"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Por que não devemos tributar Heranças, Lucros e grandes Fortunas? (Segunda Parte)



O Valor-trabalho e a exploração. A subjetividade do valor econômico e a teoria dos juros (preferência temporal).

 Antes caracterizada como fruto de uma abstração, o contrato social de Rousseau e suas críticas face à propriedade e à acumulação de riqueza delineiam-se como teoria científica apenas a partir da obra “O Capital”, do pensador alemão Karl Marx, lançada à público em 1867. Com o subtítulo de “Crítica da Economia Política”, este imenso escrito, a partir de uma análise até então minuciosa dos processos históricos de acumulação primitiva do capital, da formação da mercadoria e da forma como esta opera em um contexto social plenamente inserido no processo de revolução industrial, nos conduz a um escopo de argumentos, os quais, juntos, nos tencionam a crer residir na exploração da “classe” operária a constituição e condição de possibilidade do capitalismo. Mais notadamente, porquanto a mercadoria e sua lógica de operação tenham se tornado senhores de todas as esferas de nossa vida enquanto criaturas políticas, sociais, humanas e econômicas, para Marx será de crucial importância desvendar-lhes os segredos de como se formam e nos influenciam.

Desse modo, a fim de conferir coesão a sua crítica, o autor parte de dois dos principais fundamentos econômicos estabelecidos por teóricos precedentes, que podem ser resumidos nas proposições de que a fonte de toda a riqueza reside no trabalho e de que a determinação do valor econômico de determinado produto é proporcional ao tempo de trabalho socialmente necessário para sua consecução. Como agente potencialmente transformador da natureza e das matérias-primas por ela fornecidas, o homem encontra em si as forças corporal e intelectual realmente necessárias para a satisfação de suas necessidades e para a criação dos mais variados artefatos. A mercadoria, um gênero destas criações que encontra na finalidade de servir à livre troca entre produtores e consumidores a natureza que a define, por princípio se constitui de duas esferas de valor, denominadas de valor de uso e valor de troca. Enquanto a primeira serve-se da utilidade de determinado bem com vistas a determinado fim como medida de seu valor, é o valor de troca que permite conferir ao produto das forças humanas seu caráter de mercadoria. Este valor de troca de um determinado bem é resultado da soma das forças produtivas que estiveram associadas a sua produção, na qual a cristalização de trabalho precedente representada pelas ferramentas de trabalho e maquinarias utilizadas para trabalhadores para sua produção definitiva constituem a medida de seu valor econômico. Neste sentido, a troca legítima entre mercadorias ocorre no momento em que bens que necessitaram do mesmo tempo de criação são de fato trocadas. O salário do operário, portanto, necessariamente deve corresponder ao valor de cada mercadoria produzida.

Contudo, o que Marx observa – e este constitui o elemento explorador do sistema capitalista – corresponde na dissonância entre a força empregada pelo operário e o rendimento fornecido pelo proprietário dos meios de produção. A despeito das qualidades objetivas do produto colocado à disposição num amplo cenário de trocas de mercadorias, parte das rendas obtidas com sua venda, e que por mérito ou justiça pertencem aos operários que contribuíram para sua confecção, é revertida em posse do próprio capitalista, o qual, por deter sob sua tutela os meios necessários à produção deste ou de outro produto qualquer, arroga-se ao “furto” de boa parte do que é produzido pelos primeiros. 
O fenômeno do fetichismo e de sua contraparte, a reificação, que daí resulta apenas agrava a completa imoralidade e ilegitimidade do lucro que, a partir da exploração das massas, constitui a finalidade última do capitalista empreendedor. Vale ressaltar aqui a condição espúria que concebeu a possibilidade de funcionamento deste sistema: a formação de uma ampla camada de trabalhadores assalariados, antes pequenos camponeses, através da violência tornada efetiva com a expropriação de terras – os cercamentos ingleses, por exemplo – por parte de grandes e poderosas famílias e o tráfico intenso de escravos, interrompido com o fim da escravidão e a conseqüente transformação destes escravos em homens livres, porém despossuídos de qualquer capital. E qualquer que fosse a origem do operário, quase todos os meios necessários à produção em massa, entendidos como capital, tais como vultuosas reservas financeiras ou posses de terra, instrumentos de trabalho e outros tantos meios de produção, passaram a concentrar-se em poucos e gananciosos capitalistas. O valor de troca, desta forma, tornado efetivo em quase todos os âmbitos, faz do operário ele próprio uma mercadoria, que nada necessita senão da venda, mediante injusta remuneração, de sua força de trabalho ao detentor dos meios de produção.

Em resposta direta à teoria marxista da exploração, que conduz à conclusão de serem a miséria e a pobreza geral conseqüências diretas do funcionamento do capitalismo, colocamos em evidência as contribuições trazidas pelas obras “Capital e Juros” (publicada ao longo dos anos de 1884 e 1921) e “Princípios de Economia Política” (1867-1868), publicadas, respectivamente, pelos economistas Eugen Von Böhm-Bawerk e Carl Menger.

