"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Golpe Democrático

  Num primeiro momento pode causar estranheza ao leitor o título deste ensaio, o qual associa numa única sentença dois termos considerados, na ciência política, como antagônicos e que exprimem sentidos de natureza diferentes. O autor assume, humildemente,  que talvez possa estar em vias de incorrer em ledo engano ao ultimar o termo, porém resguarda-se e lança-se mão de mostrar ao leitor as razões que o animaram por esta escolha.

 Com efeito, emprega-se o termo “golpe” à medida que visa, sobretudo, à deposição de um governante e chefe político por vias que não encontram legitimação institucional. De caráter abrupto e freqüentemente associado historicamente ao ponto de partida da instauração de regimes autoritários e despóticos, esta deposição é levada a efeito quando as regras constitucionais ou direitos políticos que conferem a legitimidade ou legalidade de certo corpo civil são tomados como empecilhos para os anseios de poder de um determinado grupo, partido ou colégio eleitoral. Neste sentido, o discurso fortemente crítico e polarizados aos adversários da luta política floreia-se com um senso ou noção de dever moral para com uma população de particularidades e características bem definidas - quer dizer, um senso moral que obriga seu detrator a tomar-se como o possível herói e protetor do povo, nação ou democracia real. Em resumo, o que bem caracteriza um “golpe” é a ação de tomada de poder resultante de meios não prescritos no códice legal de determinada organização e que, por isto mesmo, não se origina dos meios considerados legítimos por este ordenamento para a escolha do governante e para a condução dos negócios privados e coloca por terra o conjunto de forças escolhido de forma legítima pelo eleitorado ou pelo respectivo órgão legislativo.

 Em forte oposição ao conceito “golpe”, a democracia, que possui margem imensurável de discussões e controvérsias acerca de sua natureza, funções e condições de existência, enquanto regime político encontra seu fundamento no sufrágio e na decisão livre de seus cidadãos. Neste regime, a origem do poder reside no indivíduo, e é através da decisão da maioria do eleitorado, do sufrágio efetivado esporadicamente entre intervalos previamente definidos e segundo normas, direitos políticos e leis constitucionais asseguradas, que se constitui o poder executivo e boa parte dos magistrados que exercem funções importantes na administração deste corpo político e burocrático.  

 Nas formas de governo nas quais esta estrutura ascendente de poder é o fator determinante para a manutenção do poder político, as vias institucionais, representadas pelo aparato jurídico e pelas Casas do Legislativo, além de permitirem e garantirem que o verdadeiro poder resida e seja exercido em nome de seus cidadãos, detém em si a peculiaridade de constituir barreiras ao exercício das funções do representante do eleitorado e assim conferir uma esfera segura de independência, autonomia e liberdade a cada cidadão. Dentre as limitações ao chefe político que são estabelecidos por todo este aparato, o direito a cada um de possuir sua propriedade, orientar-se segundo seus próprios objetivos, valores e vontades, poder resguardar-se do constrangimento ou do uso ilegal da força por parte de terceiros e exprimir seu próprio pensamento são garantias fundamentais à sua manutenção. O direito formal, orientado segundo o intuito de promover a justiça por meio da imparcialidade nas decisões públicas , é também, aqui, o princípio orientador para que as condições da vida civil sejam mantidas e do qual diversas outras leis e máximas são deduzidas e afirmadas.

 Pois bem. Finalizado este percurso, necessário para as conclusões que hão de advir com este ensaio, mas que em pouco convergiu para atenuar o embaraço do leitor, introduzo o fato que me conduz a esta empresa: a reprovação ampla de boa parte dos partidos de esquerda no Brasil, em rede nacional, a um possível processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, deposição esta considerada “golpe” e incentivada por uma direita anti-democrática e opressora.

  Afirmam estes grupos que a mera tentativa de depor Dilma Roussef viola a mais elementar condição da democracia: a soberania do povo. Candidata eleita em sufrágio legítimo, tem suas funções e poderes derivados do povo que a elegeu, e que nenhuma manifestação, grupo de oposição ou discurso contrário é capaz de tirar a legitimidade de seu governo. Por conseguinte, um processo de impeachment, ainda que conforme às jurisdições da constituição, não soa razoável à “vontade do povo”.

 Contra esta argumentação elejo os pontos a seguir – eis a razão deste ensaio -: como já dito inúmeras vezes em outras oportunidades neste blog, não é tão-somente o sufrágio que confere existência á democracia. Outros aspectos devem ser observados, pelos cidadãos e pelas estruturas de limitação às decisões políticas, para que um regime possa ser considerado como tal. Os direitos essenciais, políticos e civis devem ser assegurados; a corrupção, falta de transparência pública e as irresponsabilidades com as propriedades dos pagadores de impostos devem ser frontalmente combatidas. A constituição deve ser observada, e a liberdade de cada cidadão deve ser seu fim máximo.

 Quanto ao povo, vale ressaltar que tal conceito trata-se antes de uma figura de linguagem ou de um termo de inexistência real e sentido oblíquo. O que, de fato, assegura o resultado de uma eleição é a maioria dos votantes. As diferenças de convicções, valores ou opiniões, não importa a quais áreas estejam voltadas, entre os indivíduos que compõe todo este eleitorado é quase tão extensa quanto é numerosa a população brasileira. É impossível estabelecer qualquer senso ou característica unificante entre todos os cidadãos em termos de preferência, objetivos de vida ou interpretação da própria existência. A única qualidade que os une num único e inequívoco conglomerado organizado é o fato de pertencerem à República Federativa do Brasil.

 Assim sendo, a principal consternação do autor defronte à propaganda partidária das legendas mencionadas refere-se ao fato de estas serem coniventes, ao fim e ao cabo, com uma presidente e um partido que tiveram suas contas de campanha rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União, num forte indício de que recursos de vultuosa quantia foram retirados ilegal e ilegitimamente de uma empresa estatal para que alianças políticas fossem consolidadas e processos legislativos ou judiciários fraudados pela substituição da imparcialidade pelo alinhamento ideológico nos processos democráticos. Soa também desonroso ao autor uma certa defesa de um chefe executivo que promoveu um dos maiores calotes aos próprios bancos públicos, descurando por completo de qualquer responsabilidade fiscal e desrespeitando num grau assombroso o cidadão pagador de impostos que alimenta, muito contra a própria vontade, uma máquina estatal inchada e corrupta.

 Afigura-se trágico ao autor, por fim, o apoio concedido a um governo que manifesta animosidade e empréstimos de recursos financeiros a regimes ditatoriais latino-americanos e que age como se tivesse estado, todo este tempo, imune ou acima da própria lei que lhe serve de amparo e de limitação, utilizando por este meio as instituições da República para proteger e garantir todo seu poder político e reduzir com isto as nossas liberdades. Qualquer processo de impeachment que possa sobrevir no futuro, portanto, quanto a atual presidente não apenas é legal, visto que é prescrito em lei, como também faz-se legítimo, dado que até mesmo sua popularidade ou base moral esgotaram-se de relevância na disputa política. Tudo isto traz ao autor severas dúvidas quanto a realmente quem tem por anseio subverter a democracia e fazer do próprio arbítrio a medida de justeza de suas ações.     

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O Enfraquecimento da Moeda e suas Conseqüências

Recentemente, com a desvalorização do real frente ao dólar e a outras moedas internacionais - fator resultante, em grande parte, do rebaixamento da nota de crédito soberana do Brasil pela instituição Standard & Poor’s e da instabilidade de sua economia – outros aspectos de grande importância da atual crise ganharam relevo.

 Dentre as discussões desencadeadas por este fenômeno a inflação, a queda das importações e o aumento de preços passaram a ocupar os tablóides nacionais. Estruturou-se por quais formas o enfraquecimento do real conduziria, fatalmente, ao aumento geral dos preços, à perda de competividade das industrias nacionais e ainda a uma possível queda das vendas das commodities brasileiras. Buscou-se com isso, também, fundamentar por quais vias este fato poderia acarretar no aumento do desemprego, na queda do consumo e da arrecadação de impostos, conduzindo, portanto, no agravamento da crise.   

