"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A Cúpula de Prefeitos: Planejamento à favor do cidadão?



 Neste último dia 09/09 teve lugar na cidade do Rio de janeiro a Cúpula Internacional de Prefeitos, evento no qual estiveram presentes prefeitos de origens geográfica e política diversas e cujo objeto de discussão concentrou-se nos desafios que grandes metrópoles hoje apresentam em termos de planejamento e gestão urbanas mais sustentáveis e igualitárias.

 Dentre as diversas posições não faltaram, é claro, partilhas de experiências e testemunhos acerca de planejamentos considerados bem sucedidos.  Por exemplo, um dos convidados, Ken Livingstone, detalhou suas estratégias tomadas enquanto prefeito de uma das maiores megalópoles do globo, as quais consistiram em pesadas taxações sobre congestionamento. Enrique Peñalosa, por seu turno, narrou de forma sucinta as formas de implementação do sistema BRT Transmilênio, destinado ao transporte diário de 2,2 milhões de pessoas por 113 km de vias exclusivas para transporte público.

 De fato, tornou-se evidente durante o debate o âmago em torno do qual giravam os diversos tipos e idéias de planejamento: o congestionamento freqüente em grandes cidades, em razão da proeminência do transporte privado e individual, e suas conseqüências insalubres. Evidenciou-se, de igual modo, a desigualdade de condições de mobilidade entre os cidadãos que compunham a cidade as diferentes formas encontradas para lidar com tal situação.

 Em dado momento, contudo, uma estranha asserção foi proferida e de cujo conteúdo o presente ensaio apresenta as reflexões por ela engendradas – cabe mencionar ao leitor a ênfase concedida exclusivamente ao aspecto da igualdade nesta discussão. Sem haver, no presente contexto, a necessidade de mencionar qual dos representantes políticos a elevou em alto e bom tom, limito-me a reproduzi-la nos seguintes termos: “A constituição brasileira assegura que todos são iguais perante e lei, e deste modo a todos os cidadãos e meios diferentes de transporte deve haver a mesma quantidade de espaço”.  

 Indubitavelmente, a sentença nos remete aquilo que se tornou a questão do equilíbrio entre as formas de deslocamento em uma grande cidade. Dizendo sem rodeios, é quase lugar-comum afirmar que os problemas da convivência entre carros, pedestres, ônibus, caminhões, motocicletas, bicicletas, entre outros, são hoje objeto da esfera política, isto é, devem ter suas resoluções planejadas e promulgadas pelos órgãos que concentram em si os poderes coercitivos legítimos. À primeira vista, é de sóbrio parecer estender a este campo automatizado as mesmas normas civis que regem, de certa forma, o comportamento dos indivíduos isoladamente. A cada um é reservado a liberdade de dispor-se em qualquer direção e a liberdade de obter, pelos meios legais, os objetivos que se possa ter em alta estima. Sob este viés, as leis de tráfego consistem em mais um elemento constitutivo do códice responsável por regulamentar a vida em comunidade.   

 Não obstante, avançando a uma análise mais aguçada, e aqui inserindo o “axioma” reproduzido acima, nota-se, com forte descontentamento, algo mais do que uma simples e inócua regulamentação com vistas à paz social entre condutores e pedestres, carros, ônibus e bicicletas. A igualdade perante a lei, tal qual todos os demais princípios que constituem o cerne do Estado Democrático de Direito, contém em si a qualidade de serem fórmulas jurídicas gerais, afeiçoadas à aplicação posterior a toda a sorte de contendas e contextos, independentemente dos seus conteúdos particulares e precisos. Estes direitos formais devem seu valor justamente ao fato de, em virtude de seu caráter geral e de sua aplicação rígida a todas as situações, conferir aos indivíduos e ao poder político a imprevisibilidade quanto às conseqüências que podem produzir para os agentes eventualmente direta e indiretamente envolvidos em dada relação; e de assegurar, portanto, a imparcialidade e a impessoalidade daquele ou daqueles que emitirão um juízo definitivo a respeito de determinado litígio.

 Esta igualdade, puramente formal, possui outro grande valor elevado, a saber, a restrição sobre a ingerência indevida do poder coercitivo sobre os cidadãos e destes sobre os demais e o impedimento à concessão de privilégios ou oportunidades discriminatórias que, ou violam o princípio da igualdade de todos perante a lei, ou desvirtuam o caráter formal deste princípio.

