Em fins de Agosto
levantou-se na Câmara dos Deputados de Brasília um projeto de Lei que proíbe mensagens,
postagens ou declarações consideradas ofensivas ou difamatórias a políticos
profissionais e candidatos. Em paralelo, aventou-se quase no mesmo instante
outro projeto de lei com a finalidade de introduzir importante alteração no
atual Marco Civil, a saber, a obrigatoriedade, por parte de provedores de sites
e redes sociais, de reter dados pessoais de seus usuários, tais como nome
completo e CPF.
No decorrer do mês de
setembro, pôde-se observar com facilidade, além do apoio tácito do atual
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o sentimento de urgência com que algumas
bancadas deste órgão deliberativo trataram a questão. Ficou evidente, sem
sombra de dúvida, o receio, praticamente um temor pungente, de parte destes
representantes de terem sua imagem ou “honestidade” denegrida através da indignação
popular contra os escândalos de corrupção e de ineficiência econômica e
política do atual poder executivo.
Sem se fazer
necessário deter-se com minúcias sobre os pontos nos quais, na íntegra, estes
novos projetos de lei se arregimentam, não é escusado dizer que suas ambições
servem a princípios e finalidades muito escusas. De fato, ainda que os novos
projetos tenham a qualidade de despertar, vez ou outra, um senso de respeito a
uma personalidade política, o perigo que representam a uma sociedade livre não
nos deve, de forma alguma, suscitar-lhes qualquer tipo de aquiescência.
Sem embargo, tal como John
Stuart Mill expôs com brilhantismo intelectual em seu ensaio On Liberty, não são desprovidas de
importância as instituições consideradas necessárias para a manutenção de uma
democracia livre.
Tal como descreve
sucintamente nas primeiras linhas de sua Introdução, o objetivo de seu ensaio
consiste na problematização acerca da liberdade civil, uma forma de liberdade e
uma essência política necessária a qualquer regime político. Na esteira de seu
pensamento, e este é um ponto de particular importância para o presente
contexto apresentado, a liberdade civil deve corresponder, tal qual uma forma
de extensão, à liberdade de que cada indivíduo dispõe por si próprio. A
qualidade de ser humano livre e provido de dignidade lhe confere a possibilidade
de dispor de suas faculdades conforme seu juízo e seus planos e conforme aos
objetivos perseguidos sem padecer da influência negativa ou restritiva de
outros indivíduos ou de poderes coletivos. Esta liberdade civil, dizendo sem
rodeios, consiste, portanto, na delimitação precisa e rígida das esferas nas
quais o indivíduo possui sua soberania, e às quais torna-se ilegítimo a
ingerência de qualquer poder político ou órgão público coercitivo.
Porém, juntamente a
deixar assente a necessidade em definir com rigidez em quais esferas da
sociedade quais interesses, do indivíduo ou do poder político, serão por
direito soberanos e legítimos, salienta-se quais são os papeis exercidos em
particular pela liberdade de pensamento, expressão e imprensa e suas
respectivas importâncias dentro de uma democracia livre. O direito ao próprio
pensamento e sua correspondente expressão implicam ao cidadão a faculdade de
poder, primeiramente, orientar-se segundo suas próprias convicções, “leis”
pessoais e a própria razão. Em um segundo momento, que não necessariamente se desvincula
do primeiro em termos cronológicos, tais liberdades lhe tornam factíveis elaborar
projetos e tomar iniciativas; fornecer seu consentimento ou manifestar sua
reprovação ante determinada medida pública; conduzir sua vida e a persecução de
seus objetivos conforme os próprios valores e reunir-se livremente com outros
indivíduos que partilhem dos mesmos ideais e vontades.
No que tange, por seu
turno, à liberdade de imprensa, as idéias, aquiescências e repúdios encontram
espaço através dos mais diversos meios de veiculação de informações e notícias.
A descentralização sobre tais meios, que equivale a coibir-lhes o monopólio
estatal ou privado, é tanto mais importante quanto, por um lado, resulta da
livre iniciativa concedida aos cidadãos para fornecer seus próprios serviços
aos demais como forma de a eles ajustar a satisfação mútua dos desejos; quanto,
por outro, corrobora a autonomia dos cidadãos e suas opiniões face ao exercício
dos poderes públicos.
A liberdade de imprensa, assim, constitui
condição sine qua non para a
transparência acerca das ações governamentais, para o julgamento sobre estas
últimas e para a vigilância de cada cidadão sobre a justeza das ações políticas
e suas esferas de atuação. Em forte correlação, tanto a primeira, como a
liberdade de pensamento e expressão, asseguram um elemento fundamental em
qualquer sociedade livre: o pluralismo político. A oposição a governantes e
medidas oficiais do poder público não compreende per se toda a extensão deste termo. Antes, todavia, pluralismo político
significa ou realça o verdadeiro sentido da participação dos indivíduos na vida
política do corpo civil ao qual se encontram inseridos. Tão numerosos os grupos
políticos numa comunidade, quantas são as opiniões relevantes e legítimas de
cidadãos livremente reunidos e tão isentos de controle coercitivo ou dirigismo
central, quantas são os instrumentos de veiculação de informação, torna-se
praticamente impossível ver-se a esfera das liberdades individuais de cada um invadida
por um poder despótico e autoritário.
Os direitos de livre
pensamento, expressão e imprensa livre são instituições, valores e conquistas
concomitantemente potencializadores e fatores condicionantes da autonomia de
cada indivíduo. Tais direitos convidam cada um ao exercício cívico entendido
como o esforço pela manutenção da liberdade e à inserção ao debate político e
moral, fundamental para o estabelecimento das mudanças que se fazem necessárias
em qualquer governo civil.
Por tudo isto, a
censura ou qualquer outra tentativa de introdução de mecanismos destinados a
refrear a expressão e formulação livre de idéias e opiniões, independentemente
de seus conteúdos, consiste em ato deveras pérfido à nossa liberdade civil –
representa, evidentemente, o aumento progressivo do poder político sobre as
esferas nas quais toma-se como soberana apenas a vontade do indivíduo. Reduz, indubitavelmente, nossa autonomia enquanto
faz-se capaz de conceder ao Estado um poder maior de manipulação e determinação
autoritária sobre nossos valores, os sentidos e as finalidades de nossas ações.
Confere ao aparato estatal uma espúria qualidade de ser inatingível ou
intocável às críticas e considerações e de seus cidadãos, enquanto mina os
espaços destinados à dissidência e ao desacordo.
E todo este contexto,
ao fim e ao cabo, insere-nos nos novos âmbitos de discussão e manifestação de
opiniões representados pelo advento das redes sociais. Os desafios que surgem
com estes novos meios de difusão de informações, por mais diferenciados que
possam parecer, diferem apenas em grau dos desafios representados pela
salvaguarda dos direitos individuais de expressão e pensamento. Analogamente, a
exigência pela obrigatoriedade da retenção, por parte de provedores e redes
sociais, de informações individuais importantes de cada usuário concorre para a
redução das limitações impostas ao exercício do poder, da privacidade e da
proteção em face de um sistema coercitivo de controle sobre os valores e
convicções pessoais. Esta ação, bem como a censura, jamais consistirá num
recurso, numa sociedade livre, destinado à manutenção das liberdades de seus
cidadãos defronte aos riscos de centralização e determinação das informações e diretrizes de cada pessoa. À supressão da livre iniciativa de
opiniões e manifestações, mesmo quando ainda sutil e pequena, reduz-se também,
como conseqüência necessária, boa parte de nossa liberdade civil.
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