 Longe de afetar única e exclusivamente as importações, não resta dúvida de que este fenômeno traz conseqüências nefastas à qualidade de vida de uma população. E em razão deste fato que aqui destinamos este ensaio ao esclarecimento das conseqüências da desvalorização da moeda para uma economia, seus cidadãos e as instituições políticas na vida civil.

 Desta forma, em primeiro lugar, em oposição contrária à afirmação de que a desvalorização cambial afeta, sobretudo, as importações e encarece viagens internacionais, é preciso salientar que a queda do valor de uma moeda tem como conseqüência direta o aumento dos preços de bens e serviços disponibilizados internamente. Isto ocorre em virtude da necessidade, num primeiro momento, de se ter mais moeda para adquirir o que antes se comprava com uma menor quantidade deste meio de troca, uma vez que seu valor sofreu depreciação. Como conseqüência indireta, também, sua depreciação engendra o encarecimento da produção de diversos bens, de consumo ou intermediários, que dependem da importação de outros produtos ou do uso de commodities e insumos comercializados em dólar.

 Neste cenário, a produção de alimentos representa o setor onde a influência desta desvalorização é ainda mais explícita. Com este fenômeno cambial, a exportação de carne e commodities brasileiras atingiu níveis elevados, reduzindo a oferta destes mesmos bens no mercado interno. Ao vir somar-se a isto o aumento dos preços de insumos e produtos agrícolas utilizados no cuidado com animais e plantações, o que se constatou foi uma drástica subida de preços dos bens mencionados e a conseqüente redução de qualidade de consumo e vida dos cidadãos que residem no Brasil.  

 No campo de indústria, a fraca competitividade e a dependência e o baixo desenvolvimento tecnológico nacional tornam-se também aqui latentes. A despeito de opinião quase geral, o enfraquecimento do real não conduz ao “aquecimento” da indústria gerador de riquezas e empregos. Em virtude do sucateamento e da baixa qualidade de instrumentos de trabalho com a qual a indústria brasileira diariamente convive, o ganho com as exportações que poderia sobrevir pela desvalorização da moeda encontra forte contrapeso no fato assente de que não apenas nossas indústrias, como também diversas outras ao redor do globo, são importadoras assíduas de matérias primas e bens intermediários produzidos em outros territórios nacionais.  Deste modo, os custos de produção que se elevam reduzem em grande medida a competividade das industrias nacionais no mercado externo.
 Ainda, esta situação tende a agravar-se porquanto, em meio às maiores tarifas protecionistas da era do real e da inflação, um fenômeno chamado de “desindustrialização” pareça atingir seu auge. Com a elevação de preços e a queda no poder de compra dos cidadãos, a fragilização do consumo conduz necessariamente a uma queda na produção deste mesmo setor responsável pela fabricação de eletrodomésticos, veículos automobilísticos, eletrônicos, entre outros. O desemprego neste setor e nos demais associados à venda e encomenda de produtos tende a atingir, portanto, níveis ainda mais altos.

 E a história se repete também no que diz respeito aos investimentos externos e internos. Encontrando-se nossa moeda em fortes condições de instabilidade, as possibilidades de ganhos seguros futuros com a transferência de capital e dos conhecimentos especializados a ele associados tornam-se escassos. Projetos de longo prazo voltados à inovação e criação de nossos serviços abandonam o país em busca de maior segurança em outras terras. Juntamente com os mesmos, talentos partem em busca de melhores oportunidades.


No que tange a democracia, doravante, o fenômeno da desvalorização do real é, ao mesmo tempo, causa e reflexo de medidas do poder público voltadas ao controle ou intervenção estatal excessivo sobre as atividades privadas dos cidadãos e a direção previamente planejada de seus resultados. A pouca transparência nas contas públicas, nos seus métodos de agir também favoreceram a criação de alianças ilícitas entre órgãos ou representantes políticos e fortes empresas de capital público ou privado. Esquemas de corrupção e a estafante concentração técnico-burocrático num único ou em reduzidos diretórios contribuíram e ainda contribuem para o esvaziamento da cidadania e do sentido da ação cívica. A instabilidade de nossa unidade de troca, desta forma, age contra o crescimento econômico, contra a redução da pobreza e age, fundamentalmente, em favor da continuidade de nossas instabilidades políticas, face às quais a liberdade de cada indivíduo frente ao despotismo político e à tirania de grupos coletivos esmorece, obstando o desenvolvimento civil e social em todas as suas diversidades. 

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A Tragédia Repúblicana

Há poucas horas o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva veio a público, durante encontro com grupos sociais de agricultores, oferecer defesa à atual presidente em exercício, Dilma Roussef, defronte às acusações de irresponsabilidade fiscal que emanam da oposição, dos meios de comunicação e dos cidadãos comuns deste país.  

 Encontrando-se em vigência a investigação acurada, seguida de reprovação ríspida de qualquer situação ou contexto que pareça, ainda que debilmente, consistir em ato de corrupção, vimos a recomendação, na semana anterior, por parte do Tribunal de Contas da União pela reprovação das contas da campanha eleitoral da presidente quando candidata em 2014. Segundo o órgão, os tesoureiros e administradores dos recursos da União, sob a conivência de Dilma Roussef, incorreram nas chamadas “pedaladas fiscais”, onde o repasse obrigatório de recursos do Tesouro a Caixa Econômica Federal, ao Banco do Brasil e ao BNDES foi postergado em virtude da manutenção de programas e privilégios sociais. Estas últimas instituições viram-se, deste modo, delegadas ao levantamento de seus próprios recursos para a quitação dos rombos milionários deixados pela União.

 Face à esta situação, que progressivamente se configura numa rejeição total da imagem da presidente e pode originar a deposição de seu mandato e poderes, Lula optou por tentar dirimir as consequências negativas deste mais novo escândalo protagonizado pelo TCU. Em um discurso com vistas a aglutinar forças e lados dissidentes quanto à atual gestão petista do poder executivo, o ex-presidente reafirmou a necessidade de se furtar aos ataques perpetrados pela oposição, frisando que há ainda há, ao alcance de sua legenda, meios suficientes para a saída da crise atual. O que, no entanto, mas suscitou indignação em sua fala consiste na afirmação, pretensamente ingênua, de que, se assim agiu, Dilma levou adiante as pedaladas fiscais com o intuito único de manter os programas sociais do Bolsa Família e do Minha Casa, Minha Vida.

 Óbvio está que esta afirmação, apesar de perdulária, apresenta um dúbio conteúdo. Primeiramente, se a asserção acima causa estranheza a qualquer cidadão consciente do que atualmente se passa nas instituições políticas, econômicas e cívicas que lhe rodeiam, não é exagero, todavia, afirmar que esta não é desprovida de sentido. Com efeito, as pedaladas fiscais foram tomadas em consonância à finalidade de arrecadar votos e fidelizar eleitores quando o déficit público e o endividamento dos cofres do Tesouro já se sobressaíam e colocavam em risco os programas sociais do governo. O receio de que se perdesse o poder assombrou de tal modo seus detentores e toda a coligação aliada que considerações éticas e legais não se impuseram na tomada de decisões sobre as medidas necessárias para a aquisição de votos. Em adição, Lula não apenas consentiu – em tom semelhante a uma confissão – com as atuais constatações públicas acerca das contas da campanha de sua apadrinhada, como também levou-nos a crer que os tais programas sociais, mais do que fundamentar e estender benesses às parcelas mais pobres da população brasileira, tinham função primordialmente política.

