"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Esquerda e sua Contradição: Qual o significado da atual Crise Brasileira?


Tornou-se praticamente um hábito, diante das instabilidades que atualmente assolam nossa vida civil, levar á cabo protestos que sejam capazes de expressar a reprovação acerca das medidas tomadas pelo governo Dilma, sejam ou não estas resultado de antigas idéias já defendidas por outros membros do Partido dos Trabalhadores ou até mesmo de outras legendas.

 Nesta panacéia de manifestações muitas vezes discordantes entre si, de discursos de grande força moral e retórica e de uma infinidade de críticas ao exercício corrente do poder executivo, uma estratégia finória de cunho fortemente ideológico, originária de certos grupos da sociedade civil, emergiu de forma súbita neste debate sócio-político.

 Esta estratégia, centralizada, sobretudo, sobre um discurso em certa medida oportunista e um tanto quanto irônico, consiste na polarização do espectro político direita-esquerda através de uma “endemonização” da atual chefe do poder executivo e sua equipe econômica, na qual o governo Dilma Roussef personifica com vigor um regime político reacionário e “de direita”. Sendo, para tomar de empréstimo um conceito elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, suas bases o ressentimento e o desagrado que se origina defronte à suposta subversão de ideais máximos por parte de outro grupo alinhado aos mesmos anseios, muitos dos que lhe concedem seu consentimento e devoção findam por não enxergam a grave contradição que se encontra presente no âmago de todo este discurso.

 A fim de desvelar os termos antagônicos que compõem esta posição, bem como a sutil inversão de realidade que é efetuada por este conglomerado de grupos menores, nos valemos aqui do conteúdo já expresso em diversos ensaios deste blogue, tais como “Miopia Ideológica”, “Impeachment? Reação Conservadora?”, “As Falácias da Esquerda face à crise atual” e ambas as partes de “Por que não devemos tributar Heranças, Lucros e Grandes Fortunas?”. Antes, no entanto, cabe precisar com mais minúcia as razões que levam aos doutos acima classificar como um horrendo modelo neoliberal “de direita” o atual governo Dilma Roussef.

 Segundo sua argumentação, as atuais políticas públicas de austeridade, as quais se estendem desde o corte de gastos públicos, benefícios trabalhistas e ministérios até a redução de recursos para programas sociais como “Minha Casa, Minha Vida”, se espelham em medidas postas em prática por outros governos considerados contrários aos ideais socialistas de proteção da classe proletária, de justiça social e de combate ao lucro e ao livre mercado. Frisam que tais políticas apenas servem ao interesse de grandes instituições financeiras em detrimento das reformas sociais necessárias e que a grande população, despossuída dos meios de produção, vê-se sumariamente prejudicada.  Em adição, por fim, tomam os projetos de ajuste fiscal promulgados nestes contextos como outro – o mais digno de réprobo - instrumento de opressão das parcelas mais desprivilegiadas.

 Contra esta visão cabem alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, não há apenas um único modelo de políticas de austeridade. Com efeito, é lugar comum afirmar que aquilo que denominamos de “política de austeridade” consiste numa série de medidas ou reformas de contenção de gastos destinadas ao combate da recessão econômica advinda de causas múltiplas. A retomada do crescimento econômico, neste sentido, é quase sempre o objetivo primordial destas medidas e muitas são as ações idealizadas nestes tipos de contexto.

 Todavia, faz-se crível condensar estes modelos diversos em quatro tipos principais de austeridade: o corte de gastos públicos e a elevação de impostos; a manutenção das despesas públicas e a elevação dos tributos; a manutenção dos impostos nos níveis atuais e o corte de gastos públicos e a redução tributária acompanhada de um corte vigoroso das despesas do Estado. Em termos de recessão econômica e impactos diretos sobre a sociedade, as duas primeiras formas de austeridade conduzem ao agravamento das condições de vida do cidadão e da economia como um todo. Por um lado, o arrefecimento de parte dos gastos públicos reduz, de certa forma, as esferas de intervenção estatal na economia, porém o confisco de capital, principalmente do setor produtivo, acarreta direta e negativamente na redução dos níveis de produção e no aumento das taxas de desemprego.  Por outro, manutenção da irresponsabilidade fiscal do Estado e a elevação dos impostos conduz à estagnação e posterior declínio da economia. O capital da sociedade, responsável por seu crescimento, continua sob confisco, ao passo que os gastos públicos apenas mantêm a ineficiência estatal e os problemas de infra-estrutura que se encontram em seu seio. As atividades econômicas tornam-se cada vez mais subservientes e dependentes do Estado, o qual progressivamente tende a regular ainda mais as atividades dos indivíduos.

  Em segundo lugar, o que se deve extrair deste resumo, contudo, é a simples constatação de que, de forma análoga à inexistência de um modelo único de políticas de austeridade, estas não se restringem aos governos adeptos à aplicação dos princípios do capitalismo de propriedade privada e de livre concorrência. O que o último século nos demonstrou, particularmente nas experiências que tiveram lugar na Europa ocidental e nos Estados Unidos, é que a prática de contenção de gastos e de reavaliação dos tributos fez-se presente tanto no projeto americano New Deal – embora se deva fazer a ressalva que a economia estadunidense à época estava longe de um regime de livre concorrência -, quanto, por exemplo, na França sob a tutela do socialista Mitterand ou no Reino Unido de diretrizes sindicalistas, antecessor à era Thatcher.

 Esta observação é tanto mais importante porque nos permite compreender com maior clareza e argúcia o fato de que, em termos de modelo de austeridade, hoje, no Brasil, nos deparamos com medidas que restringem com maior rigidez a liberdade econômica e a condução das atividades privadas dos indivíduos segundo seus próprios interesses. O livre mercado, se em tempos precedentes sofreguidamente mantinha-se vivo, atualmente extinguiram-se-lhe ainda mais os âmbitos da esfera econômica nas quais sua operação pode ser observada. A intervenção estatal em nossa economia atingiu índices altíssimos, e a contenção moderada de gastos, através do corte orçamentário tímido das despesas da União, juntamente com os projetos de elevação de tributos e possível implantação de taxação progressiva de renda, correspondem, certamente, a uma visão keynesiana da economia política, cujos princípios e objetivos estão em diametral oposição à doutrina do liberalismo econômico. Um ajuste fiscal que tenha apresentado, como um de seus pilares, um projeto orçamentário para 2016 que prefigurava um déficit primário de quase R$ 30,6 bilhões de reais enaltece com justeza o valor quiçá máximo desta visão keynesiana e que compreende o discurso socialista: o Estado é o criador por excelência da riqueza econômica.     
Retornando, agora, à posição dos grupos mencionados no início do presente ensaio, resta-nos introduzir o leitor no aspecto contraditório e irônico de toda esta confusão.

 Não fosse suficiente classificar com extremo descuido as condições políticas e econômicas atuais, tendo como base uma estratégia de polarização, moral e política, de posições ideológicas, ocorre ainda que os venerandos senhores desta esquerda se esquecem dos fatores que contribuíram para o execrável estado em que nos encontramos. De fato, é indubitável que nos últimos 13 anos a política econômica nacional foi determinada e conduzida segundo os princípios de combate à pobreza e à desigualdade entre ricos e pobres. Porém, a manutenção de amplos programas sociais de distribuição de renda exige um controle maior sobre as atividades econômicas dos indivíduos, onde a redistribuição de renda, para ser efetivada segundo um planejamento prévio, demanda, por seu turno, um complexo aparato de captação de recursos via taxação e regulação de certos preços e salários. Todo este sistema burocrático acarreta à longo prazo, além da eliminação das condições de livre concorrência, na elevação de preços de bens intermediários e produtos finais, no encarecimento da produção, no crescente sucateamento de boa parte da infra-estrutura produtiva, na queda do consumo e na desaceleração progressiva do crescimento econômico. Os efeitos colaterais deste dirigismo central sobre boa parte da esfera econômica também se fizeram sentir no campo político, onde os escândalos de corrupção evidenciam a utilização de empresas estatais como instrumentos políticos e a fragilidade da sociedade civil em face da alta concentração de poder e recursos no Estado.

 A grave contradição da esquerda brasileira - sem levar em consideração, neste preciso momento, as divisões internas entre os diversos grupos que compõem a ala socialista – consiste, deste modo, em não tomar nota de que são, justamente, a busca política pela justiça social e pelo bem comum as causas para as crises instauradas em nossa República. E ainda em contrapartida ao o que advoga, a elevação de tributos e manutenção de gastos governamentais não representam, de forma alguma, uma alternativa plausível à recessão que nos toma de assalto e que dá sinais de grave piora. Somente o quarto modelo (redução drástica de tributos e despesas governamentais) apresenta uma forma de se fazer austeridade compatível a um governo liberal e “de direita” e capaz de retomar o caminho do crescimento, porquanto limite as esferas de ação do poder político e devolva a autonomia essencial ao dinamismo das atividades econômicas. Mais do que isso, ousamos afirmar que é através da implementação dos princípios da doutrina liberal que a salvaguarda da estabilidade de nossas instituições políticas, bem como dos direitos individuais responsáveis pela limitação do escopo de ação de um líder político que se pretenda tirano, se faz sólida como lhe exige uma sociedade livre.    

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Financiamento Público de Campanha: Ameaça à Liberdade


Vimos recentemente que, através de 8 votos favoráveis à proibição de doações de pessoas jurídicas a campanhas e candidatos, o Supremo Tribunal Federal tornou ilegal o financiamento privado-empresarial das campanhas políticas, restringindo, deste modo, sua operação á utilização majoritária dos recursos oriundos de cofres públicos e de pessoas físicas.