De forma a encontrar uma nova teoria a respeito da determinação do valor dos bens produzidos que pudesse conferir uma solução aos impasses ocasionados pela tese da objetividade do valor, Menger encontra, a partir de seus estudos sobre a utilidade marginal de bens e produtos, um ponto fundamental que inicia a desconstrução da teoria da exploração de Marx, qual seja, a subjetividade do valor econômico. A despeito do tempo de trabalho e dos recursos, humanos e materiais, empregados na produção de determinada mercadoria, é a forma como esta satisfaz a uma necessidade dos eventuais consumidores que constitui a medida de sua grandeza de valor. A utilidade que determinado uso de certo bem pode oferecer segundo uma finalidade específica estabelece um critério muito mais assertivo para precisar a qualidade de um produto e a eficácia de sua produção.  Estabelecendo-se seu valor em razão proporcional ao anseio humano que ardentemente lhe quer o usufruto e que, sem este consumo, não se satisfaria, Menger constrói uma explicação racional para a queda dos custos que envolvem progressivo aumento de volume de produção, atribuindo à demanda um papel fundamental no estabelecimento de preços. Desta forma, o valor de uma mercadoria tende a apresentar redução crescente conforme unidades adicionais da mesma mercadoria são apresentadas ao consumidor, pois sua utilidade decresce conforme necessidades imediatas são satisfeitas. Destarte, na determinação do valor, o fator quantidade de trabalho adquire um papel secundário em face da apreciação que o homem projeta sobre a relevância de determinado bem para a obtenção de determinado fim.

 Em virtude de tais considerações, torna-se factível asseverar também que, não obstante a idêntica quantidade de trabalho que possa existir entre duas diferentes mercadorias dispostas em um eventual processo de troca, os tipos de trabalho e esforço destinados à produção de bens variados não são correspondentes, ou seja, o trabalho pode ser considerado heterogêneo e portador de tantas distintas qualidades e esforço físico e mental quanto são os tipos de finalidade a que servem e quão distintos são os trabalhadores entre si. Entrementes, ainda que o princípio da heterogeneidade do trabalho torne desigual quantidades correspondentes de trabalho e bens de capital e inviabilize, portanto, a determinação do valor conforme este critério, cabem ainda à subjetividade da apreciação e ao conceito de preferência temporal, cuja exposição se iniciará abaixo, a crítica mais mordaz à teoria da exploração.
  
Com efeito, caberá a Böhm-Bawerk desmistificar o mito de que o lucro e o juro do capital são resultado da aquisição imoral de parte do trabalho produzido sob a forma da chamada mais-valia. Para o autor austríaco, a concepção marxista da exploração decorre, em suma, do desprezo de Marx, ainda que não intencional, do princípio da preferência temporal, segundo o qual, para grande parte dos homens e na maior parte dos contextos que envolvem escolhas entre bens presentes ou futuros, os agentes econômicos, que aqui reúnem tanto produtores, quanto consumidores, inclinam-se ás opções que lhe sejam capazes de fornecer satisfações imediatas. Por este motivo, bens ou produtos que já se apresentam confeccionados para o consumo tendem à maior estima do comprador final e, por conseguinte, a um valor econômico mais elevado, em relação a outras determinadas mercadorias que ainda se encontram em processo de produção. Isto, por um lado, reflete-se na relativa ausência de sacrifícios ou poupanças, por boa parte dos consumidores, em função de um uso futuro de algum bem e, por outro, condiciona o cálculo e a determinação dos salários de todos os trabalhadores envolvidos em qualquer parte da produção. Dado que a preferência temporal dos compradores torna mais valioso o fruto que já está consolidado, não se faz factível calcular os rendimentos do trabalhador, enquanto o processo de produção ainda não culminou numa mercadoria completa, tendo como base o valor que esta possui, no mercado, quando já disposta ao consumo. Dito de outro modo é uma reivindicação descabida exigir a comparação do salário pela produção de um bem ainda não finalizado e disposto à venda com o preço que este apresenta numa relação real de troca entre vendedores e compradores. De forma muito mais justa e racional, portanto, está contido no salário o custo resultante do fato de boa parte dos compradores não desejarem, ou desejarem menos, o consumo futuro em lugar da compra imediata.