 Em segundo lugar, conforme já havíamos enfatizado no ensaio “A função política da corrupção”, com esta frase se torna legítimo tomar o atual escândalo de corrupção como uma tragédia republicana, possivelmente sem precedentes em nossa história. Muito mais do que o desvio ilícito e oculto de recursos públicos para a satisfação de demandas privadas de funcionários públicos, políticos ou empresários apoiadores do governo, o “Petrolão” e seus desmembramentos atualmente em curso nos apontam distintamente para a prática pérfida da perpetuação sem escrúpulos do poder político e dos instrumentos de coerção: quantias insondáveis de dinheiro espoliadas do erário tiveram por finalidade financiar campanhas, comprar votos, fornecer privilégios, estabelecer alianças, enquanto o estado real da economia do país deteriorava-se sem que a isso nossa presidente e seus aliados se detivessem com a merecida atenção.

 Os esforços levados a cabo para que o poder se mantivesse sob seu desígnio apenas revelou o fratricídio do Estado Democrático de Direito, pois a Lei, soberana e superior até mesmo ao mais alto cargo administrativo, esvaziou-se de seu significado, sendo usurpada e substituída pela arbitrariedade do governante tornada a nova lei, o novo critério de decisão e valoração das ações passadas e vindouras.   

 Sem muito esforço, desconfia-se e até observa-se certo tipo de coerção do poder executivo sobre as demais Casas. Táticas de intimidação e ameaça sobre o TSE ou sobre o STF, juntamente com o fornecimento de propina em troca de apoio político cego e indistinto constituem sintoma de desfalecimento das principais instituições da República, assim como colocam em dúvida se há de fato, no sistema político brasileiro, uma real divisão de poderes. Desconfia-se até mesmo da validade das últimas eleições, onde rumores despontam a respeito de processos fraudulentos durante as campanhas eleitorais. Se nota, principalmente, que a democracia nos parece ter sido subtraída por um poder tirano, adulador das massas e rancoroso de nossos valores da propriedade e autonomia.

 Por fim, assistimos hoje a uma verdadeira tragédia das instituições que compõem nosso corpo civil, e cujas finalidades deveriam servir à manutenção de nossa liberdade. Com tudo isso, torna-se assente, sobretudo, o aspecto falido de uma retórica populista voltada ao apelo pelo combate à desigualdade e à pobreza. Programas sociais tais quais os mencionados acima são também responsáveis pela deterioração presente da economia, onde o cidadão pobre, afastado das grandes oportunidades e do acesso a uma qualidade de vida melhor, sorverá o principal fruto amargo e indigesto deste regime. Reformas de certa forma radicais, além de uma liderança política sisuda e sábia, fazem-se mais do que necessárias se é objetivo comum a restituição da República e a solidez das liberdades individuais que lhe são resultantes. A tragédia republicana, talvez a maior de nossa história, desenrola com furor e se nos toma de assalto, enquanto, receosos, lutamos e para que uma sociedade livre enfim tenha lugar neste país chamado Brasil. 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Invasão da Propriedade no Combate à Dengue


Nesta segunda-feira, 05 de outubro, o prefeito da cidade de São Paulo Fernando Haddad sancionou lei, proposta pela câmara municipal dos deputados, na qual autoriza o uso da força para invadir domicílios cujos moradores não estejam presentes ou se recusem a permitir a entrada da equipe sanitária da prefeitura.

 Tal medida, que condiciona a investida apenas ás ações voltadas ao combate à dengue e à chikungunya, tem por objetivo conter e impedir a proliferação do mosquito aedes aegypt, e servirá de ferramenta a esta luta sanitária nos próximos meses, os quais, em virtude de maior incidência de chuvas e aumento da umidade, oferecem condições meteorológicas propícias à reprodução do mosquito.

 As previsões negativas que surgem com a aproximação dos tempos úmidos e quentes, feitas com base nos surtos de dengue que no último verão assolaram quase todo o território nacional e na fragilidade da infra-estrutura sanitária e médica que nesta oportunidade tornou-se evidente, sugerem que, salvo em caso de um planejamento eficiente e organizado levado a cabo pela autoridade pública, uma nova epidemia se estabelecerá nos grandes centros populacionais. Medidas drásticas, deste modo, tornam-se razoáveis se se adequarem á finalidade para a qual são direcionadas.
Isto, contudo, carece de qualquer aspecto de bom senso ou consideração estratégica razoável se examinarmos o raciocínio que lhe confere sustentação, visto que, se colocado sob análise, todo esta ação resume-se numa prática, mais do que ilegítima, ineficiente.

 De fato, a proliferação do mosquito e o conseqüente aumento dos índices de contágio das doenças mencionadas decorrem do acúmulo de água limpa e parada. Vasos com plantas, pneus, caixas d’água, vasilhames e muitos outros recipientes, se objeto de descuido de seus respectivos proprietários, propiciam o acúmulo de água e de outras eventuais substâncias que facultam a difusão destas e de outras doenças.

 Indigno de questionamentos, acrescenta-se a este ponto de partida a constatação de que o combate à dengue, posto em prática principalmente através da conscientização pública dos cidadãos sobre os riscos que envolvem o descuido com água parada e sobre as medidas necessárias para a resolução deste quadro, provou-se insuficiente na conquista de suas metas. E mesmo com o apoio de novas vacinas e recursos biológicos criados em laboratório, chegou-se a conclusão de que há ainda muito para se fazer.

 Não há, no entanto, um sentido de necessidade lógica em auferir, deste diagnóstico, a “justeza” da ação pública de entrar à força em residências e demais propriedades. Um dos maiores problemas da metrópole paulistana consiste em sua infra-estrutura sanitária, de saneamento e nos assentamentos ilegais ao longo da região metropolitana, onde são flagrantes as péssimas condições de vida de seus habitantes. Com obviedade se argumenta não ser fácil delimitar e isolar os principais focos da proliferação do mosquito aedes aegypt, porém, com igual acuidade se pode enfatizar que a pulverização de residências não consiste numa medida de resolução efetiva de todo o problema.

 Na capital e nas principais cidades que compõem sua grande região metropolitana, são inúmeros os exemplos de descaso público. Resíduos e lixo urbano se acumulam em ruas e avenidas; esgotos a céu aberto parecem multiplicar-se na mesma velocidade com que competem para difundir doenças e pragas; bairros periféricos sofrem com a péssima infra-estrutura sanitária, onde seus moradores vêem-se forçados a conviver com roedores e animais venenosos; prontos-socorros e hospitais – públicos e até privados – carecem da estrutura e recursos médicos necessários para oferecer suporte a todos os que necessitam.

 Em grande parte destes casos, vale mencionar, a burocracia estafante e a ineficiência estatal, aliada ao superfaturamento, consistem em uma de suas principais causas. Impostos diretos e indiretos, que já reduzem a esfera de liberdade de cada cidadão, tornam-se tão mais onerosos à medida que se aponta como ação estratégia a ser tomada um processo dispendioso de pulverização que não apresenta soluções para as verdadeiras deficiências da cidade e que sempre serão criadouros para a dengue e outras doenças. E o quadro tende a agravar-se enquanto, além de não oferecer as condições de proteção da integridade física de cada cidadão, esta medida concorre para a violação do direito individual de privacidade e inviolabilidade da moradia.

 Cada indivíduo resguarda em si a livre recusa em face do constrangimento de terceiros, e sua propriedade, seja esta a propriedade sobre seu corpo, intelecto ou bens, não deve, de forma alguma, ser submetida á decisão arbitrária do poder coletivo. A determinação para a entrada à força em residências põe em risco a integridade de cada morador à medida em que não estabelece com rigor as condições que viabilizam esta ação. Em posse de quais documentos se reconhece sua legitimidade? Como determinar se de fato a equipe que bate à porta é constituída de representantes do poder público, e não de falseadores e criminosos? Como assegurar que a propriedade não sofrerá danos por esta invasão, seja pela recurso à força, seja pelos efeitos das substâncias tóxicas que são despejadas durante a pulverização?  E, principalmente: quais estatísticas são capazes de apontar que o ato da pulverização, consentida ou á revelia, contribui com peso para o combate às causas e á disseminação do mosquito e de pragas urbanas?

