Recentemente, o Movimento
Sul é o Meu País, ao atrair os holofotes da mídia nacional, foi alvo de
comentários e críticas – no mais das vezes esparsos – que o resumiam a um tipo
novo de fascismo, como se a luta dissidente por um governo autônomo e de
identidade própria constituísse uma tentativa de submeter todos os cidadãos á
lei ou a um direito de uma coletividade específica.
A meu ver, além de equivocada e rasa, a
crítica parece não levar em consideração um detalhe político importante nessa
tentativa de autodeterminação. Para ilustrar melhor este ponto, observe abaixo
trechos importantes do Manifesto de Outubro, documento fundador do Movimento
Integralista brasileiro, considerado o maior expoente do fascismo no Brasil:
A Nação Brasileira deve ser
organizada, una, indivisível, forte, poderosa, rica, próspera e feliz. Para
isso precisamos de que todos os brasileiros estejam unidos. Mas o Brasil não
pode realizar a união intima e perfeita de seus filhos, enquanto existirem Estados
dentro do Estado, partidos políticos fracionando a Nação, classes lutando
contra classes, indivíduos isolados, exercendo a ação pessoal nas decisões do
governo; enfim todo e qualquer processo de divisão do povo brasileiro.
[...] Uma Nação, para progredir em
paz, para ver frutificar seus esforços, para lograr prestígio no Interior e no
Exterior, precisa ter uma perfeita consciência do Princípio de Autoridade
[...]Precisamos de hierarquia, de disciplina, sem o que só haverá desordem. Um
governo que saia da livre vontade de todas as classes é representativo da
Pátria: como tal deve ser auxiliado, respeitado, estimado e prestigiado. Nele
deve repousar a confiança do povo[1].
Agora leia esta importante
passagem do manifesto do Movimento o Sul é o Meu País:
O “Movimento O Sul é Meu País” é uma
instituição criada com a finalidade de elaborar estudos e organizar debates
livres para avaliar as possibilidades pacíficas e democráticas de
autodeterminação do povo sulino, que habita os territórios dos Estados do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul através da forma plebiscitaria.
[O Movimento] Respalda-se na regra do
milenar do Direito Natural de que os povos têm direito a sua autodeterminação,
desde que a população emancipada expresse democraticamente sua vontade
soberana. A Resolução 1514 (XV) da ONU é muito clara neste sentido quando diz
que “Todos os povos têm o direito à livre determinação; em virtude deste
direito, determinam livremente o seu estatuto político e orientam livremente o
seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Regra considerada “divina”,
existente desde os primórdios das democracias exercidas nas cidades/estados
gregas e no antigo Senado Romano, onde afirmava-se que o direito à
autodeterminação é uma lei natural, que não precisa ser escrita, e depois pelas
modernas e crescentes doutrinas sociológicas, este princípio é acatado por
todas as nações democráticas do Planeta, entre elas o Brasil, através do art.
4o. de sua Constituição. Países como os Estados Unidos, a Inglaterra e outros
que possuem uma constituição com pouco mais de vinte artigos, reconhecem
expressamente e dedicam capítulo especial a este preceito do direito natural. A
ONU adotou o direito à autodeterminação como princípio basilar, de onde deriva
e sustenta-se sua existência.
Como podemos observar, o princípio da
autonomia, da possibilidade de viver conforme as próprias leis é o fator
norteador do separacionismo sulista e, como tal, está em oposição direta à
principal narrativa do fascismo: a submissão geral, irrestrita e violenta ao
Estado; a identificação absoluta do Estado com um povo, através de uma espécie
de osmose no qual os dois pólos, sociedade civil e Estado, unem-se num único
corpo.
A busca por uma descentralização do poder é extremamente
desejável e necessária com o objetivo maior de liberdade e autonomia,
individual, civil e política. Tampouco o separacionismo sulista deve ser
confundido com o multiculturalismo que tende a elevar a uma categoria superior
a do cidadão um determinado grupo mais ou menos coeso, caracterizado por uma
unidade comum a todos – como, por exemplo, a elevação do grupo “indígena” ou “afro-descendente”
à categoria de um grupo, com uma ancestralidade e partilha comum de valores,
que como tal deve ser reconhecida e possuir direitos diferentes e específicos
não estendidos aos demais cidadãos da República, e por isso mesmo definíveis
como privilégios.
No contrato político que fundamenta um estado,
um corpo político, a noção de cidadania, e da igualdade de todos perante a lei,
cada um contando com direitos e deveres iguais, é colocada acima de diferenças
potencialmente coletivas, a exigência de direitos coletivos a um determinado grupo
fere com vigor este princípio republicano por excelência. A principal
diferença, no entanto, entre tais coletividades mencionadas e o separacionismo
sulista dá-se pela ausência, no segundo, de uma pretensão de elevar a uma
categoria distinta – e, portanto, diferenciada e com direitos diferenciados e
exclusivos - na política nacional, o “povo”
sul-brasileiro.
