a mesma. Por incrível que pareça, o texto parecia ter sido elaborado por um membro do próprio MTST. Neste vídeo, podemos ver que se a emissora foi parcial neste caso, não o foi em sentido oposto ao de Guilherme Boulos[1].

 E o que dizer das acusações do Ministério Público a respeito das ligações entre MTST e o PCC[2]? Ou do enriquecimento ilícito dos lideres da cúpula do mesmo, que inflamam massas para invasões enquanto desembolsam um dinheiro graúdo sem explicações compreensíveis, possuem casarões, mansões, sobrados, apartamentos, patrimônio considerável[3]? Ou do fato de que os movimentos sociais no Brasil, especialmente em São Paulo, servem de fechada para instituições criminosas?

 O terceiro ponto refere-se aos direitos individuais e coletivos. Ainda que me prove o contrário, não vi em lugar algum no Brasil a revogação do Habeas Corpus, do direito de ir e vir (salvo por alguns grupos que se acham superiores à lei e no dever de praticar a justiça com as próprias mãos), de se manifestar, de possuir sua propriedade, seu patrimônio, de ver preservadas sua integridade moral, física e pessoal. Recentemente, a discussão foi acalorada a respeito da “PEC do Teto” e da possível retirada de direitos que ela feria. Grande bobagem! Se há terrorismo no Brasil, este foi um claro exemplo. Uma medida fiscal que congela os gastos não financeiros da união, não afetando seus repasses futuros aos Estados e Municípios nas esferas da saúde e da educação. É tão assustadora a ideia de que teremos de viver dentro de nossas próprias possibilidades financeiras? O que há de tão tenebroso nisso? Qual artigo da Constituição será violado pela PEC 241/55? Em verdade, se se queremos preservar estes direitos tão duramente conquistados, às custas de sangue e vidas, a PEC é necessária, é a garantia de que as gerações futuras poderão gozar dos mesmos direitos (quiçá ainda mais sólidos) que hoje possuímos. Ou se esquece de que as tão alardeadas conquistas sociais dos últimos 14 anos foram produzidas pela estabilidade da moeda, pelo cumprimento das metas de inflação, pelo conservadorismo fiscal, pelos superávits primários das duas eras Lula (sim, das duas eras Lula, e quem diria, um crítico tão ferrenho dos banqueiros, que se dispôs a economizar para arcar com juros e moratórias da dívida pública?)?


 Aliás, vivemos com o último governo o fim do Brasil. O projeto de governo elaborado nada tinha de bom, de prudente, de sensato, de promovedor das causas sociais. Pôs em risco alarmante estas conquistas, ao legar às nossas próximas gerações a carestia que advém ao período da gastança e a nós, que hoje vivemos, o remédio amargo de tentar reverter a espiral do fracasso lulopetista.

 É irresistível rechaçar este projeto “Brasil” de nossa presidente, cujo nome me causa um fartum engulhoso inclassificável. O uso eleitoreiro, político, a má gestão voluntária, danosamente decidida das nossas riquezas naturais; a clara utilização populista que foi feita do setor energético, da Petrobrás; a nova matriz econômica tão fracassada, perigosa; a completa inversão de valores, o desestímulo ao empreendedorismo, fator criador de riqueza por excelência; a fraude contábil, meticulosamente planejada com vistas à manutenção do poder e à manipulação dos agentes econômicos, cuja desonestidade é só um mero apelido para tamanha falta de transparência, autoritarismo, violação de direitos, submissão do eleitor, do cidadão, a um poder maior, que nada satisfaz, nem pode deter.

 Arrisco dizer, felizmente, que tempos melhores estão surgindo. Não da forma como 
gostaríamos. Michel Temer? Vice-presidente na eleição mais suja da história? Qual a legitimidade deste processo? Ainda assim, foi possível dar cabo do projeto mais lastimoso que já tivemos, aquele mesmo que nada fez pela educação básica, sucateou ainda mais a indústria, legou 12 milhões de desempregados, desestabilizou a moeda, não empreendeu reformas agrárias, atrasou repasses ao Tesouro para financiar as castas protegidas via BNDES, que enriqueceu pouquíssimos em detrimento do empobrecimento geral. É este estado social, inchado, que te atrai em contraposição a um governo de poder limitado liberal?