 E, o que é talvez pior, não apenas a integridade do indivíduo encontra-se combalida neste contexto. No atual momento de crise econômica em que nos deparamos, a utilização dos recursos públicos de forma coerente é cada vez mais necessária. A pulverização forçada esmorece com mais vigor a tão amada liberdade, porquanto não realoque com sabedoria boa parte destes recursos onerosos que são destinados ao combate à dengue e torne lícita a invasão da propriedade. Neste imbróglio salutar de desperdícios e medidas emergenciais, não restam garantias que nossos bens possam estar intactos ou ainda existir quando, após um longo dia de atividades laborais, retornarmos às nossas casas.  

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A Censura e a Liberdade Civil

 Em fins de Agosto levantou-se na Câmara dos Deputados de Brasília um projeto de Lei que proíbe mensagens, postagens ou declarações consideradas ofensivas ou difamatórias a políticos profissionais e candidatos. Em paralelo, aventou-se quase no mesmo instante outro projeto de lei com a finalidade de introduzir importante alteração no atual Marco Civil, a saber, a obrigatoriedade, por parte de provedores de sites e redes sociais, de reter dados pessoais de seus usuários, tais como nome completo e CPF.

 No decorrer do mês de setembro, pôde-se observar com facilidade, além do apoio tácito do atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o sentimento de urgência com que algumas bancadas deste órgão deliberativo trataram a questão. Ficou evidente, sem sombra de dúvida, o receio, praticamente um temor pungente, de parte destes representantes de terem sua imagem ou “honestidade” denegrida através da indignação popular contra os escândalos de corrupção e de ineficiência econômica e política do atual poder executivo.  

 Sem se fazer necessário deter-se com minúcias sobre os pontos nos quais, na íntegra, estes novos projetos de lei se arregimentam, não é escusado dizer que suas ambições servem a princípios e finalidades muito escusas. De fato, ainda que os novos projetos tenham a qualidade de despertar, vez ou outra, um senso de respeito a uma personalidade política, o perigo que representam a uma sociedade livre não nos deve, de forma alguma, suscitar-lhes qualquer tipo de aquiescência.

 Sem embargo, tal como John Stuart Mill expôs com brilhantismo intelectual em seu ensaio On Liberty, não são desprovidas de importância as instituições consideradas necessárias para a manutenção de uma democracia livre.

 Tal como descreve sucintamente nas primeiras linhas de sua Introdução, o objetivo de seu ensaio consiste na problematização acerca da liberdade civil, uma forma de liberdade e uma essência política necessária a qualquer regime político. Na esteira de seu pensamento, e este é um ponto de particular importância para o presente contexto apresentado, a liberdade civil deve corresponder, tal qual uma forma de extensão, à liberdade de que cada indivíduo dispõe por si próprio. A qualidade de ser humano livre e provido de dignidade lhe confere a possibilidade de dispor de suas faculdades conforme seu juízo e seus planos e conforme aos objetivos perseguidos sem padecer da influência negativa ou restritiva de outros indivíduos ou de poderes coletivos. Esta liberdade civil, dizendo sem rodeios, consiste, portanto, na delimitação precisa e rígida das esferas nas quais o indivíduo possui sua soberania, e às quais torna-se ilegítimo a ingerência de qualquer poder político ou órgão público coercitivo.

 Porém, juntamente a deixar assente a necessidade em definir com rigidez em quais esferas da sociedade quais interesses, do indivíduo ou do poder político, serão por direito soberanos e legítimos, salienta-se quais são os papeis exercidos em particular pela liberdade de pensamento, expressão e imprensa e suas respectivas importâncias dentro de uma democracia livre. O direito ao próprio pensamento e sua correspondente expressão implicam ao cidadão a faculdade de poder, primeiramente, orientar-se segundo suas próprias convicções, “leis” pessoais e a própria razão. Em um segundo momento, que não necessariamente se desvincula do primeiro em termos cronológicos, tais liberdades lhe tornam factíveis elaborar projetos e tomar iniciativas; fornecer seu consentimento ou manifestar sua reprovação ante determinada medida pública; conduzir sua vida e a persecução de seus objetivos conforme os próprios valores e reunir-se livremente com outros indivíduos que partilhem dos mesmos ideais e vontades.

 No que tange, por seu turno, à liberdade de imprensa, as idéias, aquiescências e repúdios encontram espaço através dos mais diversos meios de veiculação de informações e notícias. A descentralização sobre tais meios, que equivale a coibir-lhes o monopólio estatal ou privado, é tanto mais importante quanto, por um lado, resulta da livre iniciativa concedida aos cidadãos para fornecer seus próprios serviços aos demais como forma de a eles ajustar a satisfação mútua dos desejos; quanto, por outro, corrobora a autonomia dos cidadãos e suas opiniões face ao exercício dos poderes públicos.

 A liberdade de imprensa, assim, constitui condição sine qua non para a transparência acerca das ações governamentais, para o julgamento sobre estas últimas e para a vigilância de cada cidadão sobre a justeza das ações políticas e suas esferas de atuação. Em forte correlação, tanto a primeira, como a liberdade de pensamento e expressão, asseguram um elemento fundamental em qualquer sociedade livre: o pluralismo político. A oposição a governantes e medidas oficiais do poder público não compreende per se toda a extensão deste termo. Antes, todavia, pluralismo político significa ou realça o verdadeiro sentido da participação dos indivíduos na vida política do corpo civil ao qual se encontram inseridos. Tão numerosos os grupos políticos numa comunidade, quantas são as opiniões relevantes e legítimas de cidadãos livremente reunidos e tão isentos de controle coercitivo ou dirigismo central, quantas são os instrumentos de veiculação de informação, torna-se praticamente impossível ver-se a esfera das liberdades individuais de cada um invadida por um poder despótico e autoritário.  

 Os direitos de livre pensamento, expressão e imprensa livre são instituições, valores e conquistas concomitantemente potencializadores e fatores condicionantes da autonomia de cada indivíduo. Tais direitos convidam cada um ao exercício cívico entendido como o esforço pela manutenção da liberdade e à inserção ao debate político e moral, fundamental para o estabelecimento das mudanças que se fazem necessárias em qualquer governo civil.   

 Por tudo isto, a censura ou qualquer outra tentativa de introdução de mecanismos destinados a refrear a expressão e formulação livre de idéias e opiniões, independentemente de seus conteúdos, consiste em ato deveras pérfido à nossa liberdade civil – representa, evidentemente, o aumento progressivo do poder político sobre as esferas nas quais toma-se como soberana apenas a vontade do indivíduo.  Reduz, indubitavelmente, nossa autonomia enquanto faz-se capaz de conceder ao Estado um poder maior de manipulação e determinação autoritária sobre nossos valores, os sentidos e as finalidades de nossas ações. Confere ao aparato estatal uma espúria qualidade de ser inatingível ou intocável às críticas e considerações e de seus cidadãos, enquanto mina os espaços destinados à dissidência e ao desacordo.


 E todo este contexto, ao fim e ao cabo, insere-nos nos novos âmbitos de discussão e manifestação de opiniões representados pelo advento das redes sociais. Os desafios que surgem com estes novos meios de difusão de informações, por mais diferenciados que possam parecer, diferem apenas em grau dos desafios representados pela salvaguarda dos direitos individuais de expressão e pensamento. Analogamente, a exigência pela obrigatoriedade da retenção, por parte de provedores e redes sociais, de informações individuais importantes de cada usuário concorre para a redução das limitações impostas ao exercício do poder, da privacidade e da proteção em face de um sistema coercitivo de controle sobre os valores e convicções pessoais. Esta ação, bem como a censura, jamais consistirá num recurso, numa sociedade livre, destinado à manutenção das liberdades de seus cidadãos defronte aos riscos de centralização e determinação das informações e diretrizes de cada pessoa. À supressão da livre iniciativa de opiniões e manifestações, mesmo quando ainda sutil e pequena, reduz-se também, como conseqüência necessária, boa parte de nossa liberdade civil.        

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Esquerda e sua Contradição: Qual o significado da atual Crise Brasileira?


