"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 28 de janeiro de 2017

O Sul é o Meu País – Nova Diáspora?


 Recentemente, o Movimento Sul é o Meu País, ao atrair os holofotes da mídia nacional, foi alvo de comentários e críticas – no mais das vezes esparsos – que o resumiam a um tipo novo de fascismo, como se a luta dissidente por um governo autônomo e de identidade própria constituísse uma tentativa de submeter todos os cidadãos á lei ou a um direito de uma coletividade específica.

 A meu ver, além de equivocada e rasa, a crítica parece não levar em consideração um detalhe político importante nessa tentativa de autodeterminação. Para ilustrar melhor este ponto, observe abaixo trechos importantes do Manifesto de Outubro, documento fundador do Movimento Integralista brasileiro, considerado o maior expoente do fascismo no Brasil:

 A Nação Brasileira deve ser organizada, una, indivisível, forte, poderosa, rica, próspera e feliz. Para isso precisamos de que todos os brasileiros estejam unidos. Mas o Brasil não pode realizar a união intima e perfeita de seus filhos, enquanto existirem Estados dentro do Estado, partidos políticos fracionando a Nação, classes lutando contra classes, indivíduos isolados, exercendo a ação pessoal nas decisões do governo; enfim todo e qualquer processo de divisão do povo brasileiro.

 [...] Uma Nação, para progredir em paz, para ver frutificar seus esforços, para lograr prestígio no Interior e no Exterior, precisa ter uma perfeita consciência do Princípio de Autoridade [...]Precisamos de hierarquia, de disciplina, sem o que só haverá desordem. Um governo que saia da livre vontade de todas as classes é representativo da Pátria: como tal deve ser auxiliado, respeitado, estimado e prestigiado. Nele deve repousar a confiança do povo[1].

Agora leia esta importante passagem do manifesto do Movimento o Sul é o Meu País:

 O “Movimento O Sul é Meu País” é uma instituição criada com a finalidade de elaborar estudos e organizar debates livres para avaliar as possibilidades pacíficas e democráticas de autodeterminação do povo sulino, que habita os territórios dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul através da forma plebiscitaria.

 [O Movimento] Respalda-se na regra do milenar do Direito Natural de que os povos têm direito a sua autodeterminação, desde que a população emancipada expresse democraticamente sua vontade soberana. A Resolução 1514 (XV) da ONU é muito clara neste sentido quando diz que “Todos os povos têm o direito à livre determinação; em virtude deste direito, determinam livremente o seu estatuto político e orientam livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Regra considerada “divina”, existente desde os primórdios das democracias exercidas nas cidades/estados gregas e no antigo Senado Romano, onde afirmava-se que o direito à autodeterminação é uma lei natural, que não precisa ser escrita, e depois pelas modernas e crescentes doutrinas sociológicas, este princípio é acatado por todas as nações democráticas do Planeta, entre elas o Brasil, através do art. 4o. de sua Constituição. Países como os Estados Unidos, a Inglaterra e outros que possuem uma constituição com pouco mais de vinte artigos, reconhecem expressamente e dedicam capítulo especial a este preceito do direito natural. A ONU adotou o direito à autodeterminação como princípio basilar, de onde deriva e sustenta-se sua existência.

  Como podemos observar, o princípio da autonomia, da possibilidade de viver conforme as próprias leis é o fator norteador do separacionismo sulista e, como tal, está em oposição direta à principal narrativa do fascismo: a submissão geral, irrestrita e violenta ao Estado; a identificação absoluta do Estado com um povo, através de uma espécie de osmose no qual os dois pólos, sociedade civil e Estado, unem-se num único corpo.

 A busca por uma descentralização do poder é extremamente desejável e necessária com o objetivo maior de liberdade e autonomia, individual, civil e política. Tampouco o separacionismo sulista deve ser confundido com o multiculturalismo que tende a elevar a uma categoria superior a do cidadão um determinado grupo mais ou menos coeso, caracterizado por uma unidade comum a todos – como, por exemplo, a elevação do grupo “indígena” ou “afro-descendente” à categoria de um grupo, com uma ancestralidade e partilha comum de valores, que como tal deve ser reconhecida e possuir direitos diferentes e específicos não estendidos aos demais cidadãos da República, e por isso mesmo definíveis como privilégios.


 No contrato político que fundamenta um estado, um corpo político, a noção de cidadania, e da igualdade de todos perante a lei, cada um contando com direitos e deveres iguais, é colocada acima de diferenças potencialmente coletivas, a exigência de direitos coletivos a um determinado grupo fere com vigor este princípio republicano por excelência. A principal diferença, no entanto, entre tais coletividades mencionadas e o separacionismo sulista dá-se pela ausência, no segundo, de uma pretensão de elevar a uma categoria distinta – e, portanto, diferenciada e com direitos diferenciados e exclusivos -  na política nacional, o “povo” sul-brasileiro.  