 Quarto ponto: o Estado Democrático de Direito. Só é possível haver democracia onde há estado de direito. Somente onde todos são iguais perante a lei, onde esta é igual a todos, impessoal e sobre a qual ninguém está acima. A justiça não pode ser feita por grupos organizados, sob pena de tornar-se mera expressão da força, da virulência do mais forte. Direitos não podem ser relativizados, sob pena de perda de validade ou – o que é pior – de uso pessoal por parte de um governante. A relativização dos direitos simplesmente dá lugar a que a vontade do legislador ou de quem possui mais poder torne-se a medida de todas as coisas, o arbítrio ilimitado que lança a todos num estado de calamidade, insegurança e imprevisibilidade. Quanto da atual miséria dos venezuelanos não se iniciou com as amplas nacionalizações, as tomadas de propriedades através da violações de direitos básicos perpetrados por Chavez e Maduro, sob o pretexto da função social da propriedade; ou de que cada cidadão deveria agir em nome do bem comum, mesmo sabendo que há tantas definições, tantos valores possíveis associados a este termo quanto há de habitantes no mundo? Eis o risco da relativização das normas do estado de direito. Não hão como eliminar sua impessoalidade sem incorrer na ditadura.

 Há grandes propriedades em desuso? Sem dúvida. Isto é justo? Não sei. Mas não é justo que esta seja violada, sob a pretensa justificação de que está em desuso. É violento que pessoas que nada possuem tenham seus barracos destruídos? Absolutamente sim! Como disse, nosso Estado é responsável em grande medida pelo fato de que 10% de nossa população não tenham onde morar. O que dizer dos aumentos de impostos sobre propriedade, que afastam os mais pobres dos grandes centros? Das Leis de impedimento ou de restrição á construção de grandes prédios, que criam escassez artificial de moradias e elevam seus preços? Das exageradas regulamentações que criam burocracias e encarecimento dos serviços e produtos? Ou das leis trabalhistas engessadas que impedem a geração de novos empregos e a entrada dos mais desvalidos no mercado de trabalho? Ou, pior ainda, que dizer do fato de que propriedades construídas pelas mãos nuas de tantos empobrecidos não possam ser regulamentadas ou regularizadas? Não há nada mais autoritário do que não reconhecer o fruto do trabalho de outrem.

  Se a prisão de Boulos foi autoritária e descabida, há grandes razões pelas quais desconfio que realmente foi. Mas dizer daí que enfrentamos uma criminalização dos movimentos sociais consiste numa passada superior à perna. Quantas universidades, federais e públicas, não sofrem com os desmandos de movimentos “estudantis” que desfraldam bandeiras partidárias, fazem dos centros de ensino verdadeiros celeiros para recrutamento, palco para consolidação de poder político-partidário sem que haja uma única voz, uma única força, um único instrumento legítimo, legal, que possa dar um basta neste processo odioso, de sucateamento de nosso ensino e da nossa juventude? O Brasil talvez seja o país onde mais movimentos sociais ocorrem simultaneamente e tenham carta branca para agir. Violam direitos constitucionalmente salvaguardados, e ninguém tem a coragem, o destemor de ousar levantar um dedo, fazer valer os direitos pétreos que nossa Carta magna tão amorosamente tem em seu seio, tamanha a “bunda molice”, a falta de caráter de nossos representantes. É verdade que muitos manifestantes do grupos como MST e MTST são vitimas de seguidas violências injustas. Mas não há como negar que boa parte destas violações não são provocadas pelo fato de pertencerem a estes grupos, nem esta fato constitui ensejo para afirmar que os movimentos sociais no Brasil, em caráter geral e universal, estão sob perseguição política.

 E sobre a relação amistosa entre fascismo e liberalismo: talvez tenha lido o texto do veículo Voyager a respeito do assunto[4]. Apenas digo que este texto é fruto de uma desonestidade atroz, capaz inclusive de ter distorcido as fontes citadas e imputado ao texto citações que seus autores nunca disseram. Prontamente, já me detive sobre o assunto e produzi a minha réplica, a qual pode ser livremente consultada[5].
Em suma, caro amigo, muito se diz que os intelectuais se detem a interpretar a realidade que os circunda, sem muito fazer para alterá-la. Discordo frontalmente. Intelectuais produzem realidades, criam narrativas sobre o mundo que os rodeia, de tal forma que conseguem, quando assim deseja, enxergar aquilo que suas lentes estão preparadas de antemão para ver. Não vivemos sob um regime fascista, e muito daquilo que hoje poderíamos designar com tal alcunha, é mais um resultado histórico, fruto dos últimos governos ou da longa trajetória política brasileira, do que os 9 meses do atual governo Temer. Espero sinceramente melhores dias ao nosso país e a nossos compatriotas, os que hoje vivem e os que estão por nascer. Farei de tudo para que dias melhores possam surgir na alvorada do amanhã. E, sinceramente, torço para que faça o mesmo.




[1] https://www.youtube.com/results?search_query=Reportagem+globo+pris%C3%A3o+do+Boulos
[2] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2016-08-05/msts-pcc.html
[3] http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,msts-foi-criado-para-disfarcar-organizacao-criminosa-diz-delegado,10000067210
[4] http://voyager1.net/historia/pare-de-achar-que-liberalismo-e-fascismo-sao-opostos/
[5] http://ocorreioliberal.blogspot.com.br/2017/01/cuidado-voyager-nao-sabe-o-que-diz.html

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