Tornou-se praticamente um hábito, diante das instabilidades que atualmente assolam nossa vida civil, levar á cabo protestos que sejam capazes de expressar a reprovação acerca das medidas tomadas pelo governo Dilma, sejam ou não estas resultado de antigas idéias já defendidas por outros membros do Partido dos Trabalhadores ou até mesmo de outras legendas.

 Nesta panacéia de manifestações muitas vezes discordantes entre si, de discursos de grande força moral e retórica e de uma infinidade de críticas ao exercício corrente do poder executivo, uma estratégia finória de cunho fortemente ideológico, originária de certos grupos da sociedade civil, emergiu de forma súbita neste debate sócio-político.

 Esta estratégia, centralizada, sobretudo, sobre um discurso em certa medida oportunista e um tanto quanto irônico, consiste na polarização do espectro político direita-esquerda através de uma “endemonização” da atual chefe do poder executivo e sua equipe econômica, na qual o governo Dilma Roussef personifica com vigor um regime político reacionário e “de direita”. Sendo, para tomar de empréstimo um conceito elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, suas bases o ressentimento e o desagrado que se origina defronte à suposta subversão de ideais máximos por parte de outro grupo alinhado aos mesmos anseios, muitos dos que lhe concedem seu consentimento e devoção findam por não enxergam a grave contradição que se encontra presente no âmago de todo este discurso.

 A fim de desvelar os termos antagônicos que compõem esta posição, bem como a sutil inversão de realidade que é efetuada por este conglomerado de grupos menores, nos valemos aqui do conteúdo já expresso em diversos ensaios deste blogue, tais como “Miopia Ideológica”, “Impeachment? Reação Conservadora?”, “As Falácias da Esquerda face à crise atual” e ambas as partes de “Por que não devemos tributar Heranças, Lucros e Grandes Fortunas?”. Antes, no entanto, cabe precisar com mais minúcia as razões que levam aos doutos acima classificar como um horrendo modelo neoliberal “de direita” o atual governo Dilma Roussef.

 Segundo sua argumentação, as atuais políticas públicas de austeridade, as quais se estendem desde o corte de gastos públicos, benefícios trabalhistas e ministérios até a redução de recursos para programas sociais como “Minha Casa, Minha Vida”, se espelham em medidas postas em prática por outros governos considerados contrários aos ideais socialistas de proteção da classe proletária, de justiça social e de combate ao lucro e ao livre mercado. Frisam que tais políticas apenas servem ao interesse de grandes instituições financeiras em detrimento das reformas sociais necessárias e que a grande população, despossuída dos meios de produção, vê-se sumariamente prejudicada.  Em adição, por fim, tomam os projetos de ajuste fiscal promulgados nestes contextos como outro – o mais digno de réprobo - instrumento de opressão das parcelas mais desprivilegiadas.

 Contra esta visão cabem alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, não há apenas um único modelo de políticas de austeridade. Com efeito, é lugar comum afirmar que aquilo que denominamos de “política de austeridade” consiste numa série de medidas ou reformas de contenção de gastos destinadas ao combate da recessão econômica advinda de causas múltiplas. A retomada do crescimento econômico, neste sentido, é quase sempre o objetivo primordial destas medidas e muitas são as ações idealizadas nestes tipos de contexto.

 Todavia, faz-se crível condensar estes modelos diversos em quatro tipos principais de austeridade: o corte de gastos públicos e a elevação de impostos; a manutenção das despesas públicas e a elevação dos tributos; a manutenção dos impostos nos níveis atuais e o corte de gastos públicos e a redução tributária acompanhada de um corte vigoroso das despesas do Estado. Em termos de recessão econômica e impactos diretos sobre a sociedade, as duas primeiras formas de austeridade conduzem ao agravamento das condições de vida do cidadão e da economia como um todo. Por um lado, o arrefecimento de parte dos gastos públicos reduz, de certa forma, as esferas de intervenção estatal na economia, porém o confisco de capital, principalmente do setor produtivo, acarreta direta e negativamente na redução dos níveis de produção e no aumento das taxas de desemprego.  Por outro, manutenção da irresponsabilidade fiscal do Estado e a elevação dos impostos conduz à estagnação e posterior declínio da economia. O capital da sociedade, responsável por seu crescimento, continua sob confisco, ao passo que os gastos públicos apenas mantêm a ineficiência estatal e os problemas de infra-estrutura que se encontram em seu seio. As atividades econômicas tornam-se cada vez mais subservientes e dependentes do Estado, o qual progressivamente tende a regular ainda mais as atividades dos indivíduos.

  Em segundo lugar, o que se deve extrair deste resumo, contudo, é a simples constatação de que, de forma análoga à inexistência de um modelo único de políticas de austeridade, estas não se restringem aos governos adeptos à aplicação dos princípios do capitalismo de propriedade privada e de livre concorrência. O que o último século nos demonstrou, particularmente nas experiências que tiveram lugar na Europa ocidental e nos Estados Unidos, é que a prática de contenção de gastos e de reavaliação dos tributos fez-se presente tanto no projeto americano New Deal – embora se deva fazer a ressalva que a economia estadunidense à época estava longe de um regime de livre concorrência -, quanto, por exemplo, na França sob a tutela do socialista Mitterand ou no Reino Unido de diretrizes sindicalistas, antecessor à era Thatcher.

 Esta observação é tanto mais importante porque nos permite compreender com maior clareza e argúcia o fato de que, em termos de modelo de austeridade, hoje, no Brasil, nos deparamos com medidas que restringem com maior rigidez a liberdade econômica e a condução das atividades privadas dos indivíduos segundo seus próprios interesses. O livre mercado, se em tempos precedentes sofreguidamente mantinha-se vivo, atualmente extinguiram-se-lhe ainda mais os âmbitos da esfera econômica nas quais sua operação pode ser observada. A intervenção estatal em nossa economia atingiu índices altíssimos, e a contenção moderada de gastos, através do corte orçamentário tímido das despesas da União, juntamente com os projetos de elevação de tributos e possível implantação de taxação progressiva de renda, correspondem, certamente, a uma visão keynesiana da economia política, cujos princípios e objetivos estão em diametral oposição à doutrina do liberalismo econômico. Um ajuste fiscal que tenha apresentado, como um de seus pilares, um projeto orçamentário para 2016 que prefigurava um déficit primário de quase R$ 30,6 bilhões de reais enaltece com justeza o valor quiçá máximo desta visão keynesiana e que compreende o discurso socialista: o Estado é o criador por excelência da riqueza econômica.     
Retornando, agora, à posição dos grupos mencionados no início do presente ensaio, resta-nos introduzir o leitor no aspecto contraditório e irônico de toda esta confusão.

 Não fosse suficiente classificar com extremo descuido as condições políticas e econômicas atuais, tendo como base uma estratégia de polarização, moral e política, de posições ideológicas, ocorre ainda que os venerandos senhores desta esquerda se esquecem dos fatores que contribuíram para o execrável estado em que nos encontramos. De fato, é indubitável que nos últimos 13 anos a política econômica nacional foi determinada e conduzida segundo os princípios de combate à pobreza e à desigualdade entre ricos e pobres. Porém, a manutenção de amplos programas sociais de distribuição de renda exige um controle maior sobre as atividades econômicas dos indivíduos, onde a redistribuição de renda, para ser efetivada segundo um planejamento prévio, demanda, por seu turno, um complexo aparato de captação de recursos via taxação e regulação de certos preços e salários. Todo este sistema burocrático acarreta à longo prazo, além da eliminação das condições de livre concorrência, na elevação de preços de bens intermediários e produtos finais, no encarecimento da produção, no crescente sucateamento de boa parte da infra-estrutura produtiva, na queda do consumo e na desaceleração progressiva do crescimento econômico. Os efeitos colaterais deste dirigismo central sobre boa parte da esfera econômica também se fizeram sentir no campo político, onde os escândalos de corrupção evidenciam a utilização de empresas estatais como instrumentos políticos e a fragilidade da sociedade civil em face da alta concentração de poder e recursos no Estado.

