Crise energética com
frequentes apagões e desabastecimentos diários de energia, acompanhada de uma
inflação de quase 700% em relação ao início das medições históricas[1], além de falta de
alimentos e produtos básicos – eis o diagnóstico atual da República Bolivariana
da Venezuela.
Sem dúvida, a crise no país parece apresentar
o pior momento de toda sua história. Como foi possível, no entanto, que tudo
isto viesse a ocorrer? Abaixo, segue uma recapitulação dos passos adotados
principalmente por Hugo Chávez em seus sucessivos governos que legaram a seu
tão amado povo as agruras infindáveis que enfrenta agora.
Tentativa
de Golpe e Subida ao Poder
Em 1992, quando tenente
coronel do exército da Venezuela, Chávez esteve à frente de um golpe militar
frustrado contra o então presidente Carlos Andrés Perez. Mesmo com o apoio de
10% das Forças Armadas, o fundador do Movimento
Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200) foi reconduzido ao Centro
Penitenciário de Yare, não sem antes deixar ao público uma falsa imagem de
herói nacional corajoso e destemido[2].
No ano seguinte, após o impeachment de Perez,
acendeu ao poder Rafael Caldera, representante do maior partido liberal da
Venezuela, responsável por levar adiante reformas estruturais de cunho
econômico importantes para lidar com as altas taxas de inflação e desemprego
legadas por seu antecessor[3]. Em 1995, concedeu a
anistia ao líder militar, o qual, livre, passou a reunir-se com Douglas Bravo,
líder do Partido da Revolução Venezuelana,
com quem fundou um novo grupo revolucionário, o Movimento V República, ou MRV. Escolhido como candidato à
presidência pelo mesmo em 1998, foi eleito ao cargo com um discurso de
continuidade das medidas econômicas então adotadas por Caldeira, associadas a
políticas assistenciais de inclusão social. Seu maior trunfo, no entanto, era
um projeto de nova constituição que contemplava a criação de um novo Tribunal
Superior de Justiça que atuaria de forma independente para garantia máxima dos
direitos fundamentais[4] - assim como todos os seus
oponentes sabiam, o foco maior das reivindicações populares dizia respeito à
corrupção e o controle do judiciário pelos poderes executivo e legislativo[5].Segundo a ONG Human’s
Right Watch, o texto representava uma das legislações mais avançadas da América
Latina em termos de proteção à pessoa[6].
Medidas
Políticas e Econômicas
Mesmo com uma inflação
beirando os 100% ainda em 1996, a Venezuela entraria no século XX como o país
mais rico de toda a América Latina[7], cujas finanças,
toleravelmente bem controladas na gestão de Caldera, provinham da extração e
exportação do petróleo.
Até meados de 2005, a economia manteve-se em
equilíbrio, apresentando ao final daquele ano o maior PIB per capita da América
Latina[8]. A popularidade do líder
bolivariano também seguia em alta, com cerca de 70% de aprovação, que pesou
fortemente quando da tentativa de sua deposição, em 2002, num golpe de estado fracassado
que esteve em curso por apenas 40 horas[9].
Mesmo ao sopro de ventos
prósperos, os gastos públicos foram crescentes desde os primeiros anos de seu
governo. A receita fiscal já apresentava redução em 2008, ano de alta histórica
do preço do petróleo. A principal causa devia-se à queda de produção da
principal e única petrolífera venezuelana, que passou a exportar 2,7 milhões de
barris por dia em 2011, contra 3,3 milhões 5 anos antes[10]. Esta por sua vez,
segundo especialistas, tinha sua origem no sucateamento dos processos de
extração e refino do petróleo, cuja estagnação tecnológica, decorrente da
ausência do fator concorrencial e da subida de preços de bens importados, foi
determinante para a redução da produtividade de todo o processo petrolífero em
âmbito nacional. A estagnação foi tanta que, para lidar com as demandas
internas antes atendidas, o país teve de passar a importar o combustível fóssil
direto dos Estados Unidos.
Concomitante a isto, a partir de 2004 iniciou
o “El Comandante” um processo gigantesco de expropriações de empresas privadas,
terras e latifúndios. Estima-se que, entre o período que vai de 2004 a 2013,
3,6 milhões de hectares foram forçosamente desapropriados como forma de tornar
produtivas terras consideradas ociosas[11]. A polêmica ganhou
contornos internacionais ainda em 2010 quando a Assembleia Nacional da
Venezuela aprovou texto que autorizava a expropriação de terrenos considerados
ociosos ou que tivessem sido cedidos a terceiros cuja finalidade demonstrava “utilização contrária aos planos nacionais de
desenvolvimento e segurança agroalimentar[12]”.