 A despeito do êxtase que tal decisão pareceu suscitar em grande parte dos grupos políticos representativos brasileiros, este veredicto não deixa de provocar, por outro lado e segundo outra visão de análise dos fatos correntes, grande preocupação quanto à solidez e valorização da liberdade dos cidadãos nesta República.

 Sem embargo, munidos principalmente da exposição apresentada em ensaio precedente, intitulado “A Função Política da Corrupção”, dedicaremos este ensaio à análise e posterior refutação dos princípios que advogam em favor do financiamento – exclusivamente ou não – público de campanhas eleitorais, conforme aventado no cenário político brasileiro. Mais notadamente, colocaremos sob análise as seguintes premissas: o financiamento público de campanhas, na medida em que restringe a ingerência privada sobre os processos de sufrágio, concorre para o funcionamento efetivo de uma democracia, assegurando a liberdade dos indivíduos e dos grupos que a compõem e a igualdade de condições entre os partidos que competem entre si para conquista do eleitorado; e a proibição das doações de empresas, grandes ou pequenas, venerandas ou de pouca monta, possibilita ao aparato estatal sua salvaguarda frente à corrupção e aos esquemas de propinas que envolvem lobistas e grandes empresários.

 Com efeito, no que concerne exclusivamente à primeira premissa, lançamos mão da ressalva segundo a qual uma República legítima, cuja finalidade consiste na liberdade de seus concidadãos, deve fundamentar-se, sobretudo, no direito “inalienável” da escolha, sem constrangimentos impostos por terceiros, do governante por parte de todos os eleitores. Em consonância aos valores e conteúdos presentes no conjunto das liberdades individuais, a partir do qual, no presente contexto brasileiro, a liberdade de pensamento, expressão e escolha constituem pedra fundamental de nossa Magna Carta, é legítima, lícito e legal que qualquer individuo, independente de suas qualidades morais e físicas possa emprestar seu livre consentimento á opinião ou posição que lhe é favorável  e resignar-lhe o empréstimo quando as posições de seu destinatário destoam dos princípios que lhe governam.

 Neste sentido, no caso de uma eventual implementação do financiamento exclusivamente público de campanhas, não se concederá ao pagador de impostos a livre escolha quanto ao destino de seus recursos. Não far-se-á possível para o cidadão escolher, dentre o quadro geral de partidos concorrentes, a qual o grupo político tem por interesse direcionar univocamente os recursos obtidos com base na tributação de suas atividades. Os impostos oriundos destas taxações apresentarão como resultado o financiamento de partidos ideologicamente contrários ao consentimento de cada cidadão e, por conseguinte, a violação da liberdade de escolha dos eleitores, uma das liberdades individuais mais essenciais a um regime que se queira livre.

 Em consonância a este argumento, acrescentamos, em menção à igualitarização das condições de disputa entre os partidos concorrentes, que medidas direcionadas à igual distribuição de recursos entre estes grupos exigem estruturas coercitivas que possam viabilizar seu isolamento defronte à iniciativa privada e conduzir suas diferentes posturas durante as disputas políticas. Estes novos aparatos não apenas demandariam ainda mais receita sobre os pagadores de impostos, como, forçosamente, nos levariam a uma deturpação das vontades dos cidadãos: consistindo o sufrágio e o debate político livre nos meios através dos quais a representação política ganha forma e legitimidade, carece de sentido e “benevolência social” o ato de distribuir de forma igual recursos oriundos de cidadãos com pensamentos e posições ideológicas distintas. Tal estratégia autoritária não faz senão, por um lado, tornar ineficiente a concorrência de partidos – o número cada vez maior de adeptos e apoiadores de um determinado grupo não se reflete no crescimento de seu poder de influência e de competividade face aos demais grupos – e, por outro, tornar publica e totalmente falsa a interpretação do eleitorado acerca das ideias propostas numa eleição.

 Para a situação onde apenas a participação de pessoas jurídicas é coibida têm-se, também, os mesmos problemas. Grandes corporações e pequenas empresas encontram animosidade ou complacência com medidas políticas e econômicas. Proibir a manifestação daquelas é semelhante a impedir que possam esforçar-se ou apoiar iniciativas que visam à criação de condições satisfatórias à sua sobrevivência. Proibir sua manifestação constitui atitude tão contrária à liberdade quanto o financiamento exclusivamente publico de campanhas.

 Já no que tange à segunda premissa apresentada, pelo fato de que a concentração de poder e recursos nos órgãos que detém em si o uso legítimo da coerção tornam mais factíveis a corrupção e a concessão espúria de privilégios, não há mais garantias de que a imparcialidade nas decisões do Estado poderá permanecer. A tomada de decisão sobre o destinos dos recursos obtidos com a tributação não refletirá o real interesse dos cidadãos, porquanto anseios excessivos pela manutenção do poder e de sua extensão possam conduzir ao desvio do montante reservado ao financiamento das eleições segundo planejamento previamente estipulado.

 De forma análoga, os mecanismos existentes destinados à fiscalização de receitas públicas ver-se-ão enfraquecidos diante do resultante aumento da burocracia e da consequente redução das esferas de dissensão dentro do próprio aparato governamental. Esquemas de propinas e conluios entre empresários e chefes políticos se tornarão cada vez mais presentes, assumindo uma dimensão destrutiva ainda mais significativa. Privilégios e monopólios serão concedidos às escuras, por vias ilegais e fraudulentas. A própria democracia verá engrandecido o risco de subverter-se em tirania.      

 Com tudo isto, estabelecemos que o financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais nos representa mais um espesso grilhão para nossa servidão política. Liberdades fundamentais, como o direito de apoiar e reprovar este ou aquele partido, terão suas dimensões reduzidas, e os momentos mais importantes de decisões políticas populares correrão sério risco de desestimular justamente o interesse político dos cidadãos. E, mesmo sob a hipótese de proibição solitária da participação de pessoas jurídicas em campanhas eleitorais, sem restrição igual do financiamento oriundo de pessoas físicas, problemas como a corrupção, em contrapartida aos resultados esperados, tenderão a manter os atuais padrões já apresentados. Esta conclusão depreende-se, em suma, da consciência de que o desvio de recursos públicos para fins não-públicos não resulta da participação da iniciativa privada em certos âmbitos governamentais. Antes, esta conclusão encontra origem na inconteste ausência de liberdade econômica e liberdade política que constituem o atual cenário sócio-econômico brasileiro. Resta, portanto, compreender que as reformas estruturais necessárias no âmbito político não nos devem conduzir a mais uma perda substancial de liberdade em nossa República. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A Função Política da Corrupção

 Tornou-se tema recente dos noticiários nacionais a apuração das investigações da operação Lava Jato, cujas descobertas, que se nos apresentam até o momento infelizmente incompletas, denunciam um amplo esquema de corrupção envolvendo a maior empresa estatal do país.

 Sem dúvida o maior escândalo de corrupção em toda nossa história, tanto no que diz respeito às dimensões do espólio, quanto às repercussões resultantes, o “Petrolão” nos traz à tona a existência de um fragoroso sistema de propinas, desvio de dinheiro público, formação de cartéis, financiamento ilícito de “caixa 2”, composto por profissionais das mais diferentes áreas.  

 A corrosão moral que parece efluir de toda esta inveterada tragédia envolvendo uma quantidade insondável de dinheiro público aumenta à medida que as investigações avançam e novos suspeitos são adicionados à lista das personalidades investigadas. É certo afirmar que boa parte de nossa crise atual, tanto econômica quanto política, encontra suas bases neste imbróglio de relações de influências política e privada. Não se faz forçoso afirmar que o rebaixamento, pela agência Standard & Poor’s, da nota brasileira em seu índice soberano de crédito decorre em parte da queda vertiginosa de prestígio da Petrobrás e da denúncia de sua gestão pública parcial e fraudulenta. O mesmo se pode dizer quanto à queda de popularidade da atual presidente em exercício e os severos problemas de governabilidade dela oriundos, para a qual se podem atribuir os mesmos fatores.

 Sendo tudo isto, indubitavelmente, digno de nota é, não obstante, sumamente importante apontar, nesta reflexão, outro fato que se sobressai à vista e direcionar a atenção do leitor para este aspecto que, em regime política algum, deve ser desprovido de suas legítimas considerações.

 Desde o início do Brasil Independente – e, talvez, até mesmo em épocas precedentes – é qualidade intrínseca de nosso corpo político a concentração de poder no aparato do Estado. Com uma das maiores cargas tributárias do mundo, construída ao longo de muitos anos, não faltam recursos ao detentor do monopólio da coerção física para a aplicação dos mais diferentes projetos e ideais. Na esteira deste processo, as liberdades individuais, que restringem necessariamente as esferas de ação do poder político e civil, apenas em tempos recentes ascenderam ao relevo das reflexões sociais em nosso meio. A repressão do poder público sobre os cidadãos, fosse o primeiro  constituído por elites cafeicultoras ou militares, esteve sempre associada à concentração de recursos e instrumentos nos órgãos de execução da lei civil.

 Ao mesmo tempo, porém, muito em virtude dos discursos populistas do século passado e da extrema regulação estatal na esfera econômica, a asserção de que empresas públicas monopolizadoras de setores estratégicos de nosso país estão à serviço, única e exclusivamente, das necessidades primordiais do “povo” desenvolveu-se até atingir um caráter fortemente indelével. Não se poderia contestar a necessidade da gestão estatal das principais empresas do país, visto que, sob esta égide, a exploração destas atividades através da busca pelo lucro apenas furtaria aos cidadãos da República o uso dos bens produzidos em seu território, além, é claro, da exploração decorrente deste último tipo de gestão. A mais simples menção à privatização de companhias geridas por vias públicas era repudiada com ardor quase ufanista.

