"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Você sabe qual é a maior lição d’ A Riqueza das Nações?


 Passados mais de 240 anos da publicação de Uma Investigação acerca da Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, a principal mensagem de Smith ainda ecoa em nossos ouvidos conforme avançam no mundo a mentalidade e as políticas econômicas neomercantilistas.

 Já nas primeiras páginas de sua Magnum opus, Smith estabelece aquilo que até os dias de hoje permanece atual e correto, não havendo quem, mesmo com o uso da força, houvesse de provar o contrário: a liberdade é o fundamento da prosperidade. E esta liberdade é bem sintetizada numa tríade exemplar – a busca livre pela satisfação dos objetivos pessoais, a divisão do trabalho e a liberdade do comércio.

 Sob o impulso da atmosfera febril estabelecida com o iluminismo escocês e com a consolidação dos valores e da soberania do indivíduo e da razão, Smith, numa centelha de poucas páginas – poucas, obviamente, se considerado o total de páginas da obra – pôs-se a explicar, com a utilização dos mais diversos exemplos, as causas do desenvolvimento econômico das nações, fenômeno este resultado em suma, da divisão do trabalho:

 O maior aprimoramento das forças produtivas do trabalho, e a maior parte da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido resultados da divisão do trabalho. A diferenciação das ocupações e empregos parece haver-se efetuado em decorrência dessa vantagem. Essa diferenciação, aliás, geralmente atinge o máximo nos países que se caracterizam pelo mais alto grau da evolução, no tocante ao trabalho e aprimoramento; o que, em uma sociedade em estágio primitivo, é o trabalho de uma única pessoa, é o de várias em uma sociedade mais evoluída.  

[...] Esse grande aumento da quantidade de trabalho que, em conseqüência da divisão do trabalho, o mesmo número de pessoas é capaz de realizar, é devido a três circunstâncias distintas: em primeiro lugar, devido à maior destreza existente em cada trabalhador; em segundo, à poupança daquele tempo que, geralmente, seria costume perder ao passar de um tipo de trabalho para outro; finalmente, à invenção de um grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, possibilitando a uma única pessoa fazer o trabalho que, de outra forma, teria que ser feito por muitas[1].

 Em seguida, Smith logra demonstrar o fenômeno que por excelecência condiciona e impulsiona tal divisão e especialização do trabalho:

 Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem. Ela é a conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra[2].

E – propõe-se a responder Smith – o que realmente origina a prática da permuta, e o que faz dela tão útil e objeto de grande estima por parte das sociedades humanas? A resposta é clara e certeira:

 O homem, entretanto, tem necessidade quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. E isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer - esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos.

 Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias  necessidades, mas das vantagens que advirão para eles[3].

 Portanto, estabelece o autor já no primeira parte de sua obra quais as origens e como realmente se produz o capital e a riqueza numa economia capitalista. Por este modo, Smith é quase um revolucionário, um fundador da análise científica aplicada ao campo da ciência social econômica. Revoluciona ao dizer que a riqueza não consiste no acúmulo de metais preciosos ou de moeda, nem mesmo com a manutenção de colônias ultramarinas sob rígidas restrições e intervenção.

 Especialmente na terceira parte d’A Riqueza, Smith desfere suas críticas mais ferozes contra as doutrinas dos fisiocratas e dos mercantilistas. O desenvolvimento de uma nação não está de forma alguma associada à quantidade de capital que esta possui em seus cofres; o progresso econômico e material não decorre de uma taxação absurda da atividade comercial, das importações e das restrições sobre o comércio, com vistas exclusivas a impedir o fluxo de recursos e capitais para além das fronteiras nacionais. O Colbertismo falha ao considerar a intervenção do estado na economia condição necessária para o florescimento da riqueza. Em seu lugar, o escocês prova que a origem do desenvolvimento material está justamente na liberdade de empreender, utilizar recursos e intercambiar livremente.

 Contra Turgot e Quesnay, expoentes máximos do chamado “Governo da Natureza”, para os quais o trabalho da agricultura era o fonte máximo do valor e por isso mesmo a única atividade realmente produtiva, Smith demonstrou a necessidade da aplicação do capital no desenvolvimento da indústria moderna para o avanço das condições materiais de vida de toda uma população. Demonstrou os impactos positivos da atividade industrial e do desenvolvimento das modernas máquinas aplicadas às largas cadeias de produção. Ironicamente, inclusive, deve-se aos fisiocratas a origem e o uso do termo laissez-faire, que consideravam como positiva a coordenação da atividade de extração dos recursos naturais segundo os interesses dos próprios indivíduos. É interessante notar como esta expressão em nenhum momento aparece ao longo d’A Riqueza.

 Salta à vista, doravante, como temos assistido a um renascimento – se é que alguma vez tenha deixado de existir – das malogradas tentativas protecionistas de geração de riqueza e progresso a partir da intervenção do poder público na atividade econômica dos agentes envolvidos no processo de produção. No Brasil, é evidente a falência empírica deste modelo, ancorado sobre forte nacionalismo e discurso ideológico comovente. Nos EUA, as previsões de um empobrecimento geral parecem ser acertadas com as novas medidas anunciadas pelo presidente recém-eleito Donald Trump.

 No mesmo ano da proclamação da independência norte-americana, o filósofo escocês Adam Smith condensava numa extensa obra os pontos fundamentais para a prosperidade e o combate à pobreza. É triste perceber, no entanto, como a liberdade parece ser o valor mais combatido e odiado pelas elites políticas e pelo establishment de diversas nações. God bless us all.



[1] https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/69198/mod_resource/content/3/CHY%20A%20Riqueza%20das%20Na%C3%A7%C3%B5es.pdf
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.

sábado, 28 de janeiro de 2017

O Sul é o Meu País – Nova Diáspora?


 Recentemente, o Movimento Sul é o Meu País, ao atrair os holofotes da mídia nacional, foi alvo de comentários e críticas – no mais das vezes esparsos – que o resumiam a um tipo novo de fascismo, como se a luta dissidente por um governo autônomo e de identidade própria constituísse uma tentativa de submeter todos os cidadãos á lei ou a um direito de uma coletividade específica.