Também saltam à vista as
inúmeras nacionalizações ocorridas no país a partir da segunda reeleição de
Chavez, em 2007. Desde sua eleição ainda em 1999, até o ano de 2010, mais de
400 nacionalizações já haviam ocorrido[13]. Só naquele ano, mais de
200 nacionalizações haviam sido praticadas, sendo uma das mais famosas e
conturbadas a estatização da subsidiária “Owens-Illinois”[14].E o detalhe estarrecedor
deste processo, segundo depoimento da Câmara do Comércio Venezuelana-Americana concedido
no final de 2010, é que apenas 9 das 44 firmas expropriadas associadas a ela
tiveram seus donos recompensados[15].
O principal motivo destas ações de fundo
autoritário se dava, na opinião do próprio presidente, pela tentativa de
construir o socialismo na Venezuela a partir do controle estrito de setores
estratégicos do país[16]. No grande comício
televisionado após sua vitória em 2007, El Comandante chegou a declarar: “Tudo aquilo que foi privatizado, será
nacionalizado [...] Nós estamos nos dirigindo rumo ao socialismo, e nada nem
ninguém poderá nos deter [...] eu estou realmente no rumo de [Leon] Trostky -
da revolução permanente[17]”. Não à toa, ao final da
década passada, os setores do petróleo e eletricidade, telecomunicações, alimentação
e distribuição alimentícia, indústria de cimento e produção de ferro e até um
quarto do sistema bancário estavam sob dirigismo central dos burocratas chavistas.
Em pouco tempo as implicações negativas
intrínsecas a tais medidas econômicas começaram a vir a público. Antes da
virada para a nova década dos anos 2000, a inflação já voltava a assustar com
forte alta avaliada em 11,3%[18]. De forma a combatê-la,
além do controle de preços sobre combustíveis e eletricidades, Chavez
determinou a criação de uma unidade socialista de produção e distribuição de
alimentos – a PDVA, filial da empresa nacional de petróleo PDVSA, tornou-se
responsável pela distribuição de gêneros alimentícios importados no país[19], ao passo que a produção
de alimentos processados passou a ser responsabilidade da empresa Monaca, ex
filial mexicana expropriada pelo líder também em 2010[20]. Juntamente a isso,
proibiu que camelôs vendessem alimentos para tentar segurar a alta dos preços[21]. A situação tornou-se
vexatória quando, em junho do mesmo ano, 120 mil toneladas de comida estragada
foram encontradas na sede da companhia PDVA[22] – claro indício da
impossibilidade de realizar um cálculo preciso de preços de produção e
distribuição de alimentos num contexto em que há a falta de referências
obviamente fornecidas por um sistema de preços livres.
Para piorar o déficit fiscal que continuava em
franca ascensão, a crise do setor energético no país surgiu com força ainda em
2009, tornando as condições de produção interna de alimentos e bens de capital ainda
mais difíceis[23].
Cortes de luz, racionamentos, medidas de contenção passaram a fazer parte do
cotidiano dos cidadãos venezuelanos, juntamente com a carestia de alimentos
básicos[24]. Como consequência, o
abastecimento de alimentos, já precário, sofreu novo golpe em razão da
paralisação dos setores do agronegócio e da distribuição ineficiente de gêneros
alimentícios[25].
A saída foi importar: apenas do Brasil, as importações subiram 858% entre 2008
e 2012[26], legando um déficit de
quase USD $ 3 bilhões aos venezuelanos ao fim daquele ano[27].
Atualmente, a situação da Venezuela, mais do que
em frangalhos, está em situação de calamidade. A corrupção atinge largamente
todos os setores em decorrência do controle de preços e da oferta descontrolada
de moeda[28];
há pouca transparência nas tomadas de decisão por parte de agentes políticos, e
os custos do governo chagaram a patamares que apenas pioram a inflação é o
déficit fiscal[29].O
desabastecimento de alimentos e a fome generalizada tende a persistir.
Controle
sobre o Judiciário e o Legislativo
A situação também é gritante quando voltamos
os olhos para o controle do executivo sobre as demais esferas do poder público.
