Nesta panacéia de
manifestações muitas vezes discordantes entre si, de discursos de grande força
moral e retórica e de uma infinidade de críticas ao exercício corrente do poder
executivo, uma estratégia finória de cunho fortemente ideológico, originária de
certos grupos da sociedade civil, emergiu de forma súbita neste debate
sócio-político.
Esta estratégia,
centralizada, sobretudo, sobre um discurso em certa medida oportunista e um
tanto quanto irônico, consiste na polarização do espectro político direita-esquerda
através de uma “endemonização” da atual chefe do poder executivo e sua equipe
econômica, na qual o governo Dilma Roussef personifica com vigor um regime
político reacionário e “de direita”. Sendo, para tomar de empréstimo um
conceito elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, suas bases o ressentimento e o desagrado que se
origina defronte à suposta subversão de ideais máximos por parte de outro grupo
alinhado aos mesmos anseios, muitos dos que lhe concedem seu consentimento e
devoção findam por não enxergam a grave contradição que se encontra presente no
âmago de todo este discurso.
A fim de desvelar os
termos antagônicos que compõem esta posição, bem como a sutil inversão de
realidade que é efetuada por este conglomerado de grupos menores, nos valemos
aqui do conteúdo já expresso em diversos ensaios deste blogue, tais como
“Miopia Ideológica”, “Impeachment? Reação Conservadora?”, “As Falácias da
Esquerda face à crise atual” e ambas as partes de “Por que não devemos tributar
Heranças, Lucros e Grandes Fortunas?”. Antes, no entanto, cabe precisar com
mais minúcia as razões que levam aos doutos acima classificar como um horrendo
modelo neoliberal “de direita” o atual governo Dilma Roussef.
Segundo sua
argumentação, as atuais políticas públicas de austeridade, as quais se estendem
desde o corte de gastos públicos, benefícios trabalhistas e ministérios até a
redução de recursos para programas sociais como “Minha Casa, Minha Vida”, se espelham
em medidas postas em prática por outros governos considerados contrários aos
ideais socialistas de proteção da classe proletária, de justiça social e de combate
ao lucro e ao livre mercado. Frisam que tais políticas apenas servem ao
interesse de grandes instituições financeiras em detrimento das reformas
sociais necessárias e que a grande população, despossuída dos meios de
produção, vê-se sumariamente prejudicada.
Em adição, por fim, tomam os projetos de ajuste fiscal promulgados
nestes contextos como outro – o mais digno de réprobo - instrumento de opressão
das parcelas mais desprivilegiadas.
Contra esta visão
cabem alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, não há apenas um único modelo de
políticas de austeridade. Com efeito, é lugar comum afirmar que aquilo que
denominamos de “política de austeridade” consiste numa série de medidas ou
reformas de contenção de gastos destinadas ao combate da recessão econômica advinda
de causas múltiplas. A retomada do crescimento econômico, neste sentido, é
quase sempre o objetivo primordial destas medidas e muitas são as ações idealizadas
nestes tipos de contexto.
Todavia, faz-se crível
condensar estes modelos diversos em quatro tipos principais de austeridade: o
corte de gastos públicos e a elevação de impostos; a manutenção das despesas
públicas e a elevação dos tributos; a manutenção dos impostos nos níveis atuais
e o corte de gastos públicos e a redução tributária acompanhada de um corte
vigoroso das despesas do Estado. Em termos de recessão econômica e impactos
diretos sobre a sociedade, as duas primeiras formas de austeridade conduzem ao
agravamento das condições de vida do cidadão e da economia como um todo. Por um
lado, o arrefecimento de parte dos gastos públicos reduz, de certa forma, as
esferas de intervenção estatal na economia, porém o confisco de capital,
principalmente do setor produtivo, acarreta direta e negativamente na redução
dos níveis de produção e no aumento das taxas de desemprego. Por outro, manutenção da irresponsabilidade
fiscal do Estado e a elevação dos impostos conduz à estagnação e posterior
declínio da economia. O capital da sociedade, responsável por seu crescimento,
continua sob confisco, ao passo que os gastos públicos apenas mantêm a
ineficiência estatal e os problemas de infra-estrutura que se encontram em seu
seio. As atividades econômicas tornam-se cada vez mais subservientes e
dependentes do Estado, o qual progressivamente tende a regular ainda mais as
atividades dos indivíduos.