 Entrementes, os últimos exemplos de grandes esquemas de corrupção trazidos pelo “Mensalão” e “Petrolão”, bem como por outras denúncias da utilização indevida de recursos públicos promulgadas, ainda que por vias não jurídicas, a outros governantes e partidos, colocam em dúvida a eficiência não apenas do modelo estatal de produção de um bem ou serviço em face de um concorrente privado, mas realçam, sobretudo, a larga distância existente entre as eventuais boas intenções de um plano de governo e os resultados discordantes que são obtidos. Para esta realidade concorrem múltiplos fatores: a ausência de incentivos adequados por parte da gestão pública; a estonteante quantidade de tributos que muito corrobora para a queda de produção e riqueza; a ausência de transparência nas contas do governo; a facilidade, com os recursos obtidos e com a ingerência sobre instrumentos de fiscalização, da criação de estratagemas de propinas e financiamento ilícito de campanhas; a dificuldade em estabelecer cálculos precisos de determinação de preços e salários e a exigência cada vez mais frequente de captação mais ampla de receita.

 Fora, é claro, outras tantas causas que podem ser encontradas no âmago deste fenômeno, salientamos aqui a falsidade de se atribuir, como teoria que, via de regra, fundamenta o esmorecer da moralidade política na influência pérfida de empresas privadas sobre delegações políticas, ao âmbito privado a condição de propulsor deste vilipêndio dos bens públicos. Em forte oposição à esta visão, enfatizamos, conforme reflexões anteriores presentes em ensaios como “Ineficiência e Restrição”, que a ineficiência pública – serviços caros, ruins e demorados - decorre da própria essência do Estado e a corrupção é tanto maior e mais ampla, quanto é mais abrangente a quantidade de recursos nele direcionado e a maior é a restrição à concorrência de iniciativa privada em diversos âmbitos de produção. Ainda mais, nos baseamos na expressão segundo a qual a corrupção, e outros atos de imoralidades semelhantes, tem sua origem antes no próprio indivíduo do que em instituições privadas ou públicas.

 Com tudo isto já teríamos razões para nos defrontarmos com o malogro de qualquer regime civil que não escolha prescindir dos meios necessários à consecução dos ideais de um Estado forte e regulador. A expansão dos instrumentos de poder em posse dos aparatos coercitivos estatais apenas viabiliza em grande medida a extensão do poder público sobre a sociedade civil e os cidadãos que nela residem.

 No entanto, e é esta a função que atribuímos ao presente ensaio, faz-se deveras necessário enfatizar o anseio pelo poder como um fim em si mesmo como um fenômeno que, se não decorre de um Estado inchado e regulador, encontra-se-lhe fortemente associado. Tal como é descrito na petição em prol do impeachment da presidente Dilma (http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/a-integra-do-pedido-de-impeachment-de-dilma-apoiado-pela-oposicao/), a obsessão do Partido dos Trabalhadores pela manutenção à todo custo do poder em suas mãos pôde legitimar as finalidades, quaisquer que estas possam ser, a despeito dos meios empregados para a sua conquista. O perigo já anunciado há séculos por pensadores liberais e conservadores no que tange à arbitrariedade do governo decorrente da retirada das limitações a ele impostas pelas liberdades econômica e política reflete-se na invalidez das normas legitimamente constituídas para assegurar a previsibilidade da ação governamental e individual e para salvaguardar os cidadãos de um eventual poder tirano, autoritário e excessivamente parcial e coercitivo nas decisões que venha a tomar sobre as demais esferas que constituem uma República.


 A atual crise política evidencia, acima de tudo, o hábito, recorrente em nossa história, de conceder à esfera pública a decisão última sobre grande parte das atividades que compõem seu conjunto. As tragédias que se imiscuem em seu seio, tais como a instrumentalização das empresas estatais em favor da manutenção do poder, não devem dissimular o fato de que a virtual deposição do chefe do poder executivo em exercício não produzirá seu efeito desejado caso profundas alterações estruturais em nossa forma de “fazer política” não sejam efetuadas no futuro. É interessantíssimo notar como a tomada de consciência sobre todo este fenômeno parece, pouco a pouco, ganhar força neste cenário. Mas não nos é permitido esquecer, contudo, que a alternativa mais eficaz à nossa crise de condução dos negócios públicos consiste, em última análise, na conquista de amplo espaço para o exercício das liberdades individuais.   

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A CPMF e a Repressão Política


 Dadas as presentes atribulações políticas e econômicas com as quais o cidadão comum se depara em todo o Território Nacional, não resta exagero ou excesso em indignar-se contra a manifestação recente de Joaquim Levy e Dilma Roussef a respeito da restauração da Contribuição Provisória de Movimentação Financeira – CPMF, onde os prognósticos correntes nos levem a crer, sobretudo, nos agravos que este novo velho tributo pode engendrar na situação atual.  

 À bem da verdade, no entanto, mesmo que estivéssemos em condições, senão diametralmente opostas, pelo menos muito mais favoráveis à atividade econômica, o retorno deste imposto nos suscitaria sérias dúvidas quanto aos impactos positivos que poderiam decorrer de sua ativação. Novamente, não é enfadonho recordar ao leitor o caráter improdutivo que condiz às tributações, porquanto, além de encarecer processos e preços de produtos finais, não nos engendra resultados conforme os objetivos iniciais, ou seja, não produz necessariamente os resultados com o mesmo grau de qualidade e abundância que num primeiro momento se inserem em um projeto idealizado, cujo processo de concretude consiste na finalidade da tributação imposta. 


 Isto torna-se mais claro, com particular obviedade, no contexto brasileiro, no qual a tese liberal de que a administração pública é, em geral, tanto mais ineficiente e perdulária quanto mais se elevam os recursos concentrados na maquinaria à serviço do Estado. Com uma das maiores cargas tributárias do mundo – em torno de 40% do PIB nacional -, nossos serviços públicos são flagrante exemplo de gestão ineficiente, descuido, corrupção governamental e demanda imprópria de mais recursos. 


 Em todo este contexto, e trazendo à lume episódios históricos de deflagração de grandes revoltas e lutas armadas a partir do excesso de certas espécies de impostos, onde a Revolução Americana e a Inconfidência mineira são, talvez, os exemplos mais conhecidos, trago ao crivo do leitor a reflexão presente no escopo da doutrina defendida e amada pelo criador deste blog no que tange à estreita relação entre as liberdades política e econômica.

 Com efeito, desde o intróito da tradição liberal clássica, vê-se a impossibilidade de separar ou restringir o efeito de certas ações públicas ao campo em que é praticado. Adam Smith, ao longo de sua obra, ao situar no trabalho a origem da riqueza, associa a este princípio a necessidade da divisão do trabalho, da organização privada e descentralizada da produção como medida necessária à eficiência e aos ganhos de produtividade. De modo semelhante, esta organização da atividade econômica, fundamentada, sobretudo, nas concepções do individualismo e da livre concorrência, deve necessariamente coincidir com a descentralização do poder e com a restrição das esferas de ação dos meios coercitivos colocados à disposição da esfera pública. Em contrapartida, a mera tentativa de coibir ou refrear a ação individual através do controle coercitivo sobre os métodos de produção e/ou sobre a distribuição das riquezas produzidas segundo certo padrão previamente definido exige, concomitantemente, a expansão dos poderes concentrados em vias públicas e a conseqüente redução de liberdades políticas individuais. Por conseguinte, o binômio liberdade econômica-liberdade política encontra a fundamentação de sua indissociabilidade na partilha comum de certos valores que se faz necessária ao bom funcionamento do corpo civil enquanto conjunto unitário. 


 Na teoria política de John Locke, por seu turno, o aspecto de restrição das esferas de ação legítima do corpo político adquire uma delimitação mais precisa através da proclamação dos direitos naturais e da separação dos poderes que constituem o corpo civil. Os indivíduos, livres e iguais por natureza, ao abandonarem o estado natural em que se encontram, constituem o governo civil, cuja finalidade máxima consiste na elaboração de um rígido corpo normativo e num poder coercitivo legítimo destinado à resolução de litígios envolvendo as propriedades de diferentes cidadãos. Para tanto, as funções legislativa e judiciária deste mesmo corpo são realçadas e investidas de grande importância num sistema onde os precedentes direitos naturais, em especial os direitos à vida e à liberdade, se transformam em direitos políticos assegurados pela lei civil. Neste contexto específico, a tirania é estabelecida no momento em que o representante deste governo assume funções que se reservam aos demais poderes ou influi na execução do poder coercitivo legitimado pela lei civil, onde a decisão sobre as contendas entre os cidadãos despoja-se de seu caráter de imparcialidade e concede ao órgão decisório a qualidade tirânica de conduzir aspectos da vida privada de cada cidadão, antes resguardas à esfera da soberania individual.   

  Através de obras elaboradas em séculos distintos, ambos autores, precursores do liberalismo econômico e político que em breve se expandiria com vigor acentuado por todo o Ocidente, de antemão conferem vida, portanto, a um novo sentido nas interpretações então existentes sobre a razão de estado: a indissociabilidade entre liberdade econômica e liberdade política, e a conseqüente supressão de valores tomados como democráticos quando tem lugar a supressão dos elementos constitutivos da organização liberal das atividades econômicas. Mais ainda, sem deixar de levar em consideração todas as demais contribuições – não menos importantes – liberais e conservadoras promovidas ao longo de decênios e épocas seculares, chega-se à afirmação, corroborada e sustentada pela experiência histórica, da necessidade de conceder à esfera das atividades econômicas a mais ampla independência possível, em conformidade com os princípios gerais do Direito formal, em relação ao poder político. Porque erigida sobre o princípio segundo o qual a livre concorrência é o método mais eficiente de organização das atividades econômicas ao abrir mão do uso da coerção para promover o ajuste das diferentes e múltiplas vontades humanas, a liberdade, tomada no sentido da busca, isenta de constrangimento ou coerção de terceiros, dos objetivos individuais a partir da disposição soberana dos recursos que os indivíduos possuem ao seu alcance, constitui-se no valor máximo que deve orientar as ações de qualquer corpo civil.  


