"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A Censura e a Liberdade Civil

 Em fins de Agosto levantou-se na Câmara dos Deputados de Brasília um projeto de Lei que proíbe mensagens, postagens ou declarações consideradas ofensivas ou difamatórias a políticos profissionais e candidatos. Em paralelo, aventou-se quase no mesmo instante outro projeto de lei com a finalidade de introduzir importante alteração no atual Marco Civil, a saber, a obrigatoriedade, por parte de provedores de sites e redes sociais, de reter dados pessoais de seus usuários, tais como nome completo e CPF.

 No decorrer do mês de setembro, pôde-se observar com facilidade, além do apoio tácito do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o sentimento de urgência com que algumas bancadas deste órgão deliberativo trataram a questão. Ficou evidente, sem sombra de dúvida, o receio, praticamente um temor pungente, de parte destes representantes de terem sua imagem ou “honestidade” denegrida através da indignação popular contra os escândalos de corrupção e de ineficiência econômica e política do atual poder executivo.  

 Sem se fazer necessário deter-se com minúcias sobre os pontos nos quais, na íntegra, estes novos projetos de lei se arregimentam, não é escusado dizer que suas ambições servem a princípios e finalidades muito escusas. De fato, ainda que os novos projetos tenham a qualidade de despertar, vez ou outra, um senso de respeito a uma personalidade política, o perigo que representam a uma sociedade livre não nos deve, de forma alguma, suscitar-lhes qualquer tipo de aquiescência.

 Sem embargo, tal como John Stuart Mill expôs com brilhantismo intelectual em seu ensaio On Liberty, não são desprovidas de importância as instituições consideradas necessárias para a manutenção de uma democracia livre.

 Tal como descreve sucintamente nas primeiras linhas de sua Introdução, o objetivo de seu ensaio consiste na problematização acerca da liberdade civil, uma forma de liberdade e uma essência política necessária a qualquer regime político. Na esteira de seu pensamento, e este é um ponto de particular importância para o presente contexto apresentado, a liberdade civil deve corresponder, tal qual uma forma de extensão, à liberdade de que cada indivíduo dispõe por si próprio. A qualidade de ser humano livre e provido de dignidade lhe confere a possibilidade de dispor de suas faculdades conforme seu juízo e seus planos e conforme aos objetivos perseguidos sem padecer da influência negativa ou restritiva de outros indivíduos ou de poderes coletivos. Esta liberdade civil, dizendo sem rodeios, consiste, portanto, na delimitação precisa e rígida das esferas nas quais o indivíduo possui sua soberania, e às quais torna-se ilegítimo a ingerência de qualquer poder político ou órgão público coercitivo.

 Porém, juntamente a deixar assente a necessidade em definir com rigidez em quais esferas da sociedade quais interesses, do indivíduo ou do poder político, serão por direito soberanos e legítimos, salienta-se quais são os papeis exercidos em particular pela liberdade de pensamento, expressão e imprensa e suas respectivas importâncias dentro de uma democracia livre. O direito ao próprio pensamento e sua correspondente expressão implicam ao cidadão a faculdade de poder, primeiramente, orientar-se segundo suas próprias convicções, “leis” pessoais e a própria razão. Em um segundo momento, que não necessariamente se desvincula do primeiro em termos cronológicos, tais liberdades lhe tornam factíveis elaborar projetos e tomar iniciativas; fornecer seu consentimento ou manifestar sua reprovação ante determinada medida pública; conduzir sua vida e a persecução de seus objetivos conforme os próprios valores e reunir-se livremente com outros indivíduos que partilhem dos mesmos ideais e vontades.

 No que tange, por seu turno, à liberdade de imprensa, as idéias, aquiescências e repúdios encontram espaço através dos mais diversos meios de veiculação de informações e notícias. A descentralização sobre tais meios, que equivale a coibir-lhes o monopólio estatal ou privado, é tanto mais importante quanto, por um lado, resulta da livre iniciativa concedida aos cidadãos para fornecer seus próprios serviços aos demais como forma de a eles ajustar a satisfação mútua dos desejos; quanto, por outro, corrobora a autonomia dos cidadãos e suas opiniões face ao exercício dos poderes públicos.

 A liberdade de imprensa, assim, constitui condição sine qua non para a transparência acerca das ações governamentais, para o julgamento sobre estas últimas e para a vigilância de cada cidadão sobre a justeza das ações políticas e suas esferas de atuação. Em forte correlação, tanto a primeira, como a liberdade de pensamento e expressão, asseguram um elemento fundamental em qualquer sociedade livre: o pluralismo político. A oposição a governantes e medidas oficiais do poder público não compreende per se toda a extensão deste termo. Antes, todavia, pluralismo político significa ou realça o verdadeiro sentido da participação dos indivíduos na vida política do corpo civil ao qual se encontram inseridos. Tão numerosos os grupos políticos numa comunidade, quantas são as opiniões relevantes e legítimas de cidadãos livremente reunidos e tão isentos de controle coercitivo ou dirigismo central, quantas são os instrumentos de veiculação de informação, torna-se praticamente impossível ver-se a esfera das liberdades individuais de cada um invadida por um poder despótico e autoritário.  

 Os direitos de livre pensamento, expressão e imprensa livre são instituições, valores e conquistas concomitantemente potencializadores e fatores condicionantes da autonomia de cada indivíduo. Tais direitos convidam cada um ao exercício cívico entendido como o esforço pela manutenção da liberdade e à inserção ao debate político e moral, fundamental para o estabelecimento das mudanças que se fazem necessárias em qualquer governo civil.   

 Por tudo isto, a censura ou qualquer outra tentativa de introdução de mecanismos destinados a refrear a expressão e formulação livre de idéias e opiniões, independentemente de seus conteúdos, consiste em ato deveras pérfido à nossa liberdade civil – representa, evidentemente, o aumento progressivo do poder político sobre as esferas nas quais toma-se como soberana apenas a vontade do indivíduo.  Reduz, indubitavelmente, nossa autonomia enquanto faz-se capaz de conceder ao Estado um poder maior de manipulação e determinação autoritária sobre nossos valores, os sentidos e as finalidades de nossas ações. Confere ao aparato estatal uma espúria qualidade de ser inatingível ou intocável às críticas e considerações e de seus cidadãos, enquanto mina os espaços destinados à dissidência e ao desacordo.


 E todo este contexto, ao fim e ao cabo, insere-nos nos novos âmbitos de discussão e manifestação de opiniões representados pelo advento das redes sociais. Os desafios que surgem com estes novos meios de difusão de informações, por mais diferenciados que possam parecer, diferem apenas em grau dos desafios representados pela salvaguarda dos direitos individuais de expressão e pensamento. Analogamente, a exigência pela obrigatoriedade da retenção, por parte de provedores e redes sociais, de informações individuais importantes de cada usuário concorre para a redução das limitações impostas ao exercício do poder, da privacidade e da proteção em face de um sistema coercitivo de controle sobre os valores e convicções pessoais. Esta ação, bem como a censura, jamais consistirá num recurso, numa sociedade livre, destinado à manutenção das liberdades de seus cidadãos defronte aos riscos de centralização e determinação das informações e diretrizes de cada pessoa. À supressão da livre iniciativa de opiniões e manifestações, mesmo quando ainda sutil e pequena, reduz-se também, como conseqüência necessária, boa parte de nossa liberdade civil.        

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