Regredindo no tempo, pouco após tomar posse em 1999, Chavez encabeçou medidas
para alterar a constituição de 1961, então vigente, que impedia a reeleição do
político eleito. Através de um decreto presidencial, um referendo foi
convocado, cujo resultado autorizou a formação de uma Assembleia Nacional
Constituinte com o objetivo de alterar o Estado e fundar um novo ordenamento
jurídico que permitisse criar uma “democracia social e participativa[30]”. Nas eleições para a
Assembleia, por meio de uma manobra política, aliados de Chavez conseguiram 123
das 131 cadeiras da Assembleia[31].
Durante a reunião dos parlamentares,
autorizou-se a concentração dos poderes clássicos do Estado em um único corpo,
considerado soberano e cujo funcionamento era suficiente par decretar as
medidas necessárias para enfrentar a situação de emergência que vivia o país[32]. Depositária da Vontade
Popular, a Assembleia obteve em si e no presidente todo o poder necessário para
reorganizar o Estado Venezuelano, concedendo, deste modo, uma carta branca para
que a presidência pudesse intervir no legislativo e no judiciário[33]: em 12 de agosto daquele
ano, é lançado um decreto mediante o qual se ratifica a organização e sujeição
de todos os poderes do Estado ao “Poder Originário”, fonte de todo o poder e
lhe autorizando a intervir, modificar ou suspender os órgãos do poder público
conforme o próprio consentimento[34].
Mais tarde, a Assembleia promulga a Comissão
de Emergência Judicial, que terminaria a tarefa de estabelecer a regulação do
poder judiciário e estabelece outro decreto destinado a fazer o mesmo com o
poder legislativo[35]. Juízes cujo patrimônio
não condiziam com suas rendas foram automaticamente suspensos e centenas de
juízes no país foram destituídos[36]. Promulgada em 30 de
dezembro de 1999, a Nova Constituição ratificou o pleno poder do executivo
sobre os demais poderes, a Controladoria Geral da República, a Receita Federal
e o Conselho Nacional Eleitoral[37]. Um golpe de estado com
fachada jurídica estava assim constituído.
Nos termos da HRW, desde 2004, o Supremo
Tribunal transformou-se num tribunal complacente com as medidas políticas
descabidas de Hugo Chávez[38]. Naquele ano, a maioria
dos juízes do órgão foram despachados e 12 novos, de alinhamento claramente
chavista, foram incorporados, transformando o poder judiciário num mero
apêndice do executivo[39].
Conclusão
Hugo Chávez representa perfeitamente o tirano
populista, que personaliza a ditadura sob seu comando com um viés patronal, ao
mesmo tempo que se vale de todos os meios –legais e ilegais – para manter-se no
poder. Tornou-se evidente a utilização da principal empresa nacional, a PDVSA
para fins políticos, como o controle de outras companhias associadas, a
captação de recursos financeiros para o próprio partido e sua mera
instrumentalização, tal como fora feito no Brasil com a Petrobrás, diante de
uma crescente crise nacional.
As nacionalizações também seguiram pelo mesmo
caminho. A partir de uma constituição terrível e deteriorada, a propriedade
privada foi praticamente esquecida quando “El Comandante” passou a enumerar as
mais criativas desculpas que justificassem as expropriações. O controle do
poder total do governo em suas mãos progrediu a medida que convencia, principalmente
seus eleitores, de que era possível distribuir vantagens e benefícios
indiscriminadamente a todos sem causar custo algum a parte alguma do país. Este
mito do “governo grátis”, aliado a medidas econômicas socialistas
catastróficas, como o dirigismo segundo um órgão central incapaz de deter em si
todas as informações necessárias para a tomada racional de decisões, compõem a
causa principal do desastre venezuelano que assistimos hoje. Representa, sem
sombra de dúvida, o ponto de chegada a que todos os países que seguem a mesma
fórmula estão sujeitos: medidas populares, aumento dos gastos, maior controle e
intervenção governamental, perseguição a opositores, concentração dos veículos
de notícias, imposição sobre os demais poderes do corpo político - a receita que todo governo "bom e que busca a justiça social" acaba seguindo. Enfim, eis o
legado do “milico golpista” Hugo Chávez.
[1] http://g1.globo.com/hora1/noticia/2016/05/venezuela-enfrenta-crise-energetica-alta-violencia-e-inflacao-de-ate-700.html
[2] https://www.institutoliberal.org.br/blog/solapando-a-democracia-como-hugo-chavez-deu-um-golpe-de-estado-com-fachada-juridica/
[3]
Ibidem.