 A meu ver, além de equivocada e rasa, a crítica parece não levar em consideração um detalhe político importante nessa tentativa de autodeterminação. Para ilustrar melhor este ponto, observe abaixo trechos importantes do Manifesto de Outubro, documento fundador do Movimento Integralista brasileiro, considerado o maior expoente do fascismo no Brasil:

 A Nação Brasileira deve ser organizada, una, indivisível, forte, poderosa, rica, próspera e feliz. Para isso precisamos de que todos os brasileiros estejam unidos. Mas o Brasil não pode realizar a união intima e perfeita de seus filhos, enquanto existirem Estados dentro do Estado, partidos políticos fracionando a Nação, classes lutando contra classes, indivíduos isolados, exercendo a ação pessoal nas decisões do governo; enfim todo e qualquer processo de divisão do povo brasileiro.

 [...] Uma Nação, para progredir em paz, para ver frutificar seus esforços, para lograr prestígio no Interior e no Exterior, precisa ter uma perfeita consciência do Princípio de Autoridade [...]Precisamos de hierarquia, de disciplina, sem o que só haverá desordem. Um governo que saia da livre vontade de todas as classes é representativo da Pátria: como tal deve ser auxiliado, respeitado, estimado e prestigiado. Nele deve repousar a confiança do povo[1].

Agora leia esta importante passagem do manifesto do Movimento o Sul é o Meu País:

 O “Movimento O Sul é Meu País” é uma instituição criada com a finalidade de elaborar estudos e organizar debates livres para avaliar as possibilidades pacíficas e democráticas de autodeterminação do povo sulino, que habita os territórios dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul através da forma plebiscitaria.

 [O Movimento] Respalda-se na regra do milenar do Direito Natural de que os povos têm direito a sua autodeterminação, desde que a população emancipada expresse democraticamente sua vontade soberana. A Resolução 1514 (XV) da ONU é muito clara neste sentido quando diz que “Todos os povos têm o direito à livre determinação; em virtude deste direito, determinam livremente o seu estatuto político e orientam livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Regra considerada “divina”, existente desde os primórdios das democracias exercidas nas cidades/estados gregas e no antigo Senado Romano, onde afirmava-se que o direito à autodeterminação é uma lei natural, que não precisa ser escrita, e depois pelas modernas e crescentes doutrinas sociológicas, este princípio é acatado por todas as nações democráticas do Planeta, entre elas o Brasil, através do art. 4o. de sua Constituição. Países como os Estados Unidos, a Inglaterra e outros que possuem uma constituição com pouco mais de vinte artigos, reconhecem expressamente e dedicam capítulo especial a este preceito do direito natural. A ONU adotou o direito à autodeterminação como princípio basilar, de onde deriva e sustenta-se sua existência.

  Como podemos observar, o princípio da autonomia, da possibilidade de viver conforme as próprias leis é o fator norteador do separacionismo sulista e, como tal, está em oposição direta à principal narrativa do fascismo: a submissão geral, irrestrita e violenta ao Estado; a identificação absoluta do Estado com um povo, através de uma espécie de osmose no qual os dois pólos, sociedade civil e Estado, unem-se num único corpo.

 A busca por uma descentralização do poder é extremamente desejável e necessária com o objetivo maior de liberdade e autonomia, individual, civil e política. Tampouco o separacionismo sulista deve ser confundido com o multiculturalismo que tende a elevar a uma categoria superior a do cidadão um determinado grupo mais ou menos coeso, caracterizado por uma unidade comum a todos – como, por exemplo, a elevação do grupo “indígena” ou “afro-descendente” à categoria de um grupo, com uma ancestralidade e partilha comum de valores, que como tal deve ser reconhecida e possuir direitos diferentes e específicos não estendidos aos demais cidadãos da República, e por isso mesmo definíveis como privilégios.


 No contrato político que fundamenta um estado, um corpo político, a noção de cidadania, e da igualdade de todos perante a lei, cada um contando com direitos e deveres iguais, é colocada acima de diferenças potencialmente coletivas, a exigência de direitos coletivos a um determinado grupo fere com vigor este princípio republicano por excelência. A principal diferença, no entanto, entre tais coletividades mencionadas e o separacionismo sulista dá-se pela ausência, no segundo, de uma pretensão de elevar a uma categoria distinta – e, portanto, diferenciada e com direitos diferenciados e exclusivos -  na política nacional, o “povo” sul-brasileiro.  

 Com efeito, é possível encontrar no manifesto o Sul é Meu País uma forte reivindicação histórica do direito de autodeterminação do povo sul-brasileiro. Numa seção intitulada exatamente “Declaração de Direitos do Povo Sul Brasileiro”, lemos logo nos primeiros artigos:

Artigo I: Apesar de constar diferente nas carteiras de identidade impressas em Brasília, todo cidadão livre da União Sul-Brasileira se esforçará em declarar a sua condição de SUL-BRASILEIRO nos atos em que a informação de nacionalidade for exigida;

Artigo II: O POVO SUL-BRASILEIRO reconhece que todos os Povos e Nações do Brasil e do Mundo têm direito às prerrogativas de nacionalidade própria e, por conseqüência, à autodeterminação, e que a igualdade de direitos no contexto universal e o recíproco respeito aos direitos da nacionalidade deverão ser uma constante nos homens e mulheres livres de todos os povos;

Artigo III: O POVO SUL-BRASILEIRO exige seus direitos de nacionalidade e autodeterminação, invocando o direito internacional que lhe dá suporte, o direito das gentes, os direitos subjetivos públicos e o direito natural[2];

 Nos termos de Benedict Anderson, a nação é uma “comunidade imaginada”. Não há, frente aos poderes de Brasilia, a reivindicação para se ceder um tratamento diferenciado ao “povo” sul brasileiro. A ideia de um separacionismo é por si só diferente deste tipo de reivindicação. Há, porém, a necessidade de se fazer a seguinte questão: no que consiste este povo sul brasileiro? Em que ele difere do povo paulista, do nordestino, do paraense ou do capixaba? No quê exatamente os habitantes do sul do país diferem daqueles mais ao norte, ou ao extremo leste ou centro-oeste? É certo que um conjunto de costumes cristalizado no sul é totalmente distinto daquele cristalizado no nordeste. Mas em que medida, podemos dizer que há um povo, que todos aqueles que residem no sul identificam-se numa categoria identitaria conhecida como povo sul-brasileiro?

 A ideia de povo sul-brasileiro é claramente uma narrativa engenhosa, uma invenção que se escora sobre a Revolução Rio-Grandense e suas tradições que tiveram continuidade através de muitas gerações. A tentativa de se restaurar uma república Rio-Grandense conforme os valores e princípios da famosa Revolução Farroupilha esconde algo, que, para mim, soa perigoso: um tipo diferente de nacionalismo, de reivindicação de uma ancestralidade do povo sul-brasileiro que por si só deve conduzir a uma legitimidade pela separação.
Deixo claro aqui meu ponto: sou a favor da secessão. Acredito que regimes menores são mais coesos, possuem uma ordem pública muito mais enxuta e por isso mesmo muito mais fácil de ser vigiada por seus cidadãos. As liberdades individuais tendem a ser aí protegidas e estendidas a graus elevados e que por si só causam inveja ao cidadão brasileiro, não apenas de hoje, mas praticamente de toda a história brasileira desde sua época colonial.

