"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Por que não devemos tributar Heranças, Lucros e grandes Fortunas ?


(Texto dividido em duas partes)

  A recente intenção do poder executivo e da base que lhe concede apoio, demonstrada ainda no fim da semana anterior, de incluir no projeto orçamentário da União para 2016 a tributação sobre heranças e grandes fortunas reacendeu um longo debate que, em razão de um natural desgaste que acometera ambos os lados da discussão, parecia ter se esvaído do horizonte das principais reivindicações de diversos movimentos sociais e políticos.   

 A hipótese, introduzida pelo senador Renan Calheiros em sua “Agenda Brasil”, além de formular um esboço sobre como tal tributação operaria em âmbito nacional, se apresentava como tese seqüenciada e desenvolvida a partir de sentenças anteriores, as quais, estas sim, não careceram de atenção, tendo se constituído nos últimos anos como objeto de debates ardorosos sobre uma ampla reforma tributária e política. A taxação progressiva de renda, idéia da qual se origina, em grande parte, o projeto em questão sempre despertou nos espíritos mais caridosos e nos adeptos de uma filosofia político-econômica notadamente oposta à liberdade, uma forte razão e senso de dever em apoiar e levar adiante, não importasse se direta ou indiretamente, a consecução da justiça social por meio da distribuição de renda previamente planejada por um órgão central.  E, com efeito, estas idéias não prosperaram apenas nos círculos onde se devotasse alento a tais noções; mesmo alguns que concediam voz para se auto-proclamarem “direitistas” não apenas corroboravam tais idéias segundo uma finalidade nobre que argumentavam ser critério suficiente para a decisão de abrir mão temporariamente de suas individualidades, como julgavam, em consonância com os demais, digno de censura a oposição aberta a tais medidas.

 Cônscio de que a tributação progressiva de renda, sobre a herança, lucros e grandes fortunas são fruto de uma concepção “moral”, política e econômica errônea sobre o modo pelo qual se opera a produção capitalista nos seus mínimos detalhes e as superestruturas que dela resultam e cônscio, também, de que os ideais que os associam e os contém em seu escopo constituem, desde há muito, uma das maiores ameaças intelectuais e políticas às nossas liberdades e aos valores de nossa civilização ocidental, o presente ensaio tem por finalidade elaborar uma séria crítica política e econômica ao conjunto ideológico aqui mencionado através da demonstração das mazelas e agruras que necessariamente decorrem da prática de tais taxações, apresentando ao leitor, doravante, as razões que nos levam a asseverar que a mesma produz o contrário daquilo que advoga ser sua finalidade máxima. Para tanto, dividimos o presente ensaio em três partes, nas quais as duas primeiras destinam-se aos nossos fundamentos políticos e econômicos, e a última, por seu turno, a uma breve conclusão sobre o problema.

 O conceito de propriedade. A crítica a ela endereçada por Rousseau.

 É no escrito “O Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, obra datada de 1.688 e de autoria do filósofo inglês John Locke (1632-1704), que encontramos uma conceitualização precisa - a qual se estenderia por toda a modernidade, sem sofrer sensíveis alterações - a respeito da noção de propriedade. A despeito do uso de tal conceito em obras de pensadores precedentes, tais como Hobbes e Spinoza, é em Locke que o mesmo adquire um estatuto fundamental face ao corpo político, entendido como o corpo normativo capaz de efetivar legítimas punições, e à sociedade civil, composta por todos os cidadãos que, juntos, acordaram em conceber um governo, uma vez que, característica intrínseca da liberdade dos homens enquanto submetidos somente à lei que a natureza prescreveu, passa a adquirir feições quase “ontológicas” em relação às descrições do cidadão e do governo civil. A propriedade, neste contexto, além de constituir um direito de posse do indivíduo sobre tudo aquilo que é produzido por suas forças mentais e físicas, representa um fator unificante e que oferece fundamento e defesa a outros dois conceitos fundamentais do pensamento político moderno, concebidos, nos termos da positivação de direitos, como os direitos do indivíduo, entendido como cidadão, à vida e à liberdade. A propriedade, portanto, possui em si outras duas esferas que, aliadas à posse legal de bens e riqueza, conferem ao homem o status de proprietário de suas faculdades, de si mesmo e de sua vida; e lhe fornecem, com isto, o fundamento da autonomia de conduzir seus planos conforme sua razão, sem incorrer em desacordo com a lei civil e sem padecer da interferência, contra sua vontade, ou da coerção da esfera política ou dos demais indivíduos. 

