"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A Tragédia Repúblicana

Há poucas horas o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva veio a público, durante encontro com grupos sociais de agricultores, oferecer defesa à atual presidente em exercício, Dilma Roussef, defronte às acusações de irresponsabilidade fiscal que emanam da oposição, dos meios de comunicação e dos cidadãos comuns deste país.  

 Encontrando-se em vigência a investigação acurada, seguida de reprovação ríspida de qualquer situação ou contexto que pareça, ainda que debilmente, consistir em ato de corrupção, vimos a recomendação, na semana anterior, por parte do Tribunal de Contas da União pela reprovação das contas da campanha eleitoral da presidente quando candidata em 2014. Segundo o órgão, os tesoureiros e administradores dos recursos da União, sob a conivência de Dilma Roussef, incorreram nas chamadas “pedaladas fiscais”, onde o repasse obrigatório de recursos do Tesouro a Caixa Econômica Federal, ao Banco do Brasil e ao BNDES foi postergado em virtude da manutenção de programas e privilégios sociais. Estas últimas instituições viram-se, deste modo, delegadas ao levantamento de seus próprios recursos para a quitação dos rombos milionários deixados pela União.

 Face à esta situação, que progressivamente se configura numa rejeição total da imagem da presidente e pode originar a deposição de seu mandato e poderes, Lula optou por tentar dirimir as consequências negativas deste mais novo escândalo protagonizado pelo TCU. Em um discurso com vistas a aglutinar forças e lados dissidentes quanto à atual gestão petista do poder executivo, o ex-presidente reafirmou a necessidade de se furtar aos ataques perpetrados pela oposição, frisando que há ainda há, ao alcance de sua legenda, meios suficientes para a saída da crise atual. O que, no entanto, mas suscitou indignação em sua fala consiste na afirmação, pretensamente ingênua, de que, se assim agiu, Dilma levou adiante as pedaladas fiscais com o intuito único de manter os programas sociais do Bolsa Família e do