Dirijo este ensaio especificamente à Juíza de
Direito Fernanda Orsomarzo, a qual, ainda em 2016, publicou em seu perfil de
Facebook[1] um desabafo íntimo sobre
suas conquistas pessoais e profissionais – uma declaração sincera sobre o que
considera ser a falência da meritocracia e do corolário ideológico que lhe
acompanha.
Em
primeiro lugar, nasci branca. Faço parte de uma típica família de classe média.
Estudei em escola particular, frequentei cursos de inglês e informática, tive
acesso a filmes e livros. Contei com pais presentes e preocupados com a minha
formação. Jamais me faltou café da manhã, almoço e jantar. Nunca me preocupei
com merenda ou material escolar. Todos têm suas lutas e histórias de vida.
Todos enfrentam dificuldades e desafios. Porém, enquanto para alguns esses
entraves não passam de meras pedras no caminho, para outros a vida em si é uma
pedra no caminho[2].
Com estas palavras, Fernanda
ao mesmo tempo diminui a real extensão de sua conquista e, por outro,
sensatamente, expõe o quadro extremamente desigual que ainda permeia as
relações sociais e econômicas do Brasil. Para citar como exemplo apenas o
funcionalismo público, somando-se cargos comissionados e ocupados via concurso,
segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)
apenas 30% do total 516.369 servidores civis do Poder Executivo federal são
negros – proporção bem inferior ao total da população negra no total de
brasileiros, avaliada acima de 40% no último censo do IBGE.
Á primeira vista, é crível a crítica de que
uma representação minoritária de determinada etnia ou grupo, considerado também
minoritário, não pode nos levar a considerar esta sociedade como racista ou pautada
sobre critérios raciais, sexuais ou censitários de promoção e seleção de seus
candidatos. Fosse esta conclusão verdadeira, poderíamos considerar como
preconceituosa aos descendentes de asiáticos e, principalmente aos homens, a
atual configuração do sistema público[3].
Sem sombra de dúvida, tal como diz Fernanda, “Nunca, jamais estivemos em iguais condições[4]”,
as condições históricas na formação étnica, racial, social e profissional do
brasileiro ainda espelham as consequências nefastas da escravidão e da terrível
nódoa que deixou em nosso seio. O discurso segundo o qual fomos feitos iguais e
livres aqui parece soar, com razão, totalmente falso.
Mas, o que também se faz necessário citar aqui
é o fato de que, muito embora as condições legadas por seus progenitores lhe
tenham legado uma vantagem inicial considerável, isto por si só não lhe
garantiu o sucesso conquistado. Exemplos recorrentes no cenário nacional
ilustram um fator que parece ter sido esquecido pela eminente Juíza: estima-se
que, anualmente, existam mais de 4 mil candidatos para cada 16 vagas
disponibilizadas para o TRF dos estados do Paraná, de Santa Catarina e do Rio
Grande Sul[5]. De forma análoga, às
vezes ocorre que nenhum candidato, dentre 10 mil inscritos, atinge a pontuação
mínima suficiente para ocupar um cargo de Juíz Federal[6]. Em suma, apontam estes
números para um erro lógico recorrente em considerações deste tipo: a comparação
entre grupos em condições e fases distintas não é apropriado para ilustrar as
conquistas e os desmembramentos de um mesmo processo. Em outras palavras, muito
mais justo, sóbrio e condizente aos métodos modernos de comparações
estatísticas por população seria comparar o histórico da Juíza Fernanda com
outros cidadãos que tiveram - senão idênticas - oportunidades e formação
similares. Apesar de não existir dados
oficiais e confiáveis a respeito da representação étnica entre os candidatos
que comumente integram processos seletivos em cargos públicos, é bem crível
imaginar que, ainda mais no caso em questão, seu esforço individual foi o fator
por última instância definitivo e essencial para a conquista de seu objetivo,
dado que provavelmente concorreu pelo cargo mencionado contra muitos estudantes,
em sua maioria, de perfil familiar e financeiro similares ou até melhores.
Ainda assim, continua
Fernanda:
O discurso embasado na meritocracia
desresponsabiliza o Estado e joga nos ombros do indivíduo todo o peso de sua
omissão e da falta de políticas públicas. A meritocracia naturaliza a pobreza,
encara com normalidade a desigualdade social e produz esquecimento – quem
defende essa falácia não se recorda que contou com inúmeros auxílios para
chegar onde chegou[7].
Por um lado, a “meritocracia” ou o sistema que
considera iguais todos os indivíduos, permitindo a competição limpa e tornando
possível resultados discrepantes entre os participantes do jogo exige um papel
fundamental do estado. A não-discriminação e a isonomia exigem do aparto
estatal a consideração do indivíduo como um cidadão, pleno em direitos e
deveres, que se relaciona consigo e com os demais mediante aquilo que
caracteriza a esfera pública da ação. A implementação de um estado de direito
que considere todos iguais perante a lei foi um passo fundamental ao longo da
história moderna para suplantação de antigos privilégios de nascimento, laços
sanguíneos, raça ou ancestralidade. A própria ideia de democracia não pode coexistir
sem esta ideia fundamental de igualdade entre os agentes políticos que lhe
constituem. Apenas a reivindicação dos laços cívicos, iguais a todos, são
legítimos quando do direito de reivindicação de poderes ou direitos políticos e
civis.