   Fazendo-se menção, novamente, às insurreições políticas e sociais que possuem como forte exemplo a revolução americana e a inconfidência mineira, nota-se o forte poder deflagrador de sedição das restrições à liberdade econômica que são impostas por medidas taxativas e reguladoras. Todas as formas de tributação discriminatória que se levem a efeito com a finalidade de conduzir, conscientemente, as atividades econômicas e políticas segundo determinado fim coletivo constituem um tipo de coerção dissimulada que pode variar em seus graus de gravidade e ingerência, mas nunca em sua natureza. 


 O âmago desta reflexão consiste, doravante, na tomada de consciência sobre os riscos à comunidade civil representados pela submissão do campo das atividades voltadas à livre satisfação dos anseios humanos ao órgão que, por sua própria definição, concentra em si todo o poder coercitivo e seus instrumentos. O simples fato de que se possa conceder ao poder executivo a decisão sobre os fins a que deverão servir os resultados produzidos por cada cidadão incorre, necessariamente, na negligência em face da criação de mecanismos que restringem direitos individuais e políticos e na progressiva perda substancial da liberdade. 


  Assim, o contexto com o qual nos deparamos atualmente revela não apenas uma avassaladora regulação no campo das atividades econômicas. A altíssima carga tributária, a má utilização de recursos públicos e a utilização de empresas estatais como instrumento de poder político evidenciam, por um lado, a evasão cada vez maior dos poderes individuais de dispor livremente dos próprios recursos na consecução dos próprios planos e, por outro, a desinibida arbitrariedade das medidas propaladas pelo poder executivo nos últimos anos em prol de uma ideologia falha e atávica e como forma de assegurar, a todo custo, o controle dos meios coercitivos. A CPMF, que resulta da completa incapacidade governamental de propor e levar adiante o ajuste fiscal das próprias contas da União condiz, tragicamente, com a previsão de que, por meio de sua aplicação, o estado corrente de nossa organização político-econômica terá a degradação de sua saúde acelerada. A CPMF se nos apresenta como mais um passo a na direção insustentável da repressão estatal sobre o âmbito privado de cada um de nós e da criação de um grande despotismo político instituído sob as vestes da democracia. Se medidas efetivas no sentido de redução de tributos, descentralização da atividade econômica e drástica abstenção governamental sobre a condução dos assuntos econômicos não forem promovidas, estaremos muito próximos de uma penosa calamidade civil e política. 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

As falácias da esquerda face à crise atual


Na noite de 14/09 foi ao ar pela emissora TV Câmara mais uma sessão de debates a respeito das realidades sócio-econômicas do país. Nesta ocasião, o grande tema abordado entre os participantes consistiu nas crises política e econômica que atualmente assolam nossa sociedade, com especial ênfase sobre as novas propostas de cortes orçamentários e novos projetos de tributação.

 A despeito das possíveis diferenças ideológicas das personalidades que se fizeram presentes, entre elas um deputado do PT e outro do PSDB, um economista e uma representante do grupo INESC, Instituto de Estudos Socioeconômicos, Grazielle David, pôde-se observar que um ponto de vista específico a respeito das “funções sociais” da riqueza foi praticamente partilhado e defendido em comum por todos os argüidores mencionados.

 Sob forte influência de Grazielle David – que, de forma indubitável, soube expressar-se de forma clara e concisa -, todos os contendores aceitaram como ponto pacífico a existência de uma grave crise político-econômica originada em razão de desajustes fiscais praticados pelo atual governo, na qual se sobressai com vigor a estrutura injusta de tributação sobre a qual se arregimenta todo nosso edifício sócio-econômico. Segundo a própria explanação da representante do grupo INESC, através, principalmente, de impostos indiretos praticamente 55% da arrecadação total via tributação origina-se nas parcelas mais pobres da população e na ampla classe média brasileira, de forma que, portanto, boa parte desta carga onerosa de tributos, além de recair com peso sobre a última, parece privilegiar as camadas mais ricas de nossos estratos sociais e constituir uma das principais causas, senão da crise, pelo menos do seu agravamento observado nos últimos meses.

 Ainda conforme posição do mesmo arguidor, esta sufocante taxação sobre o consumo e sobre os grupos economicamente menos privilegiados é em grande parte responsável pelo acirramento das desigualdades entre afortunados e despossuídos e pelo aumento da pobreza geral, sendo, de igual modo, um dos principais desencadeadores das grandes crises econômicas já registradas ao longo do séculos XX e XXI. Denominada de “tributação regressiva”, o atual modelo representa, doravante, o oposto não somente do que nosso bom senso reputa como justo, mas como o ponto nevrálgico, o âmago de todas as instabilidades que conduzem a nau brasileira a seu infausto soçobro.

 A questão primordial a respeito da crise e das alternativas existentes e críveis à sua saída resume-se, deste modo, na reformulação da organização tributária, ou, como queiram os debatedores, na reforma da arquitetura de todo o sistema político-econômico. Em consonância a um projeto de taxação progressiva, alíquotas maiores e novos impostos devem necessariamente incidir sobre lucros e grandes fortunas; a injustiça correspondente à extrema desigualdade de renda que compõe o cenário global e nacional deve encontrar seu contraponto numa distribuição forçada e mais igualitária dos resultados obtidos através das atividades econômicas. Com o uso desta estratégia, o acesso a bens e serviços se tornará mais amplo e justo e o grande abismo existente entre ricos e pobres no que tange ao poder econômico se reduzirá de forma drástica. E mesmo quando questionada a respeito de medidas de solução imediatas à crise atual, Grazielle enfatizou a reforma tributária afeiçoada aos moldes proferidos como a melhor alternativa, dentre as poucas possíveis, para resolução dos impasses em curso.

 A despeito das emoções piedosas e virtuosas que tal argumentação pode suscitar no leitor ou no ouvinte, não é, de forma alguma, escusado afirmar que, ao se aplicar univocamente a razão nos campos político e econômico – tal é uma das propostas mais fundamentais da filosofia liberal – o quadro apresentado tem suas verdadeiras feições reveladas, e isto a tal ponto que indivíduo algum poderá sequer emprestar-lhe mínimo consentimento. 

 Com efeito, a tese defendida acima, a taxação progressiva de renda e capital, é, ipso facto, resultante, ainda que indiretamente, da teoria econômica de Karl Marx, tal como esta se encontra exposta em O Capital. Como já brevemente discorremos em “Por que não devemos tributar heranças, lucros e grandes fortunas? - Segunda Parte”, os detentores dos meios de produção e capital - sejam estes, empresários, proprietários de indústrias, acionistas ou indivíduos portadores de grandes fortunas – apropriam-se de parte do salário de seus operários e trabalhadores assalariados e incorrem, mediante o lucro, no enriquecimento e na expansão de seu capital, ao passo que aos últimos é reservado apenas a quantia necessária à satisfação de suas mais básicas necessidades. Com o frigir dos ovos, acompanhando os desenvolvimentos tecnológicos, observa-se, por um lado, a concentração quase absoluta da indústria e dos meios de produção em pouquíssimas mãos avaras, e o empobrecimento progressivo e irreversível das massas proletárias. Ao fim e ao cabo, através de todos estes processos, não restará senão como desfecho a uma sociedade plenamente capitalista uma crise de produção de proporções portentosas e nunca antes observadas.

 Na esteira deste raciocínio, que nos conduz a afirmar quase inexoravelmente que enquanto ricos se enriquecem cada vez mais, a pobreza recrudesce de forma tirânica no seio das grandes massas, a distribuição de renda e a tributação são vistas como recurso necessário para dirimir as injustas distribuições promovidas pela economia de mercado, e contribuir para a continuidade de um corpo político-econômico estável ao longo do tempo.

 Sem possuir por intuito neste ensaio esmiuçar os argumentos e inferências que dão forma à posição marxista e às críticas a ela antepostas e bem construídas, tarefa já executada no ensaio aqui já mencionado, limitamo-nos aqui a apresentar dois pontos fundamentais que têm por função guiar esta reflexão às suas conclusões finais.

 Primeiramente, munindo-se das teorias da determinação subjetiva dos valores econômicos e de sua conseqüente utilidade marginal decrescente; e do princípio de preferência temporal, o qual, somado ao principio anterior, contribui para a refutação completa da teoria da exploração de Marx, não há qualquer fundamento racional que torne viável afirmar ser a causa da pobreza a riqueza existente e concentrada em alguns poucos individuos. O valor econômico de determinado produto, bem como o valor de determinado salário relativo a uma determinada ocupação, resultam de sua utilidade em satisfazer um respectivo desejo e não dependem das condições objetivas que concorreram ao produto final ofertado. No que consiste à remuneração, em virtude do caráter de consumo imediato que incentiva os cidadãos à aquisição de bens e serviços já disponíveis, um determinado produto que se encontra ainda em processo de confecção apresenta um valor econômico subjetivamente inferior aos itens já produzidos. Por conseguinte, consiste em grave equívoco equalizar o valor do salário ao valor de um bem enquanto já finalizado e inserido em um sistema de compras e vendas.