Com efeito, é possível encontrar no manifesto
o Sul é Meu País uma forte reivindicação histórica do direito de
autodeterminação do povo sul-brasileiro. Numa seção intitulada exatamente “Declaração
de Direitos do Povo Sul Brasileiro”, lemos logo nos primeiros artigos:
Artigo I: Apesar de constar diferente
nas carteiras de identidade impressas em Brasília, todo cidadão livre da União
Sul-Brasileira se esforçará em declarar a sua condição de SUL-BRASILEIRO nos
atos em que a informação de nacionalidade for exigida;
Artigo II: O POVO SUL-BRASILEIRO
reconhece que todos os Povos e Nações do Brasil e do Mundo têm direito às
prerrogativas de nacionalidade própria e, por conseqüência, à autodeterminação,
e que a igualdade de direitos no contexto universal e o recíproco respeito aos
direitos da nacionalidade deverão ser uma constante nos homens e mulheres
livres de todos os povos;
Artigo III: O POVO SUL-BRASILEIRO
exige seus direitos de nacionalidade e autodeterminação, invocando o direito
internacional que lhe dá suporte, o direito das gentes, os direitos subjetivos
públicos e o direito natural[2];
Nos termos de Benedict Anderson, a nação é uma
“comunidade imaginada”. Não há, frente aos poderes de Brasilia, a reivindicação
para se ceder um tratamento diferenciado ao “povo” sul brasileiro. A ideia de
um separacionismo é por si só diferente deste tipo de reivindicação. Há, porém,
a necessidade de se fazer a seguinte questão: no que consiste este povo sul
brasileiro? Em que ele difere do povo paulista, do nordestino, do paraense ou
do capixaba? No quê exatamente os habitantes do sul do país diferem daqueles
mais ao norte, ou ao extremo leste ou centro-oeste? É certo que um conjunto de
costumes cristalizado no sul é totalmente distinto daquele cristalizado no
nordeste. Mas em que medida, podemos dizer que há um povo, que todos aqueles
que residem no sul identificam-se numa categoria identitaria conhecida como
povo sul-brasileiro?
A ideia de povo sul-brasileiro é claramente
uma narrativa engenhosa, uma invenção que se escora sobre a Revolução
Rio-Grandense e suas tradições que tiveram continuidade através de muitas gerações.
A tentativa de se restaurar uma república Rio-Grandense conforme os valores e
princípios da famosa Revolução Farroupilha esconde algo, que, para mim, soa
perigoso: um tipo diferente de nacionalismo, de reivindicação de uma
ancestralidade do povo sul-brasileiro que por si só deve conduzir a uma
legitimidade pela separação.
Deixo claro aqui meu ponto: sou
a favor da secessão. Acredito que regimes menores são mais coesos, possuem uma
ordem pública muito mais enxuta e por isso mesmo muito mais fácil de ser
vigiada por seus cidadãos. As liberdades individuais tendem a ser aí protegidas
e estendidas a graus elevados e que por si só causam inveja ao cidadão
brasileiro, não apenas de hoje, mas praticamente de toda a história brasileira
desde sua época colonial.
A minha crítica que, repito, não faz com que
me coloque contra o Movimento Sul é o Meu País, resume-se no fato de que o
direito à secessão, em caso de um futuro promissor e de consolidação de um novo
estado sulista independente, possa transformar-se num credo legitimador de
diferenciações internas entre os sulistas e os não sulistas, concedendo aos
primeiros um estatuo diferenciado em relação aos segundos.
Sinceramente, acho difícil que este tipo de
comportamento que pode conduzir a segregações venha a ocorrer, se confirmada a secessão.
No entanto, a necessidade de vigilância é clara. Povos e nações são construções
ideológicas, muito mais do que realidades dadas e tangíveis. Muito mais do que
formar grupos de identidade, os indivíduos devem ser considerados como
universos em si mesmos, independentemente de rótulos coletivos que os
diferenciem, desta feita, de outras coletividades. Mas ainda assim, fica o
debate, que considero tão saudável e necessário quanto o tema da separação: um
federalismo extremamente descentralizado não seria preferível a fim de evitar o
nascimento de uma nova narrativa que coloque como ponto nevrálgico o conflito
entre “povos” e “nações”? Ou que possa levantar um conflito de caráter
diaspórico, de reivindicações conflitantes de oriundas de “povos” e “nações”
distintos. A principal preocupação quanto ao Movimento O Sul é o Meu País é o
fato de que a bandeira da autonomia não seja feita em prol da liberdade ou da
autonomia propriamente ditos, mas em nome de um suposto povo sul brasileiro. É
este o verdadeiro debate.
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