 Neste sentido, a propriedade de si, de seus bens e de sua liberdade é ponto fundamental que restringe o poder político em suas esferas legítimas de atuação, concebendo como sua finalidade a execução das funções normativas da legislação e do julgamento das querelas que envolvam os cidadãos e suas propriedades e a proteção exclusiva das liberdades de todos os indivíduos. Conceder permissão ao governo para que este estipule uma parcela de nossos bens que servirá de espólio a seus interesses expansivos e autoritários ou para que legisle sobre a quantidade exata e a maneira pela qual seus cidadãos deverão usufruir de determinado bem constitui, deste modo, grave ameaça às nossas propriedades em todos os seus sentidos e mais fundamentalmente ainda às nossas liberdades, porquanto – e este é o sentido preciso que este ensaio convida o leitor a dirigir sobre a relação, no estado democrático de direito, entre propriedade, vida e liberdade -, restringidas nossas possibilidades ou liberdades de escolha e crescimento em determinadas situações, já não podemos afirmar sermos livres o suficiente para determinar, conforme nossos anseios e planos, o direcionamento preciso e amplo que gostaríamos de dar a nossos bens, faculdades, conhecimentos e experiências adquiridos e até mesmo à nossa vida como um todo. Em situações extremas, possuímos nem mesmo as condições de preservação de nossa própria existência.   

 Não obstante, se por um lado encontramos a equivalência da possibilidade de liberdade na solidez da esfera privada face ao poder político, por outro, em o “Discurso sobre a Origem e o Fundamento da Desigualdade entre os Homens”, publicado em 1755 pelo pensador suíço Rousseau, deparamos com a asserção da origem dos males da sociedade civil residir na instituição da propriedade. Esta, ao se originar do furto e instaurar a verdadeira desigualdade entre os homens, uma vez que, por natureza, estes carecem apenas de igualdade quanto à constituição física e moral, dá origem à dominação que caracteriza fortemente os tempos modernos, nos quais os detentores de portentosa riqueza “exploram” os mais economicamente pobres a partir da constituição e da celebração de um contrato verdadeiramente espúrio. Aqui, isenta a condição burguesa elementar da necessária igualdade entre as partes que acordam na criação de um contrato, a sociedade civil instaurada é ilegítima e corresponde à expansão desmedida do poder privado de alguns poucos sobre muitos e à sua falsa caracterização em um poder político que se arroga á função de normativizar de forma equivalente as relações entre indivíduos desiguais.

 A fim de apresentar uma resolução destas contradições e conferir a cada um a participação máxima nas decisões coletivas e políticas, se faz necessário a efetivação de um “contrato social”, a partir do qual a cobiça e a avareza são substituídas pela virtude. A igualdade material se torna condição sine qua non para uma liberdade efetiva, onde cada indivíduo encontra correspondência na vontade geral e na legislação que estabelece os ditames fundamentais da vida em coletividade.  Liberdades individuais, como a livre escolha do que consumir, dizer ou onde empregar suas faculdades intelectuais ou físicas são suprimidas em face de um legislador supremo e executor da mesma vontade geral. O termo liberdade despoja-se de seu significado anterior, e seu novo conteúdo nos remete à participação irrestrita de todos e cada um nas decisões cruciais do corpo político e civil. Em oposição ao que é exposto acima, portanto, a liberdade rousseauniana é possível apenas com o nivelamento coercitivo de todas as desigualdades materiais, a saber, com a supressão da propriedade e do âmbito privado de cada cidadão.

(Continuação deste Ensaio será publicada dentro dos próximos dias).

Nenhum comentário:

Postar um comentário