 Em segundo lugar, a posição defendida por Grazielle David equivoca-se profundamente ao descurar do papel que exerce, numa sociedade capitalista, a acumulação de capital. Ao contrário da concepção negativa que se têm sobre sua função no sistema econômico e político no qual estamos inseridos, o capital e a riqueza oferecem verdadeira condição de possibilidade para a elevação do padrão de vida de cada cidadão e constituem recurso indispensável e sumamente importante para o combate à pobreza. Apenas a acumulação de capital, incentivada e estimulada em um sistema de propriedade privada dos meios de produção e da livre concorrência, foi e ainda é capaz de promover as maiores inovações tecnológicas, responsáveis pela massificação de determinado bem antes reservado ao uso de bem poucos e distintos indivíduos, que muito contribuem para a elevação da qualidade de vida de todos os cidadãos. De forma similar, o lucro e a riqueza constituem o meio pelo qual determinadas atividades expandem-se, inovam-se e geram empregos e arrecadação à maquinaria pública e ainda podem servir ao fomento de novas atividades e financiamentos públicos ou privados. Vale ressaltar, também, que o lucro e a conseqüente acumulação de capital dela proveniente em muitos casos, originam-se principalmente da eficiência com que um produtor concorre para ofertar aos indivíduos um bem ou serviço que seja capaz de lhes oferecer vantagens e conforto mais significativos do que os demais concorrentes. É a livre escolha de um comprador – seja este negro ou branco, pobre, rico ou membro da classe média, homem ou mulher - entre as diversas opções ofertadas numa economia de mercado que determina, em suma, qual ou quais dos produtores possuirá mais riqueza que os demais e condições de subsistir e ampliar suas esferas de atuação.

 Tudo isto bem assente, torna-se clara a má interpretação de Grazielle David, tanto empregada como forma de apresentar soluções factíveis para o enfrentamento da crise, quanto depreendida enquanto viés de explicação sobre as origens das crises econômicas que acometeram e ainda acometem nossas vidas. As instabilidades atuais decorrem, em grandíssima parte, do rígido controle governamental estabelecido sobre as atividades econômicas de nosso país, da ineficiência de diversos setores públicos, da corrupção incentivada e possibilitada pela alta concentração de poder nos aparatos coercitivos do Estado e dos pungentes déficits orçamentários em razão do inchado funcionalismo público e das onerosas promessas de campanhas. É fortemente concebível, com efeito, dizer que as camadas mais pobres da população e a extensa classe média consistem nas parcelas mais tributadas, cenário no qual o consumo de determinados bens e serviços por parte dos primeiros é muitas vezes altamente restringido ou mesmo extinguido. Todavia, a tributação progressiva sobre a renda e a taxação sobre lucros, heranças e fortunas tendem a agravar a atual situação financeira, visto que os custos ocasionados pelo aumento de impostos são repassados aos preços finais de muitos produtos e corroboram para uma vertiginosa queda no número de postos de trabalho e nos níveis de consumo e, conseguintemente, no encolhimento de determinados setores da economia. A solução mais viável, destarte, à atual tribulação sócio-econômica em face da qual nos deparamos corresponde antes à redução drástica da atual carga tributária, à privatização de diversas empresas estatais ineficientes, à flexibilização para a criação de empresas, ao incentivo à livre iniciativa e, principalmente, à independência da propriedade defronte a um uso “social” indefinido e, sem dúvida, tirânico. Num país com escassez de tradições liberais e conservadoras – enquanto compreendidas dentro da corrente de pensamento no qual se inserem autores como Burke e Tocqueville – enquanto não nos despojarmos de ilusões de benfeitoria ou sonhos irracionais de justiça social e dos custos em que acarretam, as crises econômicas e políticas hão de permear com freqüência nosso corpo civil.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O esfacelamento das condições de governabilidade e crescimento


 O rebaixamento da nota brasileira de crédito soberano pela instituição Standard & Poor’s, anunciada no último dia 09/09, da categoria BBB- para BB+ com fortes indicadores negativos apresenta-se em nosso atual cenário de crise econômica e política como um resultado já aguardado e previamente estipulado por alguns analistas.

  Com efeito, conforme também em exposição nossa divulgada em ensaios precedentes tais como “Impeachment? Reação Conservadora”, “Necessidadeda Reforma Público-Administrativa” e “O que as manifestações a favor de Dilmatêm a dizer”, é deveras razoável situar as causas desta “falência do Estado brasileiro” no curso dos acontecimentos retroativos ao início do atual modelo de distribuição de renda e de fomento de amplos programas sociais.

 De forma ainda mais precisa, porém, este rebaixamento encontra seu princípio de razão suficiente no esfacelamento das condições de governo e liderança política que acometeram o poder executivo nos últimos meses. A dificuldade extrema em estabelecer uma agenda orçamentária que pudesse apontar os rumos da recuperação econômica e a incapacidade de levar à cabo o ajuste fiscal necessário ao equilíbrio das contas públicas constituíram fatores determinantes para a retirada de nosso grau de investimento. Na esfera das negociações políticas e do estreitamento de alianças, o péssimo desempenho da chefe de governo em exercício, Dilma Roussef, em desenvolver diálogos conciliatórios com a base aliada e a perda ou desgaste profundo da legitimidade de sua liderança política incorreram em braço amigo para o isolamento do poder executivo em face dos outros Poderes e de outros partidos. Parece, deste modo, que nos toma de assalto a sensação de que nossa atual República encontra-se ingovernável e que nenhuma outra medida política originada e promulgada pelo Executivo terá respaldo e força suficientes para alterar o curso lastimoso em que as instituições que compõem nossa política econômica se encontram.

 A hesitação em promover a contenção de gastos e um corte mais extenso das despesas que tanto oneram os pagadores de impostos e impedem o crescimento econômico, fato este que se tornou evidente no projeto orçamentário aventado para 2016, como conseqüência necessária trouxe consigo a nefasta defesa da necessidade de recrudescimento da carga tributária como forma de equilibrar o ajuste orçamentário e acalentar, esperançosamente, o crescimento ainda que mínimo do PIB brasileiro. E ainda que tal proposta pudesse satisfazer determinado público alinhado a doutrinas favoráveis à concentração de poder na maquinaria do Estado, fica assente a reprovação geral diante de mais uma medida descabida intencionada à retomada da estabilidade geral. A recente afirmação do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, em perfeita dissonância das proposições que defendemos em “Ineficiência e Restrição”, apenas realça a gigantesca ineficiência dos serviços e da organização do setor público. Corrobora, além disso, o contrário do que advém da tributação, uma vez que impostos raramente se convertem em investimentos ou tem seus impactos concentrados unicamente no grupo populacional alvo da nova tributação. Mais impostos encarecem bens e serviços, reduzem consumo, ganhos e crescimento e acarretam, por fim, em mais desemprego, déficits e pobreza.

 Concomitantemente, assegurar através de comparações ilegítimas ou demasiado ilusórias, como se faz possível ler em alguns blogues e outros canais de comunicação, o caráter de sensatez que possa haver em promover novas tributações diretas não somente representa um profundo desprezo pela quantidade de arrecadação obtida via impostos indiretos, como também nos concede a liberdade de supor estar-lhe imbuída uma finalidade de legitimar mais uma medida autoritária cogitada pelo atual governo. E, embora a revisão, por exemplo, dos programas de aposentadoria e dos custos necessariamente a eles associados se faça necessária num cenário de reforma público-administrativa, todo um conjunto de ações de sentido semelhante deve lhe acompanhar caso se anseie um resultado efetivo na busca por mais estabilidade.

  E, se já não fosse péssimo o atual estado de coisas e sua constatação, outro grave entrave – este sem dúvida derradeiro – à continuação do Partido dos Trabalhadores começa a se agigantar no horizonte político. As possibilidades de abertura de um processo de impeachment contra a atual presidente Dilma Roussef cresceram sensivelmente em razão dos últimos acontecimentos. Petições veiculadas em redes sociais com o intuito de angariar assinaturas em prol da abertura de um processo de impeachment, bem como o anseio reforçado da oposição em promover semelhante medida colocam em destaque a sofreguidão penosa com a qual o governo petista tenta manter-se erguido.  Aqui, as antigas palavras proferidas pelo ex-presidente FHC a respeito da perda de legitimidade do governo Dilma parecem ecoar com vigor e demonstram a exatidão da análise proferida. Como dissemos em “MiopiaIdeológica”, mais do que um deboche ou provocação oportunista, a declaração de FHC constituía antes um aviso acerca do que fatalmente poderia suceder caso soluções viáveis não fossem apresentadas e uma liderança política não arrogasse a si a responsabilidade por conduzir o corpo civil. É significativo que dias atrás Dilma Roussef tenha reconhecido os erros de sua gestão e de outras precedentes, principalmente no que diz respeito ao excesso de gastos e na recusa em compreender que uma crise se configurava no seio mesmo deste planejamento, muito embora os desentendimentos entre ministros do executivo e a irresolução quanto às medidas necessárias para um ajuste fiscal eficiente tenham anulado os efeitos que tal reconhecimento possa ter produzido aos cidadãos.


 Disto tudo, salientamos o fato de que o Partido dos Trabalhadores não demonstrou ser capaz de lidar com sucesso com a crise atual. As instabilidades de semanas atrás apenas fizeram-se agravar, e as próprias instituições que dão corpo e forma à nossa democracia encontram-se mais ameaçadas. É gigantesca a dimensão cada vez maior com que liberdades econômicas e, por conseguinte, políticas dos cidadãos são restringidas em nome de um projeto de recuperação que não apresenta as mínimas condições de êxito estável e sólido no futuro. As percepções de ingovernabilidade e ilegitimidade do atual governo estão ainda maiores e tornam, evidentemente, ainda mais incertos os acontecimentos que estão por vir. Urge, desesperadamente, que reformas “radicais” sejam promovidas e que a prudência não se distancie dos espaços de decisão do corpo político. O Impeachment consiste ainda a nós no último refúgio da República, mas é agonizante como a proximidade deste contexto com o recurso à deposição tem se tornado mais estreita.    