Em segundo lugar, o que se deve extrair deste
resumo, contudo, é a simples constatação de que, de forma análoga à
inexistência de um modelo único de políticas de austeridade, estas não se
restringem aos governos adeptos à aplicação dos princípios do capitalismo de
propriedade privada e de livre concorrência. O que o último século nos
demonstrou, particularmente nas experiências que tiveram lugar na Europa
ocidental e nos Estados Unidos, é que a prática de contenção de gastos e de
reavaliação dos tributos fez-se presente tanto no projeto americano New Deal – embora se deva fazer a
ressalva que a economia estadunidense à época estava longe de um regime de
livre concorrência -, quanto, por exemplo, na França sob a tutela do socialista
Mitterand ou no Reino Unido de diretrizes sindicalistas, antecessor à era
Thatcher.
Esta observação é tanto mais importante porque nos permite
compreender com maior clareza e argúcia o fato de que, em termos de modelo de
austeridade, hoje, no Brasil, nos deparamos com medidas que restringem com
maior rigidez a liberdade econômica e a condução das atividades privadas dos
indivíduos segundo seus próprios interesses. O livre mercado, se em tempos
precedentes sofreguidamente mantinha-se vivo, atualmente extinguiram-se-lhe
ainda mais os âmbitos da esfera econômica nas quais sua operação pode ser
observada. A intervenção estatal em nossa economia atingiu índices altíssimos,
e a contenção moderada de gastos, através do corte orçamentário tímido das
despesas da União, juntamente com os projetos de elevação de tributos e possível
implantação de taxação progressiva de renda, correspondem, certamente, a uma
visão keynesiana da economia política, cujos princípios e objetivos estão em
diametral oposição à doutrina do liberalismo econômico. Um ajuste fiscal que
tenha apresentado, como um de seus pilares, um projeto orçamentário para 2016
que prefigurava um déficit primário de quase R$ 30,6 bilhões de reais enaltece
com justeza o valor quiçá máximo desta visão keynesiana e que compreende o
discurso socialista: o Estado é o criador
por excelência da riqueza econômica.
Retornando, agora, à posição dos grupos mencionados no início
do presente ensaio, resta-nos introduzir o leitor no aspecto contraditório e
irônico de toda esta confusão.
Não fosse suficiente classificar com extremo
descuido as condições políticas e econômicas atuais, tendo como base uma
estratégia de polarização, moral e política, de posições ideológicas, ocorre
ainda que os venerandos senhores desta esquerda se esquecem dos fatores que
contribuíram para o execrável estado em que nos encontramos. De fato, é
indubitável que nos últimos 13 anos a política econômica nacional foi
determinada e conduzida segundo os princípios de combate à pobreza e à
desigualdade entre ricos e pobres. Porém, a manutenção de amplos programas
sociais de distribuição de renda exige um controle maior sobre as atividades
econômicas dos indivíduos, onde a redistribuição de renda, para ser efetivada
segundo um planejamento prévio, demanda, por seu turno, um complexo aparato de
captação de recursos via taxação e regulação de certos preços e salários. Todo
este sistema burocrático acarreta à longo prazo, além da eliminação das
condições de livre concorrência, na elevação de preços de bens intermediários e
produtos finais, no encarecimento da produção, no crescente sucateamento de boa
parte da infra-estrutura produtiva, na queda do consumo e na desaceleração
progressiva do crescimento econômico. Os efeitos colaterais deste dirigismo
central sobre boa parte da esfera econômica também se fizeram sentir no campo
político, onde os escândalos de corrupção evidenciam a utilização de empresas
estatais como instrumentos políticos e a fragilidade da sociedade civil em face
da alta concentração de poder e recursos no Estado.
A grave
contradição da esquerda brasileira - sem levar em consideração, neste preciso
momento, as divisões internas entre os diversos grupos que compõem a ala
socialista – consiste, deste modo, em não tomar nota de que são, justamente, a
busca política pela justiça social e pelo bem comum as causas para as crises
instauradas em nossa República. E ainda em contrapartida ao o que advoga, a
elevação de tributos e manutenção de gastos governamentais não representam, de
forma alguma, uma alternativa plausível à recessão que nos toma de assalto e
que dá sinais de grave piora. Somente o quarto modelo (redução drástica de
tributos e despesas governamentais) apresenta uma forma de se fazer austeridade
compatível a um governo liberal e “de direita” e capaz de retomar o caminho do
crescimento, porquanto limite as esferas de ação do poder político e devolva a
autonomia essencial ao dinamismo das atividades econômicas. Mais do que isso,
ousamos afirmar que é através da implementação dos princípios da doutrina
liberal que a salvaguarda da estabilidade de nossas instituições políticas, bem
como dos direitos individuais responsáveis pela limitação do escopo de ação de
um líder político que se pretenda tirano, se faz sólida como lhe exige uma
sociedade livre.