 A grave contradição da esquerda brasileira - sem levar em consideração, neste preciso momento, as divisões internas entre os diversos grupos que compõem a ala socialista – consiste, deste modo, em não tomar nota de que são, justamente, a busca política pela justiça social e pelo bem comum as causas para as crises instauradas em nossa República. E ainda em contrapartida ao o que advoga, a elevação de tributos e manutenção de gastos governamentais não representam, de forma alguma, uma alternativa plausível à recessão que nos toma de assalto e que dá sinais de grave piora. Somente o quarto modelo (redução drástica de tributos e despesas governamentais) apresenta uma forma de se fazer austeridade compatível a um governo liberal e “de direita” e capaz de retomar o caminho do crescimento, porquanto limite as esferas de ação do poder político e devolva a autonomia essencial ao dinamismo das atividades econômicas. Mais do que isso, ousamos afirmar que é através da implementação dos princípios da doutrina liberal que a salvaguarda da estabilidade de nossas instituições políticas, bem como dos direitos individuais responsáveis pela limitação do escopo de ação de um líder político que se pretenda tirano, se faz sólida como lhe exige uma sociedade livre.    

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Financiamento Público de Campanha: Ameaça à Liberdade


Vimos recentemente que, através de 8 votos favoráveis à proibição de doações de pessoas jurídicas a campanhas e candidatos, o Supremo Tribunal Federal tornou ilegal o financiamento privado-empresarial das campanhas políticas, restringindo, deste modo, sua operação á utilização majoritária dos recursos oriundos de cofres públicos e de pessoas físicas.

 A despeito do êxtase que tal decisão pareceu suscitar em grande parte dos grupos políticos representativos brasileiros, este veredicto não deixa de provocar, por outro lado e segundo outra visão de análise dos fatos correntes, grande preocupação quanto à solidez e valorização da liberdade dos cidadãos nesta República.

 Sem embargo, munidos principalmente da exposição apresentada em ensaio precedente, intitulado “A Função Política da Corrupção”, dedicaremos este ensaio à análise e posterior refutação dos princípios que advogam em favor do financiamento – exclusivamente ou não – público de campanhas eleitorais, conforme aventado no cenário político brasileiro. Mais notadamente, colocaremos sob análise as seguintes premissas: o financiamento público de campanhas, na medida em que restringe a ingerência privada sobre os processos de sufrágio, concorre para o funcionamento efetivo de uma democracia, assegurando a liberdade dos indivíduos e dos grupos que a compõem e a igualdade de condições entre os partidos que competem entre si para conquista do eleitorado; e a proibição das doações de empresas, grandes ou pequenas, venerandas ou de pouca monta, possibilita ao aparato estatal sua salvaguarda frente à corrupção e aos esquemas de propinas que envolvem lobistas e grandes empresários.

 Com efeito, no que concerne exclusivamente à primeira premissa, lançamos mão da ressalva segundo a qual uma República legítima, cuja finalidade consiste na liberdade de seus concidadãos, deve fundamentar-se, sobretudo, no direito “inalienável” da escolha, sem constrangimentos impostos por terceiros, do governante por parte de todos os eleitores. Em consonância aos valores e conteúdos presentes no conjunto das liberdades individuais, a partir do qual, no presente contexto brasileiro, a liberdade de pensamento, expressão e escolha constituem pedra fundamental de nossa Magna Carta, é legítima, lícito e legal que qualquer individuo, independente de suas qualidades morais e físicas possa emprestar seu livre consentimento á opinião ou posição que lhe é favorável  e resignar-lhe o empréstimo quando as posições de seu destinatário destoam dos princípios que lhe governam.

 Neste sentido, no caso de uma eventual implementação do financiamento exclusivamente público de campanhas, não se concederá ao pagador de impostos a livre escolha quanto ao destino de seus recursos. Não far-se-á possível para o cidadão escolher, dentre o quadro geral de partidos concorrentes, a qual o grupo político tem por interesse direcionar univocamente os recursos obtidos com base na tributação de suas atividades. Os impostos oriundos destas taxações apresentarão como resultado o financiamento de partidos ideologicamente contrários ao consentimento de cada cidadão e, por conseguinte, a violação da liberdade de escolha dos eleitores, uma das liberdades individuais mais essenciais a um regime que se queira livre.

 Em consonância a este argumento, acrescentamos, em menção à igualitarização das condições de disputa entre os partidos concorrentes, que medidas direcionadas à igual distribuição de recursos entre estes grupos exigem estruturas coercitivas que possam viabilizar seu isolamento defronte à iniciativa privada e conduzir suas diferentes posturas durante as disputas políticas. Estes novos aparatos não apenas demandariam ainda mais receita sobre os pagadores de impostos, como, forçosamente, nos levariam a uma deturpação das vontades dos cidadãos: consistindo o sufrágio e o debate político livre nos meios através dos quais a representação política ganha forma e legitimidade, carece de sentido e “benevolência social” o ato de distribuir de forma igual recursos oriundos de cidadãos com pensamentos e posições ideológicas distintas. Tal estratégia autoritária não faz senão, por um lado, tornar ineficiente a concorrência de partidos – o número cada vez maior de adeptos e apoiadores de um determinado grupo não se reflete no crescimento de seu poder de influência e de competividade face aos demais grupos – e, por outro, tornar publica e totalmente falsa a interpretação do eleitorado acerca das ideias propostas numa eleição.

 Para a situação onde apenas a participação de pessoas jurídicas é coibida têm-se, também, os mesmos problemas. Grandes corporações e pequenas empresas encontram animosidade ou complacência com medidas políticas e econômicas. Proibir a manifestação daquelas é semelhante a impedir que possam esforçar-se ou apoiar iniciativas que visam à criação de condições satisfatórias à sua sobrevivência. Proibir sua manifestação constitui atitude tão contrária à liberdade quanto o financiamento exclusivamente publico de campanhas.

 Já no que tange à segunda premissa apresentada, pelo fato de que a concentração de poder e recursos nos órgãos que detém em si o uso legítimo da coerção tornam mais factíveis a corrupção e a concessão espúria de privilégios, não há mais garantias de que a imparcialidade nas decisões do Estado poderá permanecer. A tomada de decisão sobre o destinos dos recursos obtidos com a tributação não refletirá o real interesse dos cidadãos, porquanto anseios excessivos pela manutenção do poder e de sua extensão possam conduzir ao desvio do montante reservado ao financiamento das eleições segundo planejamento previamente estipulado.

 De forma análoga, os mecanismos existentes destinados à fiscalização de receitas públicas ver-se-ão enfraquecidos diante do resultante aumento da burocracia e da consequente redução das esferas de dissensão dentro do próprio aparato governamental. Esquemas de propinas e conluios entre empresários e chefes políticos se tornarão cada vez mais presentes, assumindo uma dimensão destrutiva ainda mais significativa. Privilégios e monopólios serão concedidos às escuras, por vias ilegais e fraudulentas. A própria democracia verá engrandecido o risco de subverter-se em tirania.      

 Com tudo isto, estabelecemos que o financiamento exclusivamente público de campanhas eleitorais nos representa mais um espesso grilhão para nossa servidão política. Liberdades fundamentais, como o direito de apoiar e reprovar este ou aquele partido, terão suas dimensões reduzidas, e os momentos mais importantes de decisões políticas populares correrão sério risco de desestimular justamente o interesse político dos cidadãos. E, mesmo sob a hipótese de proibição solitária da participação de pessoas jurídicas em campanhas eleitorais, sem restrição igual do financiamento oriundo de pessoas físicas, problemas como a corrupção, em contrapartida aos resultados esperados, tenderão a manter os atuais padrões já apresentados. Esta conclusão depreende-se, em suma, da consciência de que o desvio de recursos públicos para fins não-públicos não resulta da participação da iniciativa privada em certos âmbitos governamentais. Antes, esta conclusão encontra origem na inconteste ausência de liberdade econômica e liberdade política que constituem o atual cenário sócio-econômico brasileiro. Resta, portanto, compreender que as reformas estruturais necessárias no âmbito político não nos devem conduzir a mais uma perda substancial de liberdade em nossa República. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A Função Política da Corrupção

 Tornou-se tema recente dos noticiários nacionais a apuração das investigações da operação Lava Jato, cujas descobertas, que se nos apresentam até o momento infelizmente incompletas, denunciam um amplo esquema de corrupção envolvendo a maior empresa estatal do país.

