"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Sim, precisamos de Condições mais Igualitárias – Principalmente para que a Concorrência demonstre seus Melhores efeitos.

 Dirijo este ensaio especificamente à Juíza de Direito Fernanda Orsomarzo, a qual, ainda em 2016, publicou em seu perfil de Facebook[1] um desabafo íntimo sobre suas conquistas pessoais e profissionais – uma declaração sincera sobre o que considera ser a falência da meritocracia e do corolário ideológico que lhe acompanha.

Em primeiro lugar, nasci branca. Faço parte de uma típica família de classe média. Estudei em escola particular, frequentei cursos de inglês e informática, tive acesso a filmes e livros. Contei com pais presentes e preocupados com a minha formação. Jamais me faltou café da manhã, almoço e jantar. Nunca me preocupei com merenda ou material escolar. Todos têm suas lutas e histórias de vida. Todos enfrentam dificuldades e desafios. Porém, enquanto para alguns esses entraves não passam de meras pedras no caminho, para outros a vida em si é uma pedra no caminho[2].

 Com estas palavras, Fernanda ao mesmo tempo diminui a real extensão de sua conquista e, por outro, sensatamente, expõe o quadro extremamente desigual que ainda permeia as relações sociais e econômicas do Brasil. Para citar como exemplo apenas o funcionalismo público, somando-se cargos comissionados e ocupados via concurso, segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) apenas 30% do total 516.369 servidores civis do Poder Executivo federal são negros – proporção bem inferior ao total da população negra no total de brasileiros, avaliada acima de 40% no último censo do IBGE.

 Á primeira vista, é crível a crítica de que uma representação minoritária de determinada etnia ou grupo, considerado também minoritário, não pode nos levar a considerar esta sociedade como racista ou pautada sobre critérios raciais, sexuais ou censitários de promoção e seleção de seus candidatos. Fosse esta conclusão verdadeira, poderíamos considerar como preconceituosa aos descendentes de asiáticos e, principalmente aos homens, a atual configuração do sistema público[3].

 Sem sombra de dúvida, tal como diz Fernanda, “Nunca, jamais estivemos em iguais condições[4]”, as condições históricas na formação étnica, racial, social e profissional do brasileiro ainda espelham as consequências nefastas da escravidão e da terrível nódoa que deixou em nosso seio. O discurso segundo o qual fomos feitos iguais e livres aqui parece soar, com razão, totalmente falso.

 Mas, o que também se faz necessário citar aqui é o fato de que, muito embora as condições legadas por seus progenitores lhe tenham legado uma vantagem inicial considerável, isto por si só não lhe garantiu o sucesso conquistado. Exemplos recorrentes no cenário nacional ilustram um fator que parece ter sido esquecido pela eminente Juíza: estima-se que, anualmente, existam mais de 4 mil candidatos para cada 16 vagas disponibilizadas para o TRF dos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande Sul[5]. De forma análoga, às vezes ocorre que nenhum candidato, dentre 10 mil inscritos, atinge a pontuação mínima suficiente para ocupar um cargo de Juíz Federal[6]. Em suma, apontam estes números para um erro lógico recorrente em considerações deste tipo: a comparação entre grupos em condições e fases distintas não é apropriado para ilustrar as conquistas e os desmembramentos de um mesmo processo. Em outras palavras, muito mais justo, sóbrio e condizente aos métodos modernos de comparações estatísticas por população seria comparar o histórico da Juíza Fernanda com outros cidadãos que tiveram - senão idênticas - oportunidades e formação similares.  Apesar de não existir dados oficiais e confiáveis a respeito da representação étnica entre os candidatos que comumente integram processos seletivos em cargos públicos, é bem crível imaginar que, ainda mais no caso em questão, seu esforço individual foi o fator por última instância definitivo e essencial para a conquista de seu objetivo, dado que provavelmente concorreu pelo cargo mencionado contra muitos estudantes, em sua maioria, de perfil familiar e financeiro similares ou até melhores.

Ainda assim, continua Fernanda:

O discurso embasado na meritocracia desresponsabiliza o Estado e joga nos ombros do indivíduo todo o peso de sua omissão e da falta de políticas públicas. A meritocracia naturaliza a pobreza, encara com normalidade a desigualdade social e produz esquecimento – quem defende essa falácia não se recorda que contou com inúmeros auxílios para chegar onde chegou[7].

 Por um lado, a “meritocracia” ou o sistema que considera iguais todos os indivíduos, permitindo a competição limpa e tornando possível resultados discrepantes entre os participantes do jogo exige um papel fundamental do estado. A não-discriminação e a isonomia exigem do aparto estatal a consideração do indivíduo como um cidadão, pleno em direitos e deveres, que se relaciona consigo e com os demais mediante aquilo que caracteriza a esfera pública da ação. A implementação de um estado de direito que considere todos iguais perante a lei foi um passo fundamental ao longo da história moderna para suplantação de antigos privilégios de nascimento, laços sanguíneos, raça ou ancestralidade. A própria ideia de democracia não pode coexistir sem esta ideia fundamental de igualdade entre os agentes políticos que lhe constituem. Apenas a reivindicação dos laços cívicos, iguais a todos, são legítimos quando do direito de reivindicação de poderes ou direitos políticos e civis.