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A Cúpula de Prefeitos: Planejamento à favor do cidadão?



 Neste último dia 09/09 teve lugar na cidade do Rio de janeiro a Cúpula Internacional de Prefeitos, evento no qual estiveram presentes prefeitos de origens geográfica e política diversas e cujo objeto de discussão concentrou-se nos desafios que grandes metrópoles hoje apresentam em termos de planejamento e gestão urbanas mais sustentáveis e igualitárias.

 Dentre as diversas posições não faltaram, é claro, partilhas de experiências e testemunhos acerca de planejamentos considerados bem sucedidos.  Por exemplo, um dos convidados, Ken Livingstone, detalhou suas estratégias tomadas enquanto prefeito de uma das maiores megalópoles do globo, as quais consistiram em pesadas taxações sobre congestionamento. Enrique Peñalosa, por seu turno, narrou de forma sucinta as formas de implementação do sistema BRT Transmilênio, destinado ao transporte diário de 2,2 milhões de pessoas por 113 km de vias exclusivas para transporte público.

 De fato, tornou-se evidente durante o debate o âmago em torno do qual giravam os diversos tipos e idéias de planejamento: o congestionamento freqüente em grandes cidades, em razão da proeminência do transporte privado e individual, e suas conseqüências insalubres. Evidenciou-se, de igual modo, a desigualdade de condições de mobilidade entre os cidadãos que compunham a cidade as diferentes formas encontradas para lidar com tal situação.

 Em dado momento, contudo, uma estranha asserção foi proferida e de cujo conteúdo o presente ensaio apresenta as reflexões por ela engendradas – cabe mencionar ao leitor a ênfase concedida exclusivamente ao aspecto da igualdade nesta discussão. Sem haver, no presente contexto, a necessidade de mencionar qual dos representantes políticos a elevou em alto e bom tom, limito-me a reproduzi-la nos seguintes termos: “A constituição brasileira assegura que todos são iguais perante e lei, e deste modo a todos os cidadãos e meios diferentes de transporte deve haver a mesma quantidade de espaço”.  

 Indubitavelmente, a sentença nos remete aquilo que se tornou a questão do equilíbrio entre as formas de deslocamento em uma grande cidade. Dizendo sem rodeios, é quase lugar-comum afirmar que os problemas da convivência entre carros, pedestres, ônibus, caminhões, motocicletas, bicicletas, entre outros, são hoje objeto da esfera política, isto é, devem ter suas resoluções planejadas e promulgadas pelos órgãos que concentram em si os poderes coercitivos legítimos. À primeira vista, é de sóbrio parecer estender a este campo automatizado as mesmas normas civis que regem, de certa forma, o comportamento dos indivíduos isoladamente. A cada um é reservado a liberdade de dispor-se em qualquer direção e a liberdade de obter, pelos meios legais, os objetivos que se possa ter em alta estima. Sob este viés, as leis de tráfego consistem em mais um elemento constitutivo do códice responsável por regulamentar a vida em comunidade.   

 Não obstante, avançando a uma análise mais aguçada, e aqui inserindo o “axioma” reproduzido acima, nota-se, com forte descontentamento, algo mais do que uma simples e inócua regulamentação com vistas à paz social entre condutores e pedestres, carros, ônibus e bicicletas. A igualdade perante a lei, tal qual todos os demais princípios que constituem o cerne do Estado Democrático de Direito, contém em si a qualidade de serem fórmulas jurídicas gerais, afeiçoadas à aplicação posterior a toda a sorte de contendas e contextos, independentemente dos seus conteúdos particulares e precisos. Estes direitos formais devem seu valor justamente ao fato de, em virtude de seu caráter geral e de sua aplicação rígida a todas as situações, conferir aos indivíduos e ao poder político a imprevisibilidade quanto às conseqüências que podem produzir para os agentes eventualmente direta e indiretamente envolvidos em dada relação; e de assegurar, portanto, a imparcialidade e a impessoalidade daquele ou daqueles que emitirão um juízo definitivo a respeito de determinado litígio.

 Esta igualdade, puramente formal, possui outro grande valor elevado, a saber, a restrição sobre a ingerência indevida do poder coercitivo sobre os cidadãos e destes sobre os demais e o impedimento à concessão de privilégios ou oportunidades discriminatórias que, ou violam o princípio da igualdade de todos perante a lei, ou desvirtuam o caráter formal deste princípio.

 E porque, em seu sentido político, a igualdade formal significa antes de tudo a criação de uma estrutura civil que faculte a todos e a cada um as possibilidades de busca de seus objetivos pessoais, definidos intima e livremente, a partir da eliminação de uma desigualdade de direito que possa conferir a alguns o poder de impedir coercitivamente o acesso de outros cidadãos a direitos ou serviços semelhantes, ela pouco ou nada compatibiliza-se com decisões políticas voltadas à condução de aspectos pertencentes à esfera privada.

 Isto resulta, sem dúvida, da afirmação inconteste de que, estando o poder em exercício submetido aos mesmos princípios, a simples tentativa de ultrapassar o caráter meramente formal do direito mediante a tomada de decisões de autoridade sobre cada caso em particular, segundo critérios que não constam em norma geral, mas que antes se condicionam ao arbítrio daquele que julga, constitui uma violenta antítese às condições que asseguram um regime arregimentado sobre amplas liberdades individuais. Afinal, se o caráter geral de uma norma assegura a imprevisibilidade dos efeitos de sua aplicação, a observância, ilimitada e desvinculada de normas formais, do legislador aos conteúdos de cada litígio lhe assegura uma previsibilidade dos efeitos de suas decisões e, portanto, lhe confere poder escolher, segundo critérios pessoais, quais as ações que, se praticadas, lhe concederão resultados mais alinhados a suas inclinações.

 Conduzindo a exposição ao lume das questões práticas, também em seu sentido político o princípio da igualdade formal não concede nenhum tipo de poder legítimo, seja qual for a forma de governo, que possa ditar ou planejar a forma como determinados indivíduos deverão empregar seus recursos ou o que deverão fazer ao longo de sua existência. Poder dispor, como qualquer outro, de minhas faculdades não concede a organização alguma o arbítrio de decidir para quais finalidades destinarei tais forças.  

 A validade deste raciocínio estende-se para todos os campos os quais os princípios do Estado de Direito compreendem como membros da vida em comunidade. Seja na economia, na organização de partidos ou no uso comum de espaços públicos, a igualdade formal não pode subsistir se associada à igualdade substancial planejada. Sendo a primeira a condição de possibilidade da desigualdade de riquezas, de objetivos, pensamentos e opiniões e de conquistas pessoais conforme mérito ou sorte, a distribuição forçosa de recursos conforme um projeto de igualitarização não somente não decorre de forma alguma do princípio da igualdade de todos perante a lei, como necessariamente opera com a supressão das liberdades individuais.

 Tal fato é ainda mais visível e indigno de reprovação no presente contexto, onde a idéia de uma distribuição “igual” de espaço para todos os meios de transporte é tanto mais descabida, quanto se passa a considerar as distintas dimensões físicas que apresentam uma bicicleta e um carro com capacidade para cinco pessoas, ou entre um pedestre e um caminhão de carga de alimentos perecíveis. A igualdade perante a lei não legisla, nem possui condições para tal, sobre a alocação dos recursos disponíveis em dada república. Apenas considera que existem tantos fins distintos quanto o número de indivíduos que compõem o corpo civil e que os resultados de seus esforços são condicionados a inúmeras variáveis, como determinação, investimento, trabalho, competência, talento ou sorte.


 Com isso não se tem por intenção afirmar que congestionamentos e redes de transporte público não devem ser também monitoradas e reguladas pelo poder público. O que, sem sombra de dúvida, se coloca em evidência neste ensaio é o forte caráter político ou ideológico que se encontra presente em um combate à “burguesia urbana” através da criação de inúmeras ciclovias em espaços historicamente utilizados por veículos automatizados das mais diferentes dimensões, sem ao menos previamente debruçar-se sobre possíveis soluções aos atuais problemas do tráfego inchado de cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro e da qualidade ruim dos serviços públicos ofertados. A criação de ciclovias e espaços semelhantes ao longo da cidade não apenas carece, neste momento, de legitimidade no que tange ao princípio formal da igualdade perante a lei, como também não é minimamente capaz de oferecer a segurança necessária aos usuários de bicicletas e aos pedestres que receberam às mãos o convite ao uso deste espaço.  O planejamento e a prática de uma reforma para construir cidades mais igualitárias é aqui, desta forma, mal feito, resultado de anseios políticos escusos e prejudicial aos próprios princípios que conferem ao cidadão a supremacia de seus direitos. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A Questão Uber


 Em um pronunciamento recente feito pela presidente em exercício, Dilma Roussef, acerca das alternativas econômicas encontradas por sua equipe em face à grave crise econômica atual, foi-lhe solicitado que apresentasse sua posição sobre o polêmico aplicativo Uber e as vigorosas discussões que seu uso tem provocado nas principais capitais brasileiras. Em resposta à asserção de que a novidade trazia contribuições e melhorias aos consumidores, a chefe de governo expôs a complexidade da situação e da divergência de opiniões que lhe decorre em razão do desemprego que o novo aplicativo pode acometer às cooperativas de taxi já estabelecidas.   

 Em adição, também estendeu seu comentário a um fato pessoal que ocorrera ainda com seu pai, em cuja oportunidade este se viu sem os meios correntes de subsistência em virtude da produção e comercialização massificadas dos automóveis.  E quando questionada a respeito da legalidade do serviço prestado pelo aplicativo, sucintamente revelou não se tratar de assunto da União a regulamentação da nova atividade.