 A minha crítica que, repito, não faz com que me coloque contra o Movimento Sul é o Meu País, resume-se no fato de que o direito à secessão, em caso de um futuro promissor e de consolidação de um novo estado sulista independente, possa transformar-se num credo legitimador de diferenciações internas entre os sulistas e os não sulistas, concedendo aos primeiros um estatuo diferenciado em relação aos segundos.

 Sinceramente, acho difícil que este tipo de comportamento que pode conduzir a segregações venha a ocorrer, se confirmada a secessão. No entanto, a necessidade de vigilância é clara. Povos e nações são construções ideológicas, muito mais do que realidades dadas e tangíveis. Muito mais do que formar grupos de identidade, os indivíduos devem ser considerados como universos em si mesmos, independentemente de rótulos coletivos que os diferenciem, desta feita, de outras coletividades. Mas ainda assim, fica o debate, que considero tão saudável e necessário quanto o tema da separação: um federalismo extremamente descentralizado não seria preferível a fim de evitar o nascimento de uma nova narrativa que coloque como ponto nevrálgico o conflito entre “povos” e “nações”? Ou que possa levantar um conflito de caráter diaspórico, de reivindicações conflitantes de oriundas de “povos” e “nações” distintos. A principal preocupação quanto ao Movimento O Sul é o Meu País é o fato de que a bandeira da autonomia não seja feita em prol da liberdade ou da autonomia propriamente ditos, mas em nome de um suposto povo sul brasileiro. É este o verdadeiro debate.   



[1] http://www.integralismo.org.br/?cont=825&ox=2
[2] http://www.sullivre.org/declaracao-de-direitos-do-povo-sul-brasileiro/

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Pare de acreditar que a Crise no Brasil é Culpa do Capitalismo


 Em texto publicado no Correio de Uberlândia[1], em 18 de maio do último ano, o Procurador Geral do município de Uberlândia, Adir Claudio Campos, elaborou uma crítica “marxista”, bem velha e frágil, à teoria econômica liberal. No recente contexto de Impeachment da ex-presidente Dilma, Adir atribuiu a crise econômica ao sistema capitalista, dizendo que esta seria muito mais um produto do processo de produção e distribuição do capital do que da má administração o Estado.

 O cerne de sua argumentação – ponto batido na história das ideias econômicas, sobretudo para aqueles que já deixaram utopias e seus desterros para trás – gira em torno da suposta contradição do sistema capitalista: a dissociação entre trabalho e valor, isto é, o aumento exponencial do fator tecnológico em detrimento da queda vertiginosa do trabalho humano e de sua respectiva remuneração.

 Segundo a teoria em que se arvora, o trabalho é a fonte primordial da criação de riqueza e de valor. Os fatores objetivos, tais como o tempo despendido na produção de uma mercadoria ou serviço, condicionam o valor final de qualquer produto. Em suma, a valoração das mercadorias dá-se objetivamente, sendo o tempo de trabalho contido em cada produto a medida de valor mais justa no processo de troca de mercadorias.

 Ocorre que esta teoria do valor objetivo já havia sido refutada muito antes da morte de Karl Marx e apenas quatro anos após à publicação de “O Capital”. Em 1871, Carl Menger, tido como fundador da Escola Austríaca de Economia e um dos precursores da Revolução Marginalista, fundamentou uma profunda alteração na concepção do valor. Desta feita, partindo da premissa de que a ciência econômica escora-se, sobretudo, no protagonismo do homem em todos os processos e eventos sociais[2], estabeleceu Menger uma análise do valor pautada sobre o subjetivismo dos agentes econômicos.

 Conforme contido na sua obra Principios de Economia Política[3], a valoração de cada mercadoria é feita de forma subjetiva por cada agente, de acordo com a sua utilidade, sua capacidade de satisfação das necessidades de cada comprador. A quantidade de trabalho aplicada deixa de ser – embora jamais tenha sido - a medida de valor numa relação de troca; o valor de cada mercadoria é agora definido conforme escalas de valores individuais de cada individuo, imbricadas numa complexa rede de informações. De forma análoga, o valor de cada mercadoria decresce à medida que estas necessidades são satisfeitas (utilidade marginal).

 Esta nova constatação é tão importante e parece estar acima de qualquer dúvida metodológica, quanto é corroborada pelos dados empíricos. E nisto, para além da mera discussão teórica, serve como prova para refutar a suposta “contradição inerente” do sistema capitalista e pôr abaixo toda a explicação do senhor procurador de Uberlândia. Seguindo os passos do autor, a alienação do trabalho, produto do avanço tecnológico que passa a substituir o trabalho humano, daria resultado a graves problemas, como o desemprego, a queda dos salários, ao aumento da desigualdade e da pobreza. No entanto, é claramente o contrário o que se observa no mundo real.

 Em primeiro lugar, é justamente nos países com altos índices de industrialização onde se localizam as maiores rendas médias anuais e os maiores índices de poder de paridade de compra (PPP). Por exemplo, numa lista realizada pela OCDE que contabiliza os 27 maiores salários mínimos[4], países como Reino Unido, Austrália, Estados Unidos, Japão, Luxemburgo e Bélgica figuram no topo da lista, com rendas anuais por habitante superiores a R$ 50 mil reais. Curiosamente, o Brasil nem mesmo aparece na lista.


 Segundo o relatório da OCDE[5], o principal fator que determina e tem determinado, em geral, o aumento e a valorização salarial nestas nações têm sido o aumento progressivo da produtividade média de cada cidadão. Para este aumento influem, principalmente, a qualidade da formação da mão de obra, a infra-estrutura e, principalmente, o uso e a implementação de tecnologias avançadas. Há claramente uma relação de causa e efeito entre o desenvolvimento tecnológico e o aumento da renda e da qualidade de vida de uma nação, de forma que estes últimos se elevam à medida que métodos de produção novos e mais eficiente surgem e se consolidam. Neste sentido, na lista de competividade por países, em cuja métrica o fator produtividade é decisivo[6], as nações de ampla utilização de maquinário – ou capital fixo para utilizar os termos de Adir Campos – possuem alta produtividade: Suíça, Cingapura, Austrália, EUA, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Coréia do Sul, Japão – justamente as nações que figuram entre aquelas com os maiores índices de qualidade de vida.

