Neste último dia 09/09
teve lugar na cidade do Rio de janeiro a Cúpula Internacional de Prefeitos, evento
no qual estiveram presentes prefeitos de origens geográfica e política diversas
e cujo objeto de discussão concentrou-se nos desafios que grandes metrópoles
hoje apresentam em termos de planejamento e gestão urbanas mais sustentáveis e
igualitárias.
Dentre as diversas
posições não faltaram, é claro, partilhas de experiências e testemunhos acerca
de planejamentos considerados bem sucedidos. Por exemplo, um dos convidados, Ken
Livingstone, detalhou suas estratégias tomadas enquanto prefeito de uma das
maiores megalópoles do globo, as quais consistiram em pesadas taxações sobre
congestionamento. Enrique Peñalosa, por seu turno, narrou de forma sucinta as
formas de implementação do sistema BRT Transmilênio, destinado ao transporte
diário de 2,2 milhões de pessoas por 113 km de vias exclusivas para transporte
público.
De fato, tornou-se
evidente durante o debate o âmago em torno do qual giravam os diversos tipos e idéias
de planejamento: o congestionamento freqüente em grandes cidades, em razão da
proeminência do transporte privado e individual, e suas conseqüências insalubres.
Evidenciou-se, de igual modo, a desigualdade de condições de mobilidade entre
os cidadãos que compunham a cidade as diferentes formas encontradas para lidar
com tal situação.
Em dado momento,
contudo, uma estranha asserção foi proferida e de cujo conteúdo o presente
ensaio apresenta as reflexões por ela engendradas – cabe mencionar ao leitor a
ênfase concedida exclusivamente ao aspecto da igualdade nesta discussão. Sem
haver, no presente contexto, a necessidade de mencionar qual dos representantes
políticos a elevou em alto e bom tom, limito-me a reproduzi-la nos seguintes
termos: “A constituição brasileira assegura que todos são iguais perante e lei,
e deste modo a todos os cidadãos e meios diferentes de transporte deve haver a
mesma quantidade de espaço”.
Indubitavelmente, a
sentença nos remete aquilo que se tornou a questão do equilíbrio entre as
formas de deslocamento em uma grande cidade. Dizendo sem rodeios, é quase
lugar-comum afirmar que os problemas da convivência entre carros, pedestres,
ônibus, caminhões, motocicletas, bicicletas, entre outros, são hoje objeto da
esfera política, isto é, devem ter suas resoluções planejadas e promulgadas
pelos órgãos que concentram em si os poderes coercitivos legítimos. À primeira
vista, é de sóbrio parecer estender a este campo automatizado as mesmas normas
civis que regem, de certa forma, o comportamento dos indivíduos isoladamente. A
cada um é reservado a liberdade de dispor-se em qualquer direção e a liberdade
de obter, pelos meios legais, os objetivos que se possa ter em alta estima. Sob
este viés, as leis de tráfego consistem em mais um elemento constitutivo do
códice responsável por regulamentar a vida em comunidade.
Não obstante, avançando
a uma análise mais aguçada, e aqui inserindo o “axioma” reproduzido acima, nota-se,
com forte descontentamento, algo mais do que uma simples e inócua regulamentação
com vistas à paz social entre condutores e pedestres, carros, ônibus e
bicicletas. A igualdade perante a lei, tal qual todos os demais princípios que
constituem o cerne do Estado Democrático de Direito, contém em si a qualidade
de serem fórmulas jurídicas gerais, afeiçoadas à aplicação posterior a toda a
sorte de contendas e contextos, independentemente dos seus conteúdos
particulares e precisos. Estes direitos formais devem seu valor justamente ao
fato de, em virtude de seu caráter geral e de sua aplicação rígida a todas as
situações, conferir aos indivíduos e ao poder político a imprevisibilidade
quanto às conseqüências que podem produzir para os agentes eventualmente direta
e indiretamente envolvidos em dada relação; e de assegurar, portanto, a imparcialidade
e a impessoalidade daquele ou daqueles que emitirão um juízo definitivo a
respeito de determinado litígio.
Esta igualdade,
puramente formal, possui outro grande valor elevado, a saber, a restrição sobre
a ingerência indevida do poder coercitivo sobre os cidadãos e destes sobre os
demais e o impedimento à concessão de privilégios ou oportunidades
discriminatórias que, ou violam o princípio da igualdade de todos perante a
lei, ou desvirtuam o caráter formal deste princípio.