 Com efeito, é possível encontrar no manifesto o Sul é Meu País uma forte reivindicação histórica do direito de autodeterminação do povo sul-brasileiro. Numa seção intitulada exatamente “Declaração de Direitos do Povo Sul Brasileiro”, lemos logo nos primeiros artigos:

Artigo I: Apesar de constar diferente nas carteiras de identidade impressas em Brasília, todo cidadão livre da União Sul-Brasileira se esforçará em declarar a sua condição de SUL-BRASILEIRO nos atos em que a informação de nacionalidade for exigida;

Artigo II: O POVO SUL-BRASILEIRO reconhece que todos os Povos e Nações do Brasil e do Mundo têm direito às prerrogativas de nacionalidade própria e, por conseqüência, à autodeterminação, e que a igualdade de direitos no contexto universal e o recíproco respeito aos direitos da nacionalidade deverão ser uma constante nos homens e mulheres livres de todos os povos;

Artigo III: O POVO SUL-BRASILEIRO exige seus direitos de nacionalidade e autodeterminação, invocando o direito internacional que lhe dá suporte, o direito das gentes, os direitos subjetivos públicos e o direito natural[2];

 Nos termos de Benedict Anderson, a nação é uma “comunidade imaginada”. Não há, frente aos poderes de Brasilia, a reivindicação para se ceder um tratamento diferenciado ao “povo” sul brasileiro. A ideia de um separacionismo é por si só diferente deste tipo de reivindicação. Há, porém, a necessidade de se fazer a seguinte questão: no que consiste este povo sul brasileiro? Em que ele difere do povo paulista, do nordestino, do paraense ou do capixaba? No quê exatamente os habitantes do sul do país diferem daqueles mais ao norte, ou ao extremo leste ou centro-oeste? É certo que um conjunto de costumes cristalizado no sul é totalmente distinto daquele cristalizado no nordeste. Mas em que medida, podemos dizer que há um povo, que todos aqueles que residem no sul identificam-se numa categoria identitaria conhecida como povo sul-brasileiro?

 A ideia de povo sul-brasileiro é claramente uma narrativa engenhosa, uma invenção que se escora sobre a Revolução Rio-Grandense e suas tradições que tiveram continuidade através de muitas gerações. A tentativa de se restaurar uma república Rio-Grandense conforme os valores e princípios da famosa Revolução Farroupilha esconde algo, que, para mim, soa perigoso: um tipo diferente de nacionalismo, de reivindicação de uma ancestralidade do povo sul-brasileiro que por si só deve conduzir a uma legitimidade pela separação.
Deixo claro aqui meu ponto: sou a favor da secessão. Acredito que regimes menores são mais coesos, possuem uma ordem pública muito mais enxuta e por isso mesmo muito mais fácil de ser vigiada por seus cidadãos. As liberdades individuais tendem a ser aí protegidas e estendidas a graus elevados e que por si só causam inveja ao cidadão brasileiro, não apenas de hoje, mas praticamente de toda a história brasileira desde sua época colonial.

 A minha crítica que, repito, não faz com que me coloque contra o Movimento Sul é o Meu País, resume-se no fato de que o direito à secessão, em caso de um futuro promissor e de consolidação de um novo estado sulista independente, possa transformar-se num credo legitimador de diferenciações internas entre os sulistas e os não sulistas, concedendo aos primeiros um estatuo diferenciado em relação aos segundos.

 Sinceramente, acho difícil que este tipo de comportamento que pode conduzir a segregações venha a ocorrer, se confirmada a secessão. No entanto, a necessidade de vigilância é clara. Povos e nações são construções ideológicas, muito mais do que realidades dadas e tangíveis. Muito mais do que formar grupos de identidade, os indivíduos devem ser considerados como universos em si mesmos, independentemente de rótulos coletivos que os diferenciem, desta feita, de outras coletividades. Mas ainda assim, fica o debate, que considero tão saudável e necessário quanto o tema da separação: um federalismo extremamente descentralizado não seria preferível a fim de evitar o nascimento de uma nova narrativa que coloque como ponto nevrálgico o conflito entre “povos” e “nações”? Ou que possa levantar um conflito de caráter diaspórico, de reivindicações conflitantes de oriundas de “povos” e “nações” distintos. A principal preocupação quanto ao Movimento O Sul é o Meu País é o fato de que a bandeira da autonomia não seja feita em prol da liberdade ou da autonomia propriamente ditos, mas em nome de um suposto povo sul brasileiro. É este o verdadeiro debate.   



[1] http://www.integralismo.org.br/?cont=825&ox=2
[2] http://www.sullivre.org/declaracao-de-direitos-do-povo-sul-brasileiro/

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