 A realidade empírica é ainda mais estridente quando consideramos o quesito desenvolvimento econômico. Nos termos de Bresser-Pereira: “O desenvolvimento econômico de um país ou estados-nação é o processo de acumulação de capital e incorporação de progresso técnico ao trabalho e ao capital que leva ao aumento da produtividade, dos salários, e do padrão médio de vida da população.[7]” Não à toa faz-se possível constatar que, dentre os 30 países mais desenvolvidos do mundo segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2015[8], tais como EUA, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Suíça e até mesmo Chile, a alta acumulação de capital e desenvolvimento tecnológico é um ponto partilhado, com leves variações, entre todos eles.

 Se analisarmos de uma perspectiva histórica, as constatações são de sentido idêntico. O capitalismo tem logrado alçar da pobreza extrema e lançar a patamares maiores de riqueza contingentes cada vez maiores de pessoas, povos e nações. Como o diz Rodrigo da Silva:

 O número de pessoas vivendo na mais absoluta pobreza vem caindo consideravelmente no mundo desde a Revolução Industrial. De fato, se os ricos ficaram mais ricos desde o início do capitalismo, os pobres também vem melhorando suas posições como nunca antes havia sido possível.

 Os etíopes vivem hoje, em média, 24 anos a mais do que em 1960. Os chilenos já são mais ricos do que qualquer nação do mundo desenvolvido na década de cinquenta. A mortalidade infantil é menor hoje no Nepal do que na Espanha em 1960. Há 35 anos, 84% dos chineses vivia abaixo da linha da pobreza – esse número caiu para 6%, como reflexo da abertura econômica iniciada com a subida de Deng Xiaoping ao poder. Desde 1990, aliás, o percentual da população mundial vivendo na extrema pobreza caiu mais da metade – para menos de 18%.

 Atualmente, os sul coreanos vivem, em média, 26 anos a mais e ganham 15 vezes mais por ano do que em 1955 (ganham 15 vezes mais também que os norte coreanos, mas essa é outra história). Os mexicanos vivem agora, em média, mais do que os britânicos viviam em 1955. Em Botswana a população ganha, em média, mais do que os finlandeses ganhavam em 1955 (em 1966, cada cidadão botsuano ganhava em média 70 dólares por ano; o país tinha míseros doze quilômetros de estradas pavimentadas e vinte e dois habitantes com diploma universitário). Em duas décadas, a proporção de vietnamitas vivendo com menos de dois dólares por dia caiu de 90% para 30%[9].

 Novamente, nos termos de Bresser-Pereira, as causas desta esplendorosa mudança consistem na própria ação do capital: “O desenvolvimento econômico supõe uma sociedade capitalista organizada na forma de um estado-nação onde há empresários e trabalhadores, lucros e salários, acumulação de capital e progresso técnico.”

 E, se analisarmos especificamente o contexto brasileiro, a realidade empírica esboroa sem piedade o raciocínio do autor. Segundo a Universidade da Pensilvânia, a produtividade média do trabalhador brasileiro, fator fundamental para o crescimento econômico sustentado, não apenas não cresceu nos últimos 30 anos, como apresentou uma queda de 15% entre 1980 e 2008. Apesar de um ligeiro crescimento em 2010, resultado de múltiplos fatores como a redução da população economicamente ativa, esta produtividade estagnou-se desde então[10]. Por outro claro, é claro o sucateamento do setor industrial brasileiro, principalmente o setor automobilístico e de transformação. O forte protecionismo às importações, que fez do Brasil o país mais economicamente fechado do mundo nos últimos anos, fez com que a indústria nacional perdesse drástica competividade internacional, tornando-se cada vez mais ausente da cadeia global de produção. Os impactos destas políticas tornaram-se claras em 2014, justamente no momento em que o desemprego atingiu seu menor nível desde o início de sua medição histórica. À época, segundo o Ministério do Trabalho, dos 9,4 milhões de empregos criados entre 2007 e 2013, metade consistiu em funções de baixa qualificação (o cargo de servente de obras, por exemplo, ocupou a primeira colocação, com 921 mil postos criados).

 Portanto, é evidente que não há nada que nos leve a afirmar que a “baixa reprodução” do capital, produzida por um incremento exponencial dos meios tecnológicos de produção, foi a causa da crise que atravessamos agora. A narrativa de Adir Claudio elabora é dissonante em relação à realidade. Juntando os dados empíricos e sua tese, a economia brasileira jamais deveria ter entrado numa crise tão profunda e duradoura- muito pelo contrário, deveria ter prosperado em harmonia social e igualdade. Sua tentativa de abonar os erros cometidos com as políticas econômicas do último governo fracassa miseravelmente. Adir não conseguiu entender que as transações comerciais e preços de mercado constituem a forma como trabalhadores, empreendedores e capitalistas explicitam suas perspectivas e preferências subjetivas de valor. Pior ainda, Adir não compreendeu que o valor dos insumos (incluindo a mão-de-obra) é determinado pelo valor dos bens e serviços para os quais incorrem na produção. Não compreendeu que, quanto mais produtivos e amparados em alta tecnologia, maior a qualidade de vida que passamos a ter. E não compreendeu que a liberdade é, em suma, o fundamento mor do desenvolvimento e da prosperidade.



[1] http://www.correiodeuberlandia.com.br/colunas/pontodevista/falacia-dos-liberais/
[2] https://sites.google.com/a/causaliberal.net/www/home/livros/escola-austriaca-mercado-e-criatividade-empresarial-por-jesus-huerta-de-soto
[3] http://www.hacer.org/pdf/Menger00.pdf
[4] http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Resultados/noticia/2015/05/os-paises-que-pagam-os-melhores-salarios-minimos-do-mundo.html
[5] http://www.oecd.org/social/Focus-on-Minimum-Wages-after-the-crisis-2015.pdf
[6] http://reports.weforum.org/global-competitiveness-report-2015-2016/press-releases/
[7] http://www.bresserpereira.org.br/Papers/2007/07.22.CrescimentoDesenvolvimento.Junho19.2008.pdf
[8] http://report.hdr.undp.org/
[9] http://spotniks.com/5-ideias-de-esquerda-que-jamais-fizeram-o-menor-sentido-mas-voce-sempre-acreditou/
[10] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,produtividade-brasileira-esta-parada-ha-30-anos,89305e

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Carta ao Amigo - Por que não vivemos num regime Fascista


 Escrevo este texto em resposta a um colega que me inspirou a esta reflexão, através de um texto no qual classifica toda a nossa ordem pública (“fascismo dominando o Brasil”) como fascista, questionando-me inclusive a ligar os pontos de forma a compreender como este fenômeno complexo do fascismo tem sido responsável por todas as barbaridades e desmandos que frequentemente tem ocorrido. Minha tese fundamental não consiste em dizer que sejamos incapazes de ligar estes pontos, ou de que nossas capacidades dedutivas estejam afetadas de algum modo. Minha tese fundamental, consiste antes, em dizer que não vivemos sob um regime fascista, fato este que não coloca por terra, evidentemente, a asserção de que nossas instituições políticas constituem um simulacro de democracia pernicioso e desfavorável à ascensão social daqueles que mais necessitam dela.