 Sem dúvida o maior escândalo de corrupção em toda nossa história, tanto no que diz respeito às dimensões do espólio, quanto às repercussões resultantes, o “Petrolão” nos traz à tona a existência de um fragoroso sistema de propinas, desvio de dinheiro público, formação de cartéis, financiamento ilícito de “caixa 2”, composto por profissionais das mais diferentes áreas.  

 A corrosão moral que parece efluir de toda esta inveterada tragédia envolvendo uma quantidade insondável de dinheiro público aumenta à medida que as investigações avançam e novos suspeitos são adicionados à lista das personalidades investigadas. É certo afirmar que boa parte de nossa crise atual, tanto econômica quanto política, encontra suas bases neste imbróglio de relações de influências política e privada. Não se faz forçoso afirmar que o rebaixamento, pela agência Standard & Poor’s, da nota brasileira em seu índice soberano de crédito decorre em parte da queda vertiginosa de prestígio da Petrobrás e da denúncia de sua gestão pública parcial e fraudulenta. O mesmo se pode dizer quanto à queda de popularidade da atual presidente em exercício e os severos problemas de governabilidade dela oriundos, para a qual se podem atribuir os mesmos fatores.

 Sendo tudo isto, indubitavelmente, digno de nota é, não obstante, sumamente importante apontar, nesta reflexão, outro fato que se sobressai à vista e direcionar a atenção do leitor para este aspecto que, em regime política algum, deve ser desprovido de suas legítimas considerações.

 Desde o início do Brasil Independente – e, talvez, até mesmo em épocas precedentes – é qualidade intrínseca de nosso corpo político a concentração de poder no aparato do Estado. Com uma das maiores cargas tributárias do mundo, construída ao longo de muitos anos, não faltam recursos ao detentor do monopólio da coerção física para a aplicação dos mais diferentes projetos e ideais. Na esteira deste processo, as liberdades individuais, que restringem necessariamente as esferas de ação do poder político e civil, apenas em tempos recentes ascenderam ao relevo das reflexões sociais em nosso meio. A repressão do poder público sobre os cidadãos, fosse o primeiro  constituído por elites cafeicultoras ou militares, esteve sempre associada à concentração de recursos e instrumentos nos órgãos de execução da lei civil.

 Ao mesmo tempo, porém, muito em virtude dos discursos populistas do século passado e da extrema regulação estatal na esfera econômica, a asserção de que empresas públicas monopolizadoras de setores estratégicos de nosso país estão à serviço, única e exclusivamente, das necessidades primordiais do “povo” desenvolveu-se até atingir um caráter fortemente indelével. Não se poderia contestar a necessidade da gestão estatal das principais empresas do país, visto que, sob esta égide, a exploração destas atividades através da busca pelo lucro apenas furtaria aos cidadãos da República o uso dos bens produzidos em seu território, além, é claro, da exploração decorrente deste último tipo de gestão. A mais simples menção à privatização de companhias geridas por vias públicas era repudiada com ardor quase ufanista.

 Entrementes, os últimos exemplos de grandes esquemas de corrupção trazidos pelo “Mensalão” e “Petrolão”, bem como por outras denúncias da utilização indevida de recursos públicos promulgadas, ainda que por vias não jurídicas, a outros governantes e partidos, colocam em dúvida a eficiência não apenas do modelo estatal de produção de um bem ou serviço em face de um concorrente privado, mas realçam, sobretudo, a larga distância existente entre as eventuais boas intenções de um plano de governo e os resultados discordantes que são obtidos. Para esta realidade concorrem múltiplos fatores: a ausência de incentivos adequados por parte da gestão pública; a estonteante quantidade de tributos que muito corrobora para a queda de produção e riqueza; a ausência de transparência nas contas do governo; a facilidade, com os recursos obtidos e com a ingerência sobre instrumentos de fiscalização, da criação de estratagemas de propinas e financiamento ilícito de campanhas; a dificuldade em estabelecer cálculos precisos de determinação de preços e salários e a exigência cada vez mais frequente de captação mais ampla de receita.

 Fora, é claro, outras tantas causas que podem ser encontradas no âmago deste fenômeno, salientamos aqui a falsidade de se atribuir, como teoria que, via de regra, fundamenta o esmorecer da moralidade política na influência pérfida de empresas privadas sobre delegações políticas, ao âmbito privado a condição de propulsor deste vilipêndio dos bens públicos. Em forte oposição à esta visão, enfatizamos, conforme reflexões anteriores presentes em ensaios como “Ineficiência e Restrição”, que a ineficiência pública – serviços caros, ruins e demorados - decorre da própria essência do Estado e a corrupção é tanto maior e mais ampla, quanto é mais abrangente a quantidade de recursos nele direcionado e a maior é a restrição à concorrência de iniciativa privada em diversos âmbitos de produção. Ainda mais, nos baseamos na expressão segundo a qual a corrupção, e outros atos de imoralidades semelhantes, tem sua origem antes no próprio indivíduo do que em instituições privadas ou públicas.

 Com tudo isto já teríamos razões para nos defrontarmos com o malogro de qualquer regime civil que não escolha prescindir dos meios necessários à consecução dos ideais de um Estado forte e regulador. A expansão dos instrumentos de poder em posse dos aparatos coercitivos estatais apenas viabiliza em grande medida a extensão do poder público sobre a sociedade civil e os cidadãos que nela residem.

 No entanto, e é esta a função que atribuímos ao presente ensaio, faz-se deveras necessário enfatizar o anseio pelo poder como um fim em si mesmo como um fenômeno que, se não decorre de um Estado inchado e regulador, encontra-se-lhe fortemente associado. Tal como é descrito na petição em prol do impeachment da presidente Dilma (http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/a-integra-do-pedido-de-impeachment-de-dilma-apoiado-pela-oposicao/), a obsessão do Partido dos Trabalhadores pela manutenção à todo custo do poder em suas mãos pôde legitimar as finalidades, quaisquer que estas possam ser, a despeito dos meios empregados para a sua conquista. O perigo já anunciado há séculos por pensadores liberais e conservadores no que tange à arbitrariedade do governo decorrente da retirada das limitações a ele impostas pelas liberdades econômica e política reflete-se na invalidez das normas legitimamente constituídas para assegurar a previsibilidade da ação governamental e individual e para salvaguardar os cidadãos de um eventual poder tirano, autoritário e excessivamente parcial e coercitivo nas decisões que venha a tomar sobre as demais esferas que constituem uma República.


 A atual crise política evidencia, acima de tudo, o hábito, recorrente em nossa história, de conceder à esfera pública a decisão última sobre grande parte das atividades que compõem seu conjunto. As tragédias que se imiscuem em seu seio, tais como a instrumentalização das empresas estatais em favor da manutenção do poder, não devem dissimular o fato de que a virtual deposição do chefe do poder executivo em exercício não produzirá seu efeito desejado caso profundas alterações estruturais em nossa forma de “fazer política” não sejam efetuadas no futuro. É interessantíssimo notar como a tomada de consciência sobre todo este fenômeno parece, pouco a pouco, ganhar força neste cenário. Mas não nos é permitido esquecer, contudo, que a alternativa mais eficaz à nossa crise de condução dos negócios públicos consiste, em última análise, na conquista de amplo espaço para o exercício das liberdades individuais.   