 E porque, em seu sentido político, a igualdade formal significa antes de tudo a criação de uma estrutura civil que faculte a todos e a cada um as possibilidades de busca de seus objetivos pessoais, definidos intima e livremente, a partir da eliminação de uma desigualdade de direito que possa conferir a alguns o poder de impedir coercitivamente o acesso de outros cidadãos a direitos ou serviços semelhantes, ela pouco ou nada compatibiliza-se com decisões políticas voltadas à condução de aspectos pertencentes à esfera privada.

 Isto resulta, sem dúvida, da afirmação inconteste de que, estando o poder em exercício submetido aos mesmos princípios, a simples tentativa de ultrapassar o caráter meramente formal do direito mediante a tomada de decisões de autoridade sobre cada caso em particular, segundo critérios que não constam em norma geral, mas que antes se condicionam ao arbítrio daquele que julga, constitui uma violenta antítese às condições que asseguram um regime arregimentado sobre amplas liberdades individuais. Afinal, se o caráter geral de uma norma assegura a imprevisibilidade dos efeitos de sua aplicação, a observância, ilimitada e desvinculada de normas formais, do legislador aos conteúdos de cada litígio lhe assegura uma previsibilidade dos efeitos de suas decisões e, portanto, lhe confere poder escolher, segundo critérios pessoais, quais as ações que, se praticadas, lhe concederão resultados mais alinhados a suas inclinações.

 Conduzindo a exposição ao lume das questões práticas, também em seu sentido político o princípio da igualdade formal não concede nenhum tipo de poder legítimo, seja qual for a forma de governo, que possa ditar ou planejar a forma como determinados indivíduos deverão empregar seus recursos ou o que deverão fazer ao longo de sua existência. Poder dispor, como qualquer outro, de minhas faculdades não concede a organização alguma o arbítrio de decidir para quais finalidades destinarei tais forças.  

 A validade deste raciocínio estende-se para todos os campos os quais os princípios do Estado de Direito compreendem como membros da vida em comunidade. Seja na economia, na organização de partidos ou no uso comum de espaços públicos, a igualdade formal não pode subsistir se associada à igualdade substancial planejada. Sendo a primeira a condição de possibilidade da desigualdade de riquezas, de objetivos, pensamentos e opiniões e de conquistas pessoais conforme mérito ou sorte, a distribuição forçosa de recursos conforme um projeto de igualitarização não somente não decorre de forma alguma do princípio da igualdade de todos perante a lei, como necessariamente opera com a supressão das liberdades individuais.

 Tal fato é ainda mais visível e indigno de reprovação no presente contexto, onde a idéia de uma distribuição “igual” de espaço para todos os meios de transporte é tanto mais descabida, quanto se passa a considerar as distintas dimensões físicas que apresentam uma bicicleta e um carro com capacidade para cinco pessoas, ou entre um pedestre e um caminhão de carga de alimentos perecíveis. A igualdade perante a lei não legisla, nem possui condições para tal, sobre a alocação dos recursos disponíveis em dada república. Apenas considera que existem tantos fins distintos quanto o número de indivíduos que compõem o corpo civil e que os resultados de seus esforços são condicionados a inúmeras variáveis, como determinação, investimento, trabalho, competência, talento ou sorte.


 Com isso não se tem por intenção afirmar que congestionamentos e redes de transporte público não devem ser também monitoradas e reguladas pelo poder público. O que, sem sombra de dúvida, se coloca em evidência neste ensaio é o forte caráter político ou ideológico que se encontra presente em um combate à “burguesia urbana” através da criação de inúmeras ciclovias em espaços historicamente utilizados por veículos automatizados das mais diferentes dimensões, sem ao menos previamente debruçar-se sobre possíveis soluções aos atuais problemas do tráfego inchado de cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro e da qualidade ruim dos serviços públicos ofertados. A criação de ciclovias e espaços semelhantes ao longo da cidade não apenas carece, neste momento, de legitimidade no que tange ao princípio formal da igualdade perante a lei, como também não é minimamente capaz de oferecer a segurança necessária aos usuários de bicicletas e aos pedestres que receberam às mãos o convite ao uso deste espaço.  O planejamento e a prática de uma reforma para construir cidades mais igualitárias é aqui, desta forma, mal feito, resultado de anseios políticos escusos e prejudicial aos próprios princípios que conferem ao cidadão a supremacia de seus direitos. 

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