 Por outro, é evidente no caso brasileiro que o próprio Estado em muito tem contribuído para a manutenção destas desigualdades – cerca de 1/3 da atual desigualdade de renda no Brasil tem como principal responsável a ação pública[8]. E isto é tanto mais importante quanto nos damos de conta de que a mobilidade social largamente ocorrida no ocidente a partir da Revolução Industrial deveu-se, principalmente, ao desenvolvimento do capitalismo moderno. Em direção diametralmente oposta à afirmação da Juíza Fernanda, a “meritocracia” não consiste num ato de naturalização da pobreza. Muito pelo contrário, a livre iniciativa e a competição livre entre os agentes compõem justamente o fator que propicia a criação e a melhor distribuição de riqueza possível; em condições normais, sem o fator capital e competição, a miséria e a ausência de bens e serviços caracterizam o que quer que possamos chamar de “estado natural” do homem. Tampouco este sistema de liberdade pode ser interpretado como a externalização de seu ônus sobre os mais desfavorecidos e excluídos. Assim como não é a existência da pobreza a real justificativa para a existência de classes mais abastadas, também não se pode argumentar ser o fato de que existem ainda milhões de brasileiros sem acesso a reais condições de ensino e formação a principal explicação para a vitória da Juíza Fernanda.

 Em todo este imbróglio, me vem à mente, como ilustração final deste ponto de vista, a história de Frederick Douglass, um dos mais famosos abolicionistas da história americana. Nascido escravo em 1818, aos 20 anos viu-se fugido para o estado de Massachusetts, onde organizou jornais e movimentos contrários à escravidão negra. Num famoso discurso de um 04 de julho de 1852, no Corinthian Hall da cidade de Rochester, Douglass expôs – assim como o fez a juíza - o hiato existente entre a Declaração de Independência e a Constituição Americanas e a existência de fato de um aparato segregacionista e contrário à igualdade fundante da república americana. No entanto, ao contrário de muitos de seus contemporâneos, via Douglass na Constituição um documento puramente anti-escravista. Desta forma, como bem disse Magnoli: “O abolicionismo de Douglass representava uma forma de adesão aos EUA – não país da escravidão, mas o da liberdade anunciada na Declaração de independência e na Constituição”[9].

  Da mesma forma agiram outros, tais como Martin Luther King, para quem era um sonho ver todos serem tratados de forma igual, conforme o caráter e não mais pela cor da pele. Tanto King Jr, quanto Douglass, tinham ciência de que o combate à privilégios não se fazia pela reivindicação de noções como raça, etnia ou classe, que se contrapunham frequentemente ao estatuto universal de cidadão; nem mesmo pela imputação de outras medidas que simplesmente apagassem o sentido da igualdade de todos perante a lei. A luta pela igualdade e, principalmente, pela liberdade significa muito mais aprimorar as condições de competição e coexistência entre os diversos competidores, de modo a gerar a eficiência esperada por este modelo, do que substitui-lo por outro método de justiça que tornasse inviável o sistema de incentivos da livre concorrência. Em suma, precisamos, está claro, de condições mais igualitárias a todos; mas a emancipação desta condição atual de quase escravidão – para muitos aos quais, lamentavelmente, o abolicionismo parece ainda não ter ocorrido – só pode ser positivamente levada a cabo através do único arranjo sócio-econômico moralmente aceitável. Qualquer ação pública voltada a redimir estas diferenças históricas precisa ser pensada com imenso cuidado, sob pena de tornar ainda mais inviável a própria democracia.



[1] https://www.facebook.com/fer.nanda.505/posts/1071388609596180
[2] Ibidem.
[3] http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2016/10/28/internas_economia,555122/mesmo-como-maioria-no-servico-publico-mulheres-ainda-tem-cargos-infer.shtml
[4] https://www.facebook.com/fer.nanda.505/posts/1071388609596180
[5] http://www.conjur.com.br/2014-mai-21/trf-registra-mil-candidatos-16-vagas-juiz
[6] http://hojeemdia.com.br/primeiro-plano/sobram-vagas-para-juiz-federal-mas-faltam-candidatos-%C3%A0-altura-1.294548
[7] https://www.facebook.com/fer.nanda.505/posts/1071388609596180
[8] http://exame.abril.com.br/revista-exame/e-o-estado-piora-esta-diferenca/
[9] MAGNOLI, D. Gota de Sangue: História do Pensamento Racial. São Paulo: Contexto, 2009, p. 13

Nenhum comentário:

Postar um comentário