Instituições Brasileiras

 O uso do termo “fascismo” no Brasil tornou-se tão corriqueiro que – assim como o termo “neoliberalismo” – quase ninguém parece ser capaz de explica-lo, entende-lo, nem dizer qual sua origem ou sua natureza.

 Com efeito, nosso Estado é autoritário. Isto é um fator histórico, resultado de transformações e legados histórico-políticos consolidados através do tempo. Nossa gente sempre foi maltratada, esquecida, enterrada sob os detritos de construções malfadadas, projetadas por caudilhos, lideres populistas, elites escravocratas e cafeicultoras, desenvolvimentistas e protecionistas. E isto tanto à direita, quanto à esquerda.

 No entanto, não são acontecimentos isolados que configuram um regime fascista. Este é composto para uma grande variedade de fatores que, em conjunção, produzem um regime pessoal, autoritário, violento, populista, demagógico, protecionista. O primeiro fator a ser notado aqui é a nossa configuração política: quantos membros da oposição desaparecem, ou foram censurados, ou tiveram seus direitos políticos e civis violados? Quantos partidos foram forçosamente fechados ou tiveram suas cartas-programa censuradas? Até onde sabemos, a oposição ainda é extremamente forte no Congresso. Ainda influenciam grupos e coligações, estudantes e meios de comunicação. Quantos candidatos do PT foram impedidos de concorrer a cargos municipais legislativos e executivos nas últimas eleições simplesmente pelo fato de pertencerem a estes grupos? Ou irá argumentar que a derrota massiva de partidos de esquerda, que a decepção, o desencanto de tantos eleitores com os resultados de uma política econômica desastrosa, levada a cabo por uma presidente medíocre, ordinária, não se manifestou livremente através do voto, da vontade, da liberdade de escolha de que gozam nossos compatriotas? A derrota política acachapante, a liberdade de escolher outros tipos de candidatos é fascismo? A própria esquerda conseguiu se afundar num lamaçal profundo, deixando como filhos bastardos um político putrefato como Michel Temer e um facínora como Alexandre de Moraes e a responsabilidade sobre isto deve recair sobre os ombros de uma nova ordem conservadora? De onde ela veio, quem a alimentou? A estas questões urge responder antes de qualquer análise sobre as nossas formas de governo

   O segundo ponto – a liberdade de expressão, direito sagrado, inalienável de uma sociedade livre, que decorre em última instância do caráter indelével e íntegro da individualidade, onde teve sua expressão podada, violada, forçosamente velada? Quais meios de comunicação, jornais, jornalistas, autores, blogueiros (como eu), youtubers, artistas, tiveram suas vozes censuradas?

 Utilizemos como exemplo o próprio Guilherme Boulos. Colunista da Folha de São Paulo desde 2014, nunca teve uma só palavra censurada. Fez discursos de ódio, fomentou invasões e manifestações que claramente feriam o direito de ir e vir, coordenou pessoalmente a invasão a um dos principais terrenos da Volkswagen, sem abrir-se em momento algum à possibilidade de diálogo e sem reconhecer o quão temeroso (para utilizar um eufemismo) constituía agir desse modo. Desde 2015, participa de um programa de debates da plataforma UOL, sem nunca ter ocorrido um único episódio de censura. Agora lhe pergunto: a mídia o está perseguindo?
No mesmo dia de sua prisão, a rede Globo produziu uma reportagem especial sobre a mesma. Por incrível que pareça, o texto parecia ter sido elaborado por um membro do próprio MTST. Neste vídeo, podemos ver que se a emissora foi parcial neste caso, não o foi em sentido oposto ao de Guilherme Boulos[1].

 E o que dizer das acusações do Ministério Público a respeito das ligações entre MTST e o PCC[2]? Ou do enriquecimento ilícito dos lideres da cúpula do mesmo, que inflamam massas para invasões enquanto desembolsam um dinheiro graúdo sem explicações compreensíveis, possuem casarões, mansões, sobrados, apartamentos, patrimônio considerável[3]? Ou do fato de que os movimentos sociais no Brasil, especialmente em São Paulo, servem de fechada para instituições criminosas?

 O terceiro ponto refere-se aos direitos individuais e coletivos. Ainda que me prove o contrário, não vi em lugar algum no Brasil a revogação do Habeas Corpus, do direito de ir e vir (salvo por alguns grupos que se acham superiores à lei e no dever de praticar a justiça com as próprias mãos), de se manifestar, de possuir sua propriedade, seu patrimônio, de ver preservadas sua integridade moral, física e pessoal. Recentemente, a discussão foi acalorada a respeito da “PEC do Teto” e da possível retirada de direitos que ela feria. Grande bobagem! Se há terrorismo no Brasil, este foi um claro exemplo. Uma medida fiscal que congela os gastos não financeiros da união, não afetando seus repasses futuros aos Estados e Municípios nas esferas da saúde e da educação. É tão assustadora a ideia de que teremos de viver dentro de nossas próprias possibilidades financeiras? O que há de tão tenebroso nisso? Qual artigo da Constituição será violado pela PEC 241/55? Em verdade, se se queremos preservar estes direitos tão duramente conquistados, às custas de sangue e vidas, a PEC é necessária, é a garantia de que as gerações futuras poderão gozar dos mesmos direitos (quiçá ainda mais sólidos) que hoje possuímos. Ou se esquece de que as tão alardeadas conquistas sociais dos últimos 14 anos foram produzidas pela estabilidade da moeda, pelo cumprimento das metas de inflação, pelo conservadorismo fiscal, pelos superávits primários das duas eras Lula (sim, das duas eras Lula, e quem diria, um crítico tão ferrenho dos banqueiros, que se dispôs a economizar para arcar com juros e moratórias da dívida pública?)?