Por outro, é evidente no caso brasileiro que o
próprio Estado em muito tem contribuído para a manutenção destas desigualdades –
cerca de 1/3 da atual desigualdade de renda no Brasil tem como principal
responsável a ação pública[8]. E isto é tanto mais
importante quanto nos damos de conta de que a mobilidade social largamente
ocorrida no ocidente a partir da Revolução Industrial deveu-se, principalmente,
ao desenvolvimento do capitalismo moderno. Em direção diametralmente oposta à
afirmação da Juíza Fernanda, a “meritocracia” não consiste num ato de
naturalização da pobreza. Muito pelo contrário, a livre iniciativa e a
competição livre entre os agentes compõem justamente o fator que propicia a
criação e a melhor distribuição de riqueza possível; em condições normais, sem
o fator capital e competição, a miséria e a ausência de bens e serviços
caracterizam o que quer que possamos chamar de “estado natural” do homem. Tampouco
este sistema de liberdade pode ser interpretado como a externalização de seu
ônus sobre os mais desfavorecidos e excluídos. Assim como não é a existência da
pobreza a real justificativa para a existência de classes mais abastadas,
também não se pode argumentar ser o fato de que existem ainda milhões de
brasileiros sem acesso a reais condições de ensino e formação a principal
explicação para a vitória da Juíza Fernanda.
Em todo este imbróglio, me vem à mente, como
ilustração final deste ponto de vista, a história de Frederick Douglass, um dos
mais famosos abolicionistas da história americana. Nascido escravo em 1818, aos
20 anos viu-se fugido para o estado de Massachusetts, onde organizou jornais e
movimentos contrários à escravidão negra. Num famoso discurso de um 04 de julho
de 1852, no Corinthian Hall da cidade de Rochester, Douglass expôs – assim como
o fez a juíza - o hiato existente entre a Declaração de Independência e a
Constituição Americanas e a existência de fato de um aparato segregacionista e
contrário à igualdade fundante da república americana. No entanto, ao contrário
de muitos de seus contemporâneos, via Douglass na Constituição um documento
puramente anti-escravista. Desta forma, como bem disse Magnoli: “O
abolicionismo de Douglass representava uma forma de adesão aos EUA – não país
da escravidão, mas o da liberdade anunciada na Declaração de independência e na
Constituição”[9].
Da
mesma forma agiram outros, tais como Martin Luther King, para quem era um sonho
ver todos serem tratados de forma igual, conforme o caráter e não mais pela cor
da pele. Tanto King Jr, quanto Douglass, tinham ciência de que o combate à
privilégios não se fazia pela reivindicação de noções como raça, etnia ou
classe, que se contrapunham frequentemente ao estatuto universal de cidadão;
nem mesmo pela imputação de outras medidas que simplesmente apagassem o sentido
da igualdade de todos perante a lei. A luta pela igualdade e, principalmente,
pela liberdade significa muito mais aprimorar as condições de competição e
coexistência entre os diversos competidores, de modo a gerar a eficiência esperada
por este modelo, do que substitui-lo por outro método de justiça que tornasse
inviável o sistema de incentivos da livre concorrência. Em suma, precisamos,
está claro, de condições mais igualitárias a todos; mas a emancipação desta
condição atual de quase escravidão – para muitos aos quais, lamentavelmente, o
abolicionismo parece ainda não ter ocorrido – só pode ser positivamente levada
a cabo através do único arranjo sócio-econômico moralmente aceitável. Qualquer
ação pública voltada a redimir estas diferenças históricas precisa ser pensada
com imenso cuidado, sob pena de tornar ainda mais inviável a própria
democracia.
[1] https://www.facebook.com/fer.nanda.505/posts/1071388609596180
[2] Ibidem.
[3] http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2016/10/28/internas_economia,555122/mesmo-como-maioria-no-servico-publico-mulheres-ainda-tem-cargos-infer.shtml
[4] https://www.facebook.com/fer.nanda.505/posts/1071388609596180
[5] http://www.conjur.com.br/2014-mai-21/trf-registra-mil-candidatos-16-vagas-juiz
[6] http://hojeemdia.com.br/primeiro-plano/sobram-vagas-para-juiz-federal-mas-faltam-candidatos-%C3%A0-altura-1.294548
[7] https://www.facebook.com/fer.nanda.505/posts/1071388609596180
[8] http://exame.abril.com.br/revista-exame/e-o-estado-piora-esta-diferenca/
[9] MAGNOLI,
D. Gota de Sangue: História do Pensamento
Racial. São Paulo: Contexto, 2009, p. 13
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