 Fundamental é também notar, além da estreita relação entre o valor subjetivo da mercadoria, proporcional a sua utilidade marginal, e o princípio da preferência temporal no que tange à determinação de preços e salários, que, abatida a teoria da exploração, torna-se possível alcançar outra conclusão até então despercebida pelos economistas da época: a fonte da riqueza, muito mais do que no trabalho enquanto tal, reside na organização racional, isto é, decorrem do intelecto e das idéias inovadoras a riqueza da sociedade capitalista e o aumento da qualidade de vida de todos os cidadãos. A capacidade produtiva de determinada indústria e de um conjunto de operários é tanto maior, em geral, quanto mais avançados forem os meios tecnológicos de produção colocados à sua disposição. Se o trabalho constituísse, de fato, a origem da riqueza, as inovações tecnológicas e as grandes idéias responsáveis por trazer ao cidadão comum o aumento gradativo da qualidade de vida não surgiriam no seio de nossa sociedade. A pobreza e a miséria resultam mais da aplicação errônea dos fatores de produção, e do diagnóstico impreciso a respeito das origens de valor e do cálculo de preços e salários do que da expansão do capitalismo e da massificação de bens antes considerados itens de luxo.  E, neste contexto, exercem um papel extremamente benéfico e necessário para todos – desde os mais ricos produtores, até os mais despossuídos proletários – a existência do lucro e de grandes fortunas, uma vez que estas possibilitam a expansão da produção, a criação de novos empregos e fomentam atividade intelectual diretamente responsável pelas grandes inovações.

Conclusão

 Conforme a exposição que se seguiu, é notória e indubitável a posição que apresentamos. A propriedade, mesmo compreendida erroneamente apenas como a posse sobre bens ou riqueza, não é causa dos males sociais a ela consubstanciados, como a pobreza, a miséria e a violência. A organização das atividades econômicas segundo os princípios de propriedade privada e da livre concorrência dão ensejo a resultados muito mais benéficos, principalmente aos consumidores e a grande massa de trabalhadores que possa existir, do que qualquer forma de organização político-econômica baseada em projetos de distribuição equitativa de riqueza e sobre forte tributação .

 No que tange ao item das taxações sobre lucros e grandes fortunas, tema que dá origem a este ensaio, cabe ainda uma última observação. Como vimos, a poupança, seja esta constituída por sacrifícios presentes em prol de benefícios futuros ou por heranças, fomentam investimentos e aplicações nas mais diversas áreas. Os juros concedidos por bancos, por exemplo, aos detentores de heranças ou fortunas dão-se em razão do “uso”, geralmente destinado ao patrocínio de grandes construções e financiamentos, que os primeiros fazem do bem emprestado pelos segundos (novamente, o princípio da preferência temporal). Os lucros, resultantes da eficiência da produção que conquista para si parte considerável dos consumidores, encontram sentido e serventia na aplicação ao próprio negócio, destinada à expansão da capacidade produtiva e à busca por inovações que possibilitem atingir ainda de forma mais eficiente a demanda que lhe confere a razão de ser.

 Um dos maiores problemas decorridos da aplicação de impostos e taxações decore da impossibilidade de concentrar as conseqüências negativas que lhe advém apenas no setor objeto de taxação. Impor cobranças sobre fortunas, heranças e lucros faz com que estes novos custos sejam repassados ao preço de mercadorias finais ou sejam convertidos em estagnação e redução de salários, corte de vagas, aumento de taxas de desemprego, diminuição de financiamentos e aplicações em bens intermediários ou serviços e principalmente na perda de qualidade e inovação do setor produtivo. Em todos estes casos, torna-se assente que a parcela da população mais prejudicada consiste, tragicamente, no grupo de menor poder de consumo, que em quase cem por cento destes contextos, reduz drasticamente ou mesmo deixa de fazer uso de serviços e bens antes consumidos.  Por conseguinte, com queda vertiginosa no consumo, o PIB tende a acompanhá-lo na mesma proporção. 
A pobreza e a miséria, portanto, não decorrem nem da utilização privada e orientada ao lucro dos meios de produção, nem da existência de grandes fortunas ou heranças. Não há fundamentos racionais que façam crível a conexão necessária que muitos de nossa esfera política e social estabelecem entre a riqueza material de poucos e a pobreza de grande maioria.

  Por fim, comprovada a arbitrariedade em exigir dos “afortunados” a responsabilidade e o dever de recompensar a sociedade pelas mazelas sociais nela existentes, se conclui de igual modo que não há senso algum de sensatez ou justiça na ação de ameaçar a liberdade individual de fazer uso de bens, conhecimento e capital adquiridos legalmente segundo os próprios fins e vontades estabelecidos em prol de uma indefinida e vaga idéia de uma função social que a propriedade deve exercer. Conceber taxações progressivas sobre renda, heranças e lucros é, deste modo, mais uma variação dentre tantas outras pelas quais inúmeros governos incorrem na redução ilegítima das possibilidades de livre escolha e desenvolvimento pessoal de cada indivíduo. A acumulação de riqueza, longe de constituir-se em imoralidade escabrosa, é condição essencial para o combate à pobreza e para as grandes inovações que recrudescem a qualidade de vida de cada um. Fazer uso livre de qualquer propriedade – de si, de suas idéias, pensamentos, força corporal, riqueza material e liberdade – é, por isso, o ponto de partida mais fundamental para o estabelecimento de uma sociedade livre e rica, onde todos e cada um ajustam suas atividades com a dos demais sem requerer o uso da coerção e da força.

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