 Aliás, vivemos com o último governo o fim do Brasil. O projeto de governo elaborado nada tinha de bom, de prudente, de sensato, de promovedor das causas sociais. Pôs em risco alarmante estas conquistas, ao legar às nossas próximas gerações a carestia que advém ao período da gastança e a nós, que hoje vivemos, o remédio amargo de tentar reverter a espiral do fracasso lulopetista.

 É irresistível rechaçar este projeto “Brasil” de nossa presidente, cujo nome me causa um fartum engulhoso inclassificável. O uso eleitoreiro, político, a má gestão voluntária, danosamente decidida das nossas riquezas naturais; a clara utilização populista que foi feita do setor energético, da Petrobrás; a nova matriz econômica tão fracassada, perigosa; a completa inversão de valores, o desestímulo ao empreendedorismo, fator criador de riqueza por excelência; a fraude contábil, meticulosamente planejada com vistas à manutenção do poder e à manipulação dos agentes econômicos, cuja desonestidade é só um mero apelido para tamanha falta de transparência, autoritarismo, violação de direitos, submissão do eleitor, do cidadão, a um poder maior, que nada satisfaz, nem pode deter.

 Arrisco dizer, felizmente, que tempos melhores estão surgindo. Não da forma como 
gostaríamos. Michel Temer? Vice-presidente na eleição mais suja da história? Qual a legitimidade deste processo? Ainda assim, foi possível dar cabo do projeto mais lastimoso que já tivemos, aquele mesmo que nada fez pela educação básica, sucateou ainda mais a indústria, legou 12 milhões de desempregados, desestabilizou a moeda, não empreendeu reformas agrárias, atrasou repasses ao Tesouro para financiar as castas protegidas via BNDES, que enriqueceu pouquíssimos em detrimento do empobrecimento geral. É este estado social, inchado, que te atrai em contraposição a um governo de poder limitado liberal?

 Quarto ponto: o Estado Democrático de Direito. Só é possível haver democracia onde há estado de direito. Somente onde todos são iguais perante a lei, onde esta é igual a todos, impessoal e sobre a qual ninguém está acima. A justiça não pode ser feita por grupos organizados, sob pena de tornar-se mera expressão da força, da virulência do mais forte. Direitos não podem ser relativizados, sob pena de perda de validade ou – o que é pior – de uso pessoal por parte de um governante. A relativização dos direitos simplesmente dá lugar a que a vontade do legislador ou de quem possui mais poder torne-se a medida de todas as coisas, o arbítrio ilimitado que lança a todos num estado de calamidade, insegurança e imprevisibilidade. Quanto da atual miséria dos venezuelanos não se iniciou com as amplas nacionalizações, as tomadas de propriedades através da violações de direitos básicos perpetrados por Chavez e Maduro, sob o pretexto da função social da propriedade; ou de que cada cidadão deveria agir em nome do bem comum, mesmo sabendo que há tantas definições, tantos valores possíveis associados a este termo quanto há de habitantes no mundo? Eis o risco da relativização das normas do estado de direito. Não hão como eliminar sua impessoalidade sem incorrer na ditadura.

 Há grandes propriedades em desuso? Sem dúvida. Isto é justo? Não sei. Mas não é justo que esta seja violada, sob a pretensa justificação de que está em desuso. É violento que pessoas que nada possuem tenham seus barracos destruídos? Absolutamente sim! Como disse, nosso Estado é responsável em grande medida pelo fato de que 10% de nossa população não tenham onde morar. O que dizer dos aumentos de impostos sobre propriedade, que afastam os mais pobres dos grandes centros? Das Leis de impedimento ou de restrição á construção de grandes prédios, que criam escassez artificial de moradias e elevam seus preços? Das exageradas regulamentações que criam burocracias e encarecimento dos serviços e produtos? Ou das leis trabalhistas engessadas que impedem a geração de novos empregos e a entrada dos mais desvalidos no mercado de trabalho? Ou, pior ainda, que dizer do fato de que propriedades construídas pelas mãos nuas de tantos empobrecidos não possam ser regulamentadas ou regularizadas? Não há nada mais autoritário do que não reconhecer o fruto do trabalho de outrem.

  Se a prisão de Boulos foi autoritária e descabida, há grandes razões pelas quais desconfio que realmente foi. Mas dizer daí que enfrentamos uma criminalização dos movimentos sociais consiste numa passada superior à perna. Quantas universidades, federais e públicas, não sofrem com os desmandos de movimentos “estudantis” que desfraldam bandeiras partidárias, fazem dos centros de ensino verdadeiros celeiros para recrutamento, palco para consolidação de poder político-partidário sem que haja uma única voz, uma única força, um único instrumento legítimo, legal, que possa dar um basta neste processo odioso, de sucateamento de nosso ensino e da nossa juventude? O Brasil talvez seja o país onde mais movimentos sociais ocorrem simultaneamente e tenham carta branca para agir. Violam direitos constitucionalmente salvaguardados, e ninguém tem a coragem, o destemor de ousar levantar um dedo, fazer valer os direitos pétreos que nossa Carta magna tão amorosamente tem em seu seio, tamanha a “bunda molice”, a falta de caráter de nossos representantes. É verdade que muitos manifestantes do grupos como MST e MTST são vitimas de seguidas violências injustas. Mas não há como negar que boa parte destas violações não são provocadas pelo fato de pertencerem a estes grupos, nem esta fato constitui ensejo para afirmar que os movimentos sociais no Brasil, em caráter geral e universal, estão sob perseguição política.

 E sobre a relação amistosa entre fascismo e liberalismo: talvez tenha lido o texto do veículo Voyager a respeito do assunto[4]. Apenas digo que este texto é fruto de uma desonestidade atroz, capaz inclusive de ter distorcido as fontes citadas e imputado ao texto citações que seus autores nunca disseram. Prontamente, já me detive sobre o assunto e produzi a minha réplica, a qual pode ser livremente consultada[5].
Em suma, caro amigo, muito se diz que os intelectuais se detem a interpretar a realidade que os circunda, sem muito fazer para alterá-la. Discordo frontalmente. Intelectuais produzem realidades, criam narrativas sobre o mundo que os rodeia, de tal forma que conseguem, quando assim deseja, enxergar aquilo que suas lentes estão preparadas de antemão para ver. Não vivemos sob um regime fascista, e muito daquilo que hoje poderíamos designar com tal alcunha, é mais um resultado histórico, fruto dos últimos governos ou da longa trajetória política brasileira, do que os 9 meses do atual governo Temer. Espero sinceramente melhores dias ao nosso país e a nossos compatriotas, os que hoje vivem e os que estão por nascer. Farei de tudo para que dias melhores possam surgir na alvorada do amanhã. E, sinceramente, torço para que faça o mesmo.