 Sem deixar de ser digna de menção no que tange á esfera da política, a posição revelada pela presidente contém em si reflexão importante sobre as transformações sociais oriundas de avanços tecnológicos diretamente associados às atividades cultivadas no âmago de uma sociedade. A existência e oferta de um novo bem ou serviço com custos mais vantajosos e com um nível de qualidade acima dos padrões até então existentes são responsáveis, indubitavelmente, pelo desgaste que pode sobrepujar os arranjos produtivos de determinado setor e principalmente o status quo do qual determinadas empresas gozam e que se encontram receosas em perder. Mais ainda, em caso de aceitação geral do novo serviço ou da nova forma de produção do mesmo bem, a perda de empregos e o descrédito de certas funções refletem as conseqüências mais imediatas da alteração destas estruturas.

 Todavia, se todas estas mudanças decorrem, quase que exclusivamente, da aplicação em determinada atividade de processos tecnológicos mais avançados, não se faz nenhum exagero afirmar que os ganhos obtidos com a redução de custos e aumento da produtividade tornam mais acessível e de melhor qualidade um determinado bem antes restringido ao uso de parcelas específicas da população. Ocorre, com isto, uma democratização progressiva – no sentido de ampliação do acesso a um serviço não importa qual este possa ser – do consumo deste mesmo produto e, por conseguinte, um novo estímulo a outras mudanças e novas inovações que possam desafiar os novos padrões estabelecidos.

 Dentro deste contexto, deve-se enfatizar também que todas estas mudanças e inovações são possíveis apenas graças ao princípio e direito constitucional da livre iniciativa, o qual, em suma, em seu sentido mais preciso e originário tem o poder de conceder a todos os cidadãos a faculdade de livremente dispor e utilizar dos recursos que possuem á disposição segundo objetivos próprios e conforme uma demanda específica. E tal direito associa-se fortemente ao princípio constitucional da liberdade cívica, o qual, dentro dos conformes exigidos por lei, concebe, dentre outras coisas, como legítima a troca livre, entendida como o ajuste livre de vontades distintas e autônomas, entre produtores e compradores.   

  A asserção de que a complexidade da “questão Uber” decorre da ameaça que apresenta a empregos formais estabelecidos não carece de sentido, nem é estranha ao contexto no qual se insere. Porém, da mesma forma como num primeiro momento a inovação pode conduzir quase necessariamente à extinção de um ofício, é pertinente recordar que novas funções e empregos são impulsionados como meio de sustentar a continuidade da mudança. No que diz respeito, por exemplo, ao aplicativo, vale enfatizar o novo meio de sustento com que muitos cidadãos encontraram ao optarem fornecer sua mão de obra e outros recursos próprios ao novo ofício de “motorista Uber”. Diante da crise atual, onde as taxas de desemprego tendem a agravar-se, inovações como esta apresentam alternativas viáveis à ausência de trabalho.

 Por outro lado, a mesma asserção nos traz à memória os protestos e a violenta rejeição com que cooperativas de táxi apresentam ao uso do aplicativo. É notório que tal reprovação advenha do fato inconteste de que o novo serviço é mais vantajoso ao consumidor final do que os atuais padrões apresentados por cartéis e oligopólios de diversos serviços de táxi nas principais metrópoles do país e lhes represente verdadeira ameaça à sua subsistência, embora se deva conceder que o argumento de uma das partes em litígio com relação à ilegalidade do serviço Uber não é de todo desprovido de fundamento.


 O mais importante em toda este contexto é entender com sabedoria e argúcia o que se passa: as atuais legislações brasileiras sobre o transporte não estão preparadas para a inovação que representa o aplicativo, da mesma forma como inúmeras inovações no passado representavam grandes dificuldades de adaptação para as regras normativas estabelecidas pela sociedade. Novos processos tecnológicos e mudanças tendem a ser extremamente benéficas se acompanhadas com proximidade por usuários, produtores e órgãos públicos. Condenar e restringir o uso destas , seja a partir do recurso à ilegalidade, seja com o lançar mão da coerção física sobre a concorrência, é impedir de forma autoritária que um aumento gradativo de qualidade de vida se apodere do dia a dia de cada cidadão. Muito mais sensato é, valendo-se do princípio unívoco e soberano da livre iniciativa, estabelecer uma regulamentação que torne mais segura e confiável a produção de uma oferta e a proteção do consumidor defronte a possíveis equívocos por parte do produtor. Portanto, em troca de condenar peremptoriamente o aplicativo e quaisquer outras mudanças tecnológicas positivas, é necessário estabelecer, localmente e sem o recurso à União, as estruturas que possibilitem aos cidadãos comuns o uso mais racional e benéfico possível destas melhorias, sem descurar, de igual modo, do papel que estas podem desempenhar no combate à corrupção, ocasionada, no mais das vezes, pelo incentivo governamental à criação e manutenção de grandes monopólios e oligopólios.       

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Por que não devemos tributar Heranças, Lucros e grandes Fortunas? (Segunda Parte)



O Valor-trabalho e a exploração. A subjetividade do valor econômico e a teoria dos juros (preferência temporal).

 Antes caracterizada como fruto de uma abstração, o contrato social de Rousseau e suas críticas face à propriedade e à acumulação de riqueza delineiam-se como teoria científica apenas a partir da obra “O Capital”, do pensador alemão Karl Marx, lançada à público em 1867. Com o subtítulo de “Crítica da Economia Política”, este imenso escrito, a partir de uma análise até então minuciosa dos processos históricos de acumulação primitiva do capital, da formação da mercadoria e da forma como esta opera em um contexto social plenamente inserido no processo de revolução industrial, nos conduz a um escopo de argumentos, os quais, juntos, nos tencionam a crer residir na exploração da “classe” operária a constituição e condição de possibilidade do capitalismo. Mais notadamente, porquanto a mercadoria e sua lógica de operação tenham se tornado senhores de todas as esferas de nossa vida enquanto criaturas políticas, sociais, humanas e econômicas, para Marx será de crucial importância desvendar-lhes os segredos de como se formam e nos influenciam.

Desse modo, a fim de conferir coesão a sua crítica, o autor parte de dois dos principais fundamentos econômicos estabelecidos por teóricos precedentes, que podem ser resumidos nas proposições de que a fonte de toda a riqueza reside no trabalho e de que a determinação do valor econômico de determinado produto é proporcional ao tempo de trabalho socialmente necessário para sua consecução. Como agente potencialmente transformador da natureza e das matérias-primas por ela fornecidas, o homem encontra em si as forças corporal e intelectual realmente necessárias para a satisfação de suas necessidades e para a criação dos mais variados artefatos. A mercadoria, um gênero destas criações que encontra na finalidade de servir à livre troca entre produtores e consumidores a natureza que a define, por princípio se constitui de duas esferas de valor, denominadas de valor de uso e valor de troca. Enquanto a primeira serve-se da utilidade de determinado bem com vistas a determinado fim como medida de seu valor, é o valor de troca que permite conferir ao produto das forças humanas seu caráter de mercadoria. Este valor de troca de um determinado bem é resultado da soma das forças produtivas que estiveram associadas a sua produção, na qual a cristalização de trabalho precedente representada pelas ferramentas de trabalho e maquinarias utilizadas para trabalhadores para sua produção definitiva constituem a medida de seu valor econômico. Neste sentido, a troca legítima entre mercadorias ocorre no momento em que bens que necessitaram do mesmo tempo de criação são de fato trocadas. O salário do operário, portanto, necessariamente deve corresponder ao valor de cada mercadoria produzida.

Contudo, o que Marx observa – e este constitui o elemento explorador do sistema capitalista – corresponde na dissonância entre a força empregada pelo operário e o rendimento fornecido pelo proprietário dos meios de produção. A despeito das qualidades objetivas do produto colocado à disposição num amplo cenário de trocas de mercadorias, parte das rendas obtidas com sua venda, e que por mérito ou justiça pertencem aos operários que contribuíram para sua confecção, é revertida em posse do próprio capitalista, o qual, por deter sob sua tutela os meios necessários à produção deste ou de outro produto qualquer, arroga-se ao “furto” de boa parte do que é produzido pelos primeiros. 
O fenômeno do fetichismo e de sua contraparte, a reificação, que daí resulta apenas agrava a completa imoralidade e ilegitimidade do lucro que, a partir da exploração das massas, constitui a finalidade última do capitalista empreendedor. Vale ressaltar aqui a condição espúria que concebeu a possibilidade de funcionamento deste sistema: a formação de uma ampla camada de trabalhadores assalariados, antes pequenos camponeses, através da violência tornada efetiva com a expropriação de terras – os cercamentos ingleses, por exemplo – por parte de grandes e poderosas famílias e o tráfico intenso de escravos, interrompido com o fim da escravidão e a conseqüente transformação destes escravos em homens livres, porém despossuídos de qualquer capital. E qualquer que fosse a origem do operário, quase todos os meios necessários à produção em massa, entendidos como capital, tais como vultuosas reservas financeiras ou posses de terra, instrumentos de trabalho e outros tantos meios de produção, passaram a concentrar-se em poucos e gananciosos capitalistas. O valor de troca, desta forma, tornado efetivo em quase todos os âmbitos, faz do operário ele próprio uma mercadoria, que nada necessita senão da venda, mediante injusta remuneração, de sua força de trabalho ao detentor dos meios de produção.

Em resposta direta à teoria marxista da exploração, que conduz à conclusão de serem a miséria e a pobreza geral conseqüências diretas do funcionamento do capitalismo, colocamos em evidência as contribuições trazidas pelas obras “Capital e Juros” (publicada ao longo dos anos de 1884 e 1921) e “Princípios de Economia Política” (1867-1868), publicadas, respectivamente, pelos economistas Eugen Von Böhm-Bawerk e Carl Menger.