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A CPMF e a Repressão Política


 Dadas as presentes atribulações políticas e econômicas com as quais o cidadão comum se depara em todo o Território Nacional, não resta exagero ou excesso em indignar-se contra a manifestação recente de Joaquim Levy e Dilma Roussef a respeito da restauração da Contribuição Provisória de Movimentação Financeira – CPMF, onde os prognósticos correntes nos levem a crer, sobretudo, nos agravos que este novo velho tributo pode engendrar na situação atual.  

 À bem da verdade, no entanto, mesmo que estivéssemos em condições, senão diametralmente opostas, pelo menos muito mais favoráveis à atividade econômica, o retorno deste imposto nos suscitaria sérias dúvidas quanto aos impactos positivos que poderiam decorrer de sua ativação. Novamente, não é enfadonho recordar ao leitor o caráter improdutivo que condiz às tributações, porquanto, além de encarecer processos e preços de produtos finais, não nos engendra resultados conforme os objetivos iniciais, ou seja, não produz necessariamente os resultados com o mesmo grau de qualidade e abundância que num primeiro momento se inserem em um projeto idealizado, cujo processo de concretude consiste na finalidade da tributação imposta. 


 Isto torna-se mais claro, com particular obviedade, no contexto brasileiro, no qual a tese liberal de que a administração pública é, em geral, tanto mais ineficiente e perdulária quanto mais se elevam os recursos concentrados na maquinaria à serviço do Estado. Com uma das maiores cargas tributárias do mundo – em torno de 40% do PIB nacional -, nossos serviços públicos são flagrante exemplo de gestão ineficiente, descuido, corrupção governamental e demanda imprópria de mais recursos. 


 Em todo este contexto, e trazendo à lume episódios históricos de deflagração de grandes revoltas e lutas armadas a partir do excesso de certas espécies de impostos, onde a Revolução Americana e a Inconfidência mineira são, talvez, os exemplos mais conhecidos, trago ao crivo do leitor a reflexão presente no escopo da doutrina defendida e amada pelo criador deste blog no que tange à estreita relação entre as liberdades política e econômica.

 Com efeito, desde o intróito da tradição liberal clássica, vê-se a impossibilidade de separar ou restringir o efeito de certas ações públicas ao campo em que é praticado. Adam Smith, ao longo de sua obra, ao situar no trabalho a origem da riqueza, associa a este princípio a necessidade da divisão do trabalho, da organização privada e descentralizada da produção como medida necessária à eficiência e aos ganhos de produtividade. De modo semelhante, esta organização da atividade econômica, fundamentada, sobretudo, nas concepções do individualismo e da livre concorrência, deve necessariamente coincidir com a descentralização do poder e com a restrição das esferas de ação dos meios coercitivos colocados à disposição da esfera pública. Em contrapartida, a mera tentativa de coibir ou refrear a ação individual através do controle coercitivo sobre os métodos de produção e/ou sobre a distribuição das riquezas produzidas segundo certo padrão previamente definido exige, concomitantemente, a expansão dos poderes concentrados em vias públicas e a conseqüente redução de liberdades políticas individuais. Por conseguinte, o binômio liberdade econômica-liberdade política encontra a fundamentação de sua indissociabilidade na partilha comum de certos valores que se faz necessária ao bom funcionamento do corpo civil enquanto conjunto unitário. 


 Na teoria política de John Locke, por seu turno, o aspecto de restrição das esferas de ação legítima do corpo político adquire uma delimitação mais precisa através da proclamação dos direitos naturais e da separação dos poderes que constituem o corpo civil. Os indivíduos, livres e iguais por natureza, ao abandonarem o estado natural em que se encontram, constituem o governo civil, cuja finalidade máxima consiste na elaboração de um rígido corpo normativo e num poder coercitivo legítimo destinado à resolução de litígios envolvendo as propriedades de diferentes cidadãos. Para tanto, as funções legislativa e judiciária deste mesmo corpo são realçadas e investidas de grande importância num sistema onde os precedentes direitos naturais, em especial os direitos à vida e à liberdade, se transformam em direitos políticos assegurados pela lei civil. Neste contexto específico, a tirania é estabelecida no momento em que o representante deste governo assume funções que se reservam aos demais poderes ou influi na execução do poder coercitivo legitimado pela lei civil, onde a decisão sobre as contendas entre os cidadãos despoja-se de seu caráter de imparcialidade e concede ao órgão decisório a qualidade tirânica de conduzir aspectos da vida privada de cada cidadão, antes resguardas à esfera da soberania individual.   

  Através de obras elaboradas em séculos distintos, ambos autores, precursores do liberalismo econômico e político que em breve se expandiria com vigor acentuado por todo o Ocidente, de antemão conferem vida, portanto, a um novo sentido nas interpretações então existentes sobre a razão de estado: a indissociabilidade entre liberdade econômica e liberdade política, e a conseqüente supressão de valores tomados como democráticos quando tem lugar a supressão dos elementos constitutivos da organização liberal das atividades econômicas. Mais ainda, sem deixar de levar em consideração todas as demais contribuições – não menos importantes – liberais e conservadoras promovidas ao longo de decênios e épocas seculares, chega-se à afirmação, corroborada e sustentada pela experiência histórica, da necessidade de conceder à esfera das atividades econômicas a mais ampla independência possível, em conformidade com os princípios gerais do Direito formal, em relação ao poder político. Porque erigida sobre o princípio segundo o qual a livre concorrência é o método mais eficiente de organização das atividades econômicas ao abrir mão do uso da coerção para promover o ajuste das diferentes e múltiplas vontades humanas, a liberdade, tomada no sentido da busca, isenta de constrangimento ou coerção de terceiros, dos objetivos individuais a partir da disposição soberana dos recursos que os indivíduos possuem ao seu alcance, constitui-se no valor máximo que deve orientar as ações de qualquer corpo civil.  


   Fazendo-se menção, novamente, às insurreições políticas e sociais que possuem como forte exemplo a revolução americana e a inconfidência mineira, nota-se o forte poder deflagrador de sedição das restrições à liberdade econômica que são impostas por medidas taxativas e reguladoras. Todas as formas de tributação discriminatória que se levem a efeito com a finalidade de conduzir, conscientemente, as atividades econômicas e políticas segundo determinado fim coletivo constituem um tipo de coerção dissimulada que pode variar em seus graus de gravidade e ingerência, mas nunca em sua natureza. 


 O âmago desta reflexão consiste, doravante, na tomada de consciência sobre os riscos à comunidade civil representados pela submissão do campo das atividades voltadas à livre satisfação dos anseios humanos ao órgão que, por sua própria definição, concentra em si todo o poder coercitivo e seus instrumentos. O simples fato de que se possa conceder ao poder executivo a decisão sobre os fins a que deverão servir os resultados produzidos por cada cidadão incorre, necessariamente, na negligência em face da criação de mecanismos que restringem direitos individuais e políticos e na progressiva perda substancial da liberdade. 


  Assim, o contexto com o qual nos deparamos atualmente revela não apenas uma avassaladora regulação no campo das atividades econômicas. A altíssima carga tributária, a má utilização de recursos públicos e a utilização de empresas estatais como instrumento de poder político evidenciam, por um lado, a evasão cada vez maior dos poderes individuais de dispor livremente dos próprios recursos na consecução dos próprios planos e, por outro, a desinibida arbitrariedade das medidas propaladas pelo poder executivo nos últimos anos em prol de uma ideologia falha e atávica e como forma de assegurar, a todo custo, o controle dos meios coercitivos. A CPMF, que resulta da completa incapacidade governamental de propor e levar adiante o ajuste fiscal das próprias contas da União condiz, tragicamente, com a previsão de que, por meio de sua aplicação, o estado corrente de nossa organização político-econômica terá a degradação de sua saúde acelerada. A CPMF se nos apresenta como mais um passo a na direção insustentável da repressão estatal sobre o âmbito privado de cada um de nós e da criação de um grande despotismo político instituído sob as vestes da democracia. Se medidas efetivas no sentido de redução de tributos, descentralização da atividade econômica e drástica abstenção governamental sobre a condução dos assuntos econômicos não forem promovidas, estaremos muito próximos de uma penosa calamidade civil e política.