[1] https://www.youtube.com/results?search_query=Reportagem+globo+pris%C3%A3o+do+Boulos
[2] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2016-08-05/msts-pcc.html
[3] http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,msts-foi-criado-para-disfarcar-organizacao-criminosa-diz-delegado,10000067210
[4] http://voyager1.net/historia/pare-de-achar-que-liberalismo-e-fascismo-sao-opostos/
[5] http://ocorreioliberal.blogspot.com.br/2017/01/cuidado-voyager-nao-sabe-o-que-diz.html

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A Esquerda que não sabe o que fala – O Caso Cingapura

 Encontrei pela internet um texto de esquerda destinado, nas palavras do autor, a desmistificar o discurso “neoliberal” a respeito das benesses da não-intervenção do estado na economia no caso de Cingapura[1]. Como sabemos, a ilha do pacífico, um dos Tigres Asiáticos, é considerada um exemplo de desenvolvimento atingido através de reformas liberalizantes. Porém, nos termos do autor, o desenvolvimento da ilha ocorre apesar do liberalismo ou do capitalismo, e não em decorrência de sua estrutura econômica.

 O texto se inicia com críticas do autor àquilo que pensa saber ser o “Estado mínimo” – termo equívoco melhor substituído por poder limitado – e a “mão invisível”, entendida como o processo de regulação autônoma do próprio mercado entre seus agentes econômicos. No entanto, o que mais chama a atenção, e é provavelmente isto que é totalmente despercebido pelo autor e, diga-se de passagem, por boa parte dos críticos do capitalismo e das ideias liberais, é a completa redução da economia de livre mercado a apenas alguns fatores que, sem deixarem de ser importantes, por si só não garantem que um determinado arranjo seja de fato de ordem liberal ou possa ser classificado como tal.

 Em primeiro lugar, a experiência social de Cingapura é fincada na convicção da superioridade da iniciativa privada e da gestão administrativa baseada em critérios puramente meritocráticos[2]. A responsabilidade individual obteve uma preponderância muito maior sobre a ideia de planificação estatal e distributivismo coletivista. Como o afirma o próprio Lee Kuan Yew, o “fundador” deste novo modelo emblemático de Cingapura:

Assim como Jawaharlal Nehru [o primeiro primeiro-ministro da Índia, de 1947 a 1964], no começo me senti influenciado pelas ideias do socialismo fabiano inglês.  No entanto, rapidamente me dei conta de que, para distribuir o bolo, é necessário antes fabricá-lo.  Por isso me distanciei da mentalidade do estado de bem-estar: ela minava o espírito empreendedor e impedia que uma pessoa se esforçasse para prosperar e seguir adiante.

Também abandonei o modelo de industrialização baseado na substituição de importações.  Enquanto a maioria dos países do Terceiro Mundo denunciava a exploração das multinacionais ocidentais, nós as convidamos todas para ir a Cingapura.  Desse modo conseguimos crescimento, tecnologia e conhecimento científico, os quais dispararam nossa produtividade de uma maneira mais intensa e acelerada do que qualquer outra política econômica alternativa poderia ter feito[3].

  É fato que Yew concedeu isenções fiscais a certas companhias multinacionais e nacionais de grande porte, e que também redirecionou investimentos a certos setores da economia do país. No entanto, em medida muito superior e mais veloz, Yew praticamente eliminou, desde os anos 60, as barreiras alfandegárias e abriu as portas da pequena ilha para os investimentos diretos estrangeiros. Retomou aquilo que havia constituído o espírito dos moradores do país ao longo dos últimos séculos: a próspera economia de importação/exportação, dependente, sobretudo, do comércio naval. De forma análoga, a ilha manteve níveis atrativos e amigáveis (consideravelmente baixos se comparados à média dos demais países do globo) de tributação e desregulamentou grandemente muitos setores, reduzindo de forma drástica as burocracias, os custos e a liberdade de empreender no país. Não à toa, de acordo com o Instituto Doing Business, Cingapura permanece sendo o lugar com o maior grau de liberdade para se empreender em todo o continente asiático[4]. Para se ter uma ideia, em Cingapura, se leva em média 03 dias para realizar a fundação e a abertura de uma nova empresa, sendo a tarifa média para realizar transações comerciais, nacionais e internacionais, menor do que 1%[5].

 Os direitos de propriedade são também extremamente sólidos, sendo este inclusive um dos pontos de maior enfoque de Yew nas reformas que implantou. Em termos de corrupção e solidez das instituições políticas do pais, Cingapura figura entre os 10 países menos corruptos do mundo, atrás apenas de nações como Dinamarca, Noruega e Suíça[6]. De fato, desde que assumiu o poder em 1965, Yew foi responsável por estabelecer um combate ferrenho à corrupção e à ineficiência do setor público. Foi responsável por estabelecer salários adequados capazes de atrair os melhores talentos do mercado e por propor, nos anos 1990, uma fórmula salarial diretamente vinculada ao resultado da economia e da arrecadação fiscal[7] – ou seja, os salários públicos estão sujeitos à queda ou ao aumento conforme o desempenho da própria sociedade de Cingapura. Em seguida, também instaurou um sistema meritocrático não apenas no concurso de admissão aos cargos públicos, mas vigente também ao longo de toda a carreira do profissional[8].


 Parte deste sucesso se deve também à própria visão de Yew quanto ao parasitismo que pode ocorrer – e sempre ocorre – quando o governo tem como finalidade a mera equidade de renda ou simplesmente o dispêndio de benefícios sociais:

Aproveitamos todas as vantagens que nos legaram os ingleses: o idioma, o sistema jurídico, a democracia parlamentarista e a administração imparcial.  Mas conseguimos evitar ceder ao charme do estado de bem-estar social.  Já vimos como um povo inteiro pode competir entre si para se afundar na miséria e na mediocridade.  As pessoas menos empreendedoras e trabalhadoras não podem ser igualadas ao resto à custa de piorar a situação das mais empreendedoras e esforçadas.  E também já vimos quão difícil é desmantelar um sistema de subsídios tão logo as pessoas se acostumam às benesses que o estado lhes proporciona.

[...]

O estado de bem-estar e os subsídios destroem a motivação para as pessoas se esforçarem e crescerem.  Se for para ajudar alguém, é preferível que seja dando-lhes algum ativo ou dinheiro e permitido que tenham total liberdade para decidir como gastá-lo.  Quando as pessoas se tornam dependentes dos subsídios e o estado não pode mais continuar lhes pagando, elas protestam.  Tornaram-se mal acostumadas[9].