De forma a encontrar uma nova teoria a respeito da determinação do valor dos bens produzidos que pudesse conferir uma solução aos impasses ocasionados pela tese da objetividade do valor, Menger encontra, a partir de seus estudos sobre a utilidade marginal de bens e produtos, um ponto fundamental que inicia a desconstrução da teoria da exploração de Marx, qual seja, a subjetividade do valor econômico. A despeito do tempo de trabalho e dos recursos, humanos e materiais, empregados na produção de determinada mercadoria, é a forma como esta satisfaz a uma necessidade dos eventuais consumidores que constitui a medida de sua grandeza de valor. A utilidade que determinado uso de certo bem pode oferecer segundo uma finalidade específica estabelece um critério muito mais assertivo para precisar a qualidade de um produto e a eficácia de sua produção.  Estabelecendo-se seu valor em razão proporcional ao anseio humano que ardentemente lhe quer o usufruto e que, sem este consumo, não se satisfaria, Menger constrói uma explicação racional para a queda dos custos que envolvem progressivo aumento de volume de produção, atribuindo à demanda um papel fundamental no estabelecimento de preços. Desta forma, o valor de uma mercadoria tende a apresentar redução crescente conforme unidades adicionais da mesma mercadoria são apresentadas ao consumidor, pois sua utilidade decresce conforme necessidades imediatas são satisfeitas. Destarte, na determinação do valor, o fator quantidade de trabalho adquire um papel secundário em face da apreciação que o homem projeta sobre a relevância de determinado bem para a obtenção de determinado fim.

 Em virtude de tais considerações, torna-se factível asseverar também que, não obstante a idêntica quantidade de trabalho que possa existir entre duas diferentes mercadorias dispostas em um eventual processo de troca, os tipos de trabalho e esforço destinados à produção de bens variados não são correspondentes, ou seja, o trabalho pode ser considerado heterogêneo e portador de tantas distintas qualidades e esforço físico e mental quanto são os tipos de finalidade a que servem e quão distintos são os trabalhadores entre si. Entrementes, ainda que o princípio da heterogeneidade do trabalho torne desigual quantidades correspondentes de trabalho e bens de capital e inviabilize, portanto, a determinação do valor conforme este critério, cabem ainda à subjetividade da apreciação e ao conceito de preferência temporal, cuja exposição se iniciará abaixo, a crítica mais mordaz à teoria da exploração.
  
Com efeito, caberá a Böhm-Bawerk desmistificar o mito de que o lucro e o juro do capital são resultado da aquisição imoral de parte do trabalho produzido sob a forma da chamada mais-valia. Para o autor austríaco, a concepção marxista da exploração decorre, em suma, do desprezo de Marx, ainda que não intencional, do princípio da preferência temporal, segundo o qual, para grande parte dos homens e na maior parte dos contextos que envolvem escolhas entre bens presentes ou futuros, os agentes econômicos, que aqui reúnem tanto produtores, quanto consumidores, inclinam-se ás opções que lhe sejam capazes de fornecer satisfações imediatas. Por este motivo, bens ou produtos que já se apresentam confeccionados para o consumo tendem à maior estima do comprador final e, por conseguinte, a um valor econômico mais elevado, em relação a outras determinadas mercadorias que ainda se encontram em processo de produção. Isto, por um lado, reflete-se na relativa ausência de sacrifícios ou poupanças, por boa parte dos consumidores, em função de um uso futuro de algum bem e, por outro, condiciona o cálculo e a determinação dos salários de todos os trabalhadores envolvidos em qualquer parte da produção. Dado que a preferência temporal dos compradores torna mais valioso o fruto que já está consolidado, não se faz factível calcular os rendimentos do trabalhador, enquanto o processo de produção ainda não culminou numa mercadoria completa, tendo como base o valor que esta possui, no mercado, quando já disposta ao consumo. Dito de outro modo é uma reivindicação descabida exigir a comparação do salário pela produção de um bem ainda não finalizado e disposto à venda com o preço que este apresenta numa relação real de troca entre vendedores e compradores. De forma muito mais justa e racional, portanto, está contido no salário o custo resultante do fato de boa parte dos compradores não desejarem, ou desejarem menos, o consumo futuro em lugar da compra imediata.

 Fundamental é também notar, além da estreita relação entre o valor subjetivo da mercadoria, proporcional a sua utilidade marginal, e o princípio da preferência temporal no que tange à determinação de preços e salários, que, abatida a teoria da exploração, torna-se possível alcançar outra conclusão até então despercebida pelos economistas da época: a fonte da riqueza, muito mais do que no trabalho enquanto tal, reside na organização racional, isto é, decorrem do intelecto e das idéias inovadoras a riqueza da sociedade capitalista e o aumento da qualidade de vida de todos os cidadãos. A capacidade produtiva de determinada indústria e de um conjunto de operários é tanto maior, em geral, quanto mais avançados forem os meios tecnológicos de produção colocados à sua disposição. Se o trabalho constituísse, de fato, a origem da riqueza, as inovações tecnológicas e as grandes idéias responsáveis por trazer ao cidadão comum o aumento gradativo da qualidade de vida não surgiriam no seio de nossa sociedade. A pobreza e a miséria resultam mais da aplicação errônea dos fatores de produção, e do diagnóstico impreciso a respeito das origens de valor e do cálculo de preços e salários do que da expansão do capitalismo e da massificação de bens antes considerados itens de luxo.  E, neste contexto, exercem um papel extremamente benéfico e necessário para todos – desde os mais ricos produtores, até os mais despossuídos proletários – a existência do lucro e de grandes fortunas, uma vez que estas possibilitam a expansão da produção, a criação de novos empregos e fomentam atividade intelectual diretamente responsável pelas grandes inovações.

Conclusão

 Conforme a exposição que se seguiu, é notória e indubitável a posição que apresentamos. A propriedade, mesmo compreendida erroneamente apenas como a posse sobre bens ou riqueza, não é causa dos males sociais a ela consubstanciados, como a pobreza, a miséria e a violência. A organização das atividades econômicas segundo os princípios de propriedade privada e da livre concorrência dão ensejo a resultados muito mais benéficos, principalmente aos consumidores e a grande massa de trabalhadores que possa existir, do que qualquer forma de organização político-econômica baseada em projetos de distribuição equitativa de riqueza e sobre forte tributação .

 No que tange ao item das taxações sobre lucros e grandes fortunas, tema que dá origem a este ensaio, cabe ainda uma última observação. Como vimos, a poupança, seja esta constituída por sacrifícios presentes em prol de benefícios futuros ou por heranças, fomentam investimentos e aplicações nas mais diversas áreas. Os juros concedidos por bancos, por exemplo, aos detentores de heranças ou fortunas dão-se em razão do “uso”, geralmente destinado ao patrocínio de grandes construções e financiamentos, que os primeiros fazem do bem emprestado pelos segundos (novamente, o princípio da preferência temporal). Os lucros, resultantes da eficiência da produção que conquista para si parte considerável dos consumidores, encontram sentido e serventia na aplicação ao próprio negócio, destinada à expansão da capacidade produtiva e à busca por inovações que possibilitem atingir ainda de forma mais eficiente a demanda que lhe confere a razão de ser.

 Um dos maiores problemas decorridos da aplicação de impostos e taxações decore da impossibilidade de concentrar as conseqüências negativas que lhe advém apenas no setor objeto de taxação. Impor cobranças sobre fortunas, heranças e lucros faz com que estes novos custos sejam repassados ao preço de mercadorias finais ou sejam convertidos em estagnação e redução de salários, corte de vagas, aumento de taxas de desemprego, diminuição de financiamentos e aplicações em bens intermediários ou serviços e principalmente na perda de qualidade e inovação do setor produtivo. Em todos estes casos, torna-se assente que a parcela da população mais prejudicada consiste, tragicamente, no grupo de menor poder de consumo, que em quase cem por cento destes contextos, reduz drasticamente ou mesmo deixa de fazer uso de serviços e bens antes consumidos.  Por conseguinte, com queda vertiginosa no consumo, o PIB tende a acompanhá-lo na mesma proporção. 
A pobreza e a miséria, portanto, não decorrem nem da utilização privada e orientada ao lucro dos meios de produção, nem da existência de grandes fortunas ou heranças. Não há fundamentos racionais que façam crível a conexão necessária que muitos de nossa esfera política e social estabelecem entre a riqueza material de poucos e a pobreza de grande maioria.

  Por fim, comprovada a arbitrariedade em exigir dos “afortunados” a responsabilidade e o dever de recompensar a sociedade pelas mazelas sociais nela existentes, se conclui de igual modo que não há senso algum de sensatez ou justiça na ação de ameaçar a liberdade individual de fazer uso de bens, conhecimento e capital adquiridos legalmente segundo os próprios fins e vontades estabelecidos em prol de uma indefinida e vaga idéia de uma função social que a propriedade deve exercer. Conceber taxações progressivas sobre renda, heranças e lucros é, deste modo, mais uma variação dentre tantas outras pelas quais inúmeros governos incorrem na redução ilegítima das possibilidades de livre escolha e desenvolvimento pessoal de cada indivíduo. A acumulação de riqueza, longe de constituir-se em imoralidade escabrosa, é condição essencial para o combate à pobreza e para as grandes inovações que recrudescem a qualidade de vida de cada um. Fazer uso livre de qualquer propriedade – de si, de suas idéias, pensamentos, força corporal, riqueza material e liberdade – é, por isso, o ponto de partida mais fundamental para o estabelecimento de uma sociedade livre e rica, onde todos e cada um ajustam suas atividades com a dos demais sem requerer o uso da coerção e da força.