E porque, em seu
sentido político, a igualdade formal significa antes de tudo a criação de uma
estrutura civil que faculte a todos e a cada um as possibilidades de busca de
seus objetivos pessoais, definidos intima e livremente, a partir da eliminação
de uma desigualdade de direito que possa conferir a alguns o poder de impedir coercitivamente
o acesso de outros cidadãos a direitos ou serviços semelhantes, ela pouco ou
nada compatibiliza-se com decisões políticas voltadas à condução de aspectos
pertencentes à esfera privada.
Isto resulta, sem
dúvida, da afirmação inconteste de que, estando o poder em exercício submetido
aos mesmos princípios, a simples tentativa de ultrapassar o caráter meramente
formal do direito mediante a tomada de decisões de autoridade sobre cada caso
em particular, segundo critérios que não constam em norma geral, mas que antes
se condicionam ao arbítrio daquele que julga, constitui uma violenta antítese
às condições que asseguram um regime arregimentado sobre amplas liberdades
individuais. Afinal, se o caráter geral de uma norma assegura a
imprevisibilidade dos efeitos de sua aplicação, a observância, ilimitada e
desvinculada de normas formais, do legislador aos conteúdos de cada litígio lhe
assegura uma previsibilidade dos efeitos de suas decisões e, portanto, lhe
confere poder escolher, segundo critérios pessoais, quais as ações que, se
praticadas, lhe concederão resultados mais alinhados a suas inclinações.
Conduzindo a exposição
ao lume das questões práticas, também em seu sentido político o princípio da
igualdade formal não concede nenhum tipo de poder legítimo, seja qual for a
forma de governo, que possa ditar ou planejar a forma como determinados
indivíduos deverão empregar seus recursos ou o que deverão fazer ao longo de
sua existência. Poder dispor, como qualquer outro, de minhas faculdades não
concede a organização alguma o arbítrio de decidir para quais finalidades
destinarei tais forças.
A validade deste
raciocínio estende-se para todos os campos os quais os princípios do Estado de
Direito compreendem como membros da vida em comunidade. Seja na economia, na
organização de partidos ou no uso comum de espaços públicos, a igualdade formal
não pode subsistir se associada à igualdade substancial planejada. Sendo a
primeira a condição de possibilidade da desigualdade de riquezas, de objetivos,
pensamentos e opiniões e de conquistas pessoais conforme mérito ou sorte, a distribuição
forçosa de recursos conforme um projeto de igualitarização não somente não
decorre de forma alguma do princípio da igualdade de todos perante a lei, como
necessariamente opera com a supressão das liberdades individuais.
Tal fato é ainda mais
visível e indigno de reprovação no presente contexto, onde a idéia de uma
distribuição “igual” de espaço para todos os meios de transporte é tanto mais
descabida, quanto se passa a considerar as distintas dimensões físicas que
apresentam uma bicicleta e um carro com capacidade para cinco pessoas, ou entre
um pedestre e um caminhão de carga de alimentos perecíveis. A igualdade perante
a lei não legisla, nem possui condições para tal, sobre a alocação dos recursos
disponíveis em dada república. Apenas considera que existem tantos fins
distintos quanto o número de indivíduos que compõem o corpo civil e que os
resultados de seus esforços são condicionados a inúmeras variáveis, como determinação,
investimento, trabalho, competência, talento ou sorte.
Com isso não se tem
por intenção afirmar que congestionamentos e redes de transporte público não
devem ser também monitoradas e reguladas pelo poder público. O que, sem sombra
de dúvida, se coloca em evidência neste ensaio é o forte caráter político ou
ideológico que se encontra presente em um combate à “burguesia urbana” através
da criação de inúmeras ciclovias em espaços historicamente utilizados por
veículos automatizados das mais diferentes dimensões, sem ao menos previamente
debruçar-se sobre possíveis soluções aos atuais problemas do tráfego inchado de
cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro e da qualidade ruim dos serviços
públicos ofertados. A criação de ciclovias e espaços semelhantes ao longo da
cidade não apenas carece, neste momento, de legitimidade no que tange ao
princípio formal da igualdade perante a lei, como também não é minimamente
capaz de oferecer a segurança necessária aos usuários de bicicletas e aos
pedestres que receberam às mãos o convite ao uso deste espaço. O planejamento e a prática de uma reforma para
construir cidades mais igualitárias é aqui, desta forma, mal feito, resultado
de anseios políticos escusos e prejudicial aos próprios princípios que conferem
ao cidadão a supremacia de seus direitos.
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