 Isto ajuda a entender o ponto nevrálgico da tese mal sucedida do autor do texto sobre Cingapura. É também verdade que há inúmeras empresas estatais operando em Cingapura, talvez até mais do que companhias privadas. Mas é interessante observar como até nisto Yew diferenciou-se de seus antecessores e políticos contemporâneos ao redor do globo. Além de implementar a seleção e promoção de funcionários conforme unicamente critérios objetivos e baseados no mérito, todas as empresas públicas tem como objetivo o lucro. Não há como negar que tais empresas operam com capital oriundo de arrecadação de seus pagadores de impostos, mas a finalidade de tais companhias é igual a de qualquer outra empresa privada. A eficiência é o critério último para a decisão da sobrevivência ou extinção de cada empresa pública[10].

 Com efeito, é também notório observar o desempenho das contas públicas, visto que, ao contrário do que muito se diz, os gastos públicos constituem no mais das vezes uma variável ainda mais importante do que a carga de tributos para a avaliação de uma economia livre. Afinal, gastos crescentes e déficits públicos seguidos conduzem a esgotamento de recursos dos setores produtivos, expansão da oferta de moeda e consequente desajustamento do setor produtivo, aumento da burocracia e alocação ruim dos recursos disponíveis. No caso de Cingapura, o gasto total do setor público é cerca de 1/3 de do gasto sueco, país semelhante em termos de numero de habitantes e dimensões territoriais[11]. E, muito embora a dívida pública nacional esteja em mais de 100% em relação ao PIB – oriundos especialmente com as crises asiática de 1996 e mundial de 2008 – foram muito poucas as oportunidades em que houve um afrouxamento das contas fiscais. Apenas no final dos anos 80 e em outros da década subsequente, o país incorreu em déficits fiscais[12]. Há de fato inexistência de uma percepção de insolvência por parte do governo local que contribui fortemente com a continuidade de investimentos estrangeiros vindos ao país.


 Na esfera monetária, chama a atenção a completa ausência de interferências governamentais no momento crucial de estabelecimento de uma moeda forte e estável. Operando por um sistema de currency board, a moeda local basicamente passou a operar de acordo com a quantidade de reservas internacionais, com a quantidade de moeda estrangeira que circula pelo país e a qual a moeda cingapurense esteve atrelada[13]. A partir de uma taxa de câmbio fixo, pôde-se conquistar a estabilidade da moeda, impondo forçosamente uma disciplina ao sistema bancário e às políticas fiscais de governo. Como resultado, entre os anos de 1982 a 2005, o dólar de Cingapura tornou-se a moeda que menos apresentou depreciação em todo o mundo[14].

 Com relação especialmente às políticas de moradia popular, da qual dependem cerca de 85% dos habitantes do país, vale destacar que nenhum direito coletivo é financiado diretamente pelo erário público. Foi criado ainda nos anos 70 o Fundo Providente Central, algo semelhante ao CPF brasileiro, que opera como um instrumento financeiro que possa garantir a independência financeira de cada cidadão na terceira idade. Este sistema de responsabilidade pessoal – cuja fortuna futura está estritamente associada ao desempenho presente -, cujos valores têm origem numa contribuição mandatória de 33% de cada cidadão, são depositadas numa conta individualizada com liquidez nominal. A existência destes fundos simplesmente fez com que o próprio governo de Cingapura pudesse aliviar-se dos custos oriundos com políticas sociais. Além disso, à titulo de explicação, tais fundos são investidos em títulos da dívida do governo, o que implica dizer que, para tomar de empréstimo o dinheiro de seu “contribuinte”, este precisa emitir um título de devedor em favor da pessoa física cujos fundos pessoais estão sendo objeto de captação[15]. Isto também ajuda a explicar porque a dívida pública do país é tão alta.

 Em suma, à guisa de conclusão, o modelo adotado em Cingapura difere muito dos modelos público-privados adotados no ocidente. Politicamente, o país ainda padece de restrições à liberdade de expressão, e os direitos políticos, como a livre associação e formação de coligações partidárias, ainda encontram sérias restrições. No entanto, há que se situá-lo em direção diametralmente oposta a um capitalismo de estado tal como observamos na China, na Venezuela ou na Argentina Kirchnerista. A prosperidade da ilha, que se reflete na renda per capita anual de aproximadamente 50.000 dólares por habitante, deveu-se aos fatores essenciais a qualquer economia liberal e que constituem aquilo que podemos chamar de baixa intervenção governamental: ampla liberdade individual e de comércio, direitos de propriedade bem fundamentados, sólidas instituições civis, baixa intervenção estatal constatada através das pouquíssimas regulamentações em seus diversos setores e da limitada condução planejadamente central dos agentes econômicos; gastos públicos controlados e baixos; divisão e especialização estimuladas do trabalho e tributos atrativos. Mais uma vez, pudemos observar como um representante da esquerda desperdiçou seu tempo incendiando um espantalho.



[1] http://www.panoramicasocial.com.br/2013/08/singapura-exemplo-de-sucesso-neoliberal.html
[2] CASTRO, P. R. DE. O Mito do Governo Grátis. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2014, p. 274.
[3] https://www.amazon.com/The-Singapore-Story-Memoirs-Kuan/dp/0130208035
[4] http://www.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/singapore/
[5] http://www.heritage.org/index/country/singapore?ac=1
[6] https://noticias.uol.com.br/album/2014/12/03/veja-os-10-paises-menos-corruptos-do-mundo-segundo-ranking-de-ong.htm#fotoNav=7
[7] http://www.beefpoint.com.br/cadeia-produtiva/espaco-aberto/como-cingapura-venceu-a-corrupcao-por-marcos-sawaya-jank/
[8] Ibidem.
[9] https://www.amazon.com/The-Singapore-Story-Memoirs-Kuan/dp/0130208035
[10] http://m.noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2015/05/21/as-contradicoes-de-cingapura-e-o-estranho-legado-de-lee-kuan-yew.htm
[11] http://m.noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2015/05/21/as-contradicoes-de-cingapura-e-o-estranho-legado-de-lee-kuan-yew.htm
[12] CASTRO, P. R. DE. O Mito do Governo Grátis. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2014, p. 277.
[13] http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2059
[14] https://fred.stlouisfed.org/graph/fredgraph.png?g=15eP
[15] CASTRO, P. R. DE. O Mito do Governo Grátis. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2014, p. 281.