[4] http://aindaamoscaazul.blogspot.com.br/2008/09/hugo-chvez-toma-o-controle-do-poder.html
[6] https://noticias.terra.com.br/mundo/hrw-diz-que-judiciario-da-venezuela-e-politicamente-controlado-pelo-chavismo,d1746e4edcc779bb9de6c33ddc1cbc24jdx8r9tf.html
[7] http://www.infomoney.com.br/bloomberg/mercados/noticia/4251173/como-hugo-chavez-destruiu-economia-mais-rica-america-latina
[8] http://www.infomoney.com.br/bloomberg/mercados/noticia/4251173/como-hugo-chavez-destruiu-economia-mais-rica-america-latina
[9] https://www.institutoliberal.org.br/blog/solapando-a-democracia-como-hugo-chavez-deu-um-golpe-de-estado-com-fachada-juridica/
[10] http://www.infomoney.com.br/bloomberg/mercados/noticia/4251173/como-hugo-chavez-destruiu-economia-mais-rica-america-latina
[11] http://exame.abril.com.br/mundo/venezuela-continuara-com-politica-de-expropriacoes-de-terras/
[12] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/752431-na-venezuela-lei-aprovada-por-chavez-facilita-expropriacao-agraria.shtml
[13] http://opiniaoenoticia.com.br/sem-categoria/onda-de-nacionalizacoes-na-venezuela-promete-escassez-e-declinio/
[14] http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,eua-esperam-que-venezuela-indenize-empresa-estatizada,630178
[15] http://opiniaoenoticia.com.br/sem-categoria/onda-de-nacionalizacoes-na-venezuela-promete-escassez-e-declinio/
[16] http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/outras-palavras/venezuela-politicas-economicas-nacionalizacoes-e-reducao-da-pobreza/
[17] https://www.wsws.org/pt/2007/jan2007/port-j24.shtml
[18] http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,chavez-expropria-mais-uma-empresa-de-alimentos-na-venezuela,18221e
[19] http://www.jornal.ceiri.com.br/ru/politica-internacional-escandalo-dos-alimentos-pode-afetar-eleicoes-legislativas-na-venezuela/
[20] http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,chavez-expropria-mais-uma-empresa-de-alimentos-na-venezuela,18221e
[21] http://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,chavez-expropria-mais-uma-empresa-de-alimentos-na-venezuela,18221e
[22] https://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/venezuela-abandona-100-mil-t-de-comida-podre-em-porto,f9d9be14db92b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
[23] http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-03-18/governo-da-venezuela-nega-risco-de-desabastecimento-de-alimentos-por-causa-do-racionamento-de-energia
[24] http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-03-18/governo-da-venezuela-nega-risco-de-desabastecimento-de-alimentos-por-causa-do-racionamento-de-energia
[25]
Ibidem
[26] http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-preco-de-aceitar-a-venezuela,378132
[27] http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-03-18/governo-da-venezuela-nega-risco-de-desabastecimento-de-alimentos-por-causa-do-racionamento-de-energia
[28] http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/03/internacional/1417639233_318921.html
[29] http://www.heritage.org/index/country/venezuela?ac=1
[30] https://www.epochtimes.com.br/como-hugo-chavez-deu-golpe-estado-com-fachada-juridica/#.WCOO61UrL3h
[31] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft13089901.htm
[32] Ibidem
[33] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft31089901.htm
[34] https://www.epochtimes.com.br/como-hugo-chavez-deu-golpe-estado-com-fachada-juridica/#.WCOSSFUrL3i
[35] https://www.epochtimes.com.br/como-hugo-chavez-deu-golpe-estado-com-fachada-juridica/#.WCOSSFUrL3i
[36] http://aindaamoscaazul.blogspot.com.br/2008/09/hugo-chvez-toma-o-controle-do-poder.html
[37] https://www.oas.org/juridico/mla/sp/ven/sp_ven-int-const.html
[38]http://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/09/080919_venezuela_human_rights2_dg.shtml
[39] http://aindaamoscaazul.blogspot.com.br/2008/09/hugo-chvez-toma-o-controle-do-poder.html
[40]http://portalimprensa.com.br/noticias/internacional/50114/eua+denuncia+perseguicao+a+imprensa+na+venezuela
[41] http://www2.blogdomurillodearagao.com.br/venezuela-air-condena-perseguicao-de-chavez-a-imprensa/
[42] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/08/associacao-de-radiodifusao-condena-a-perseguicao-de-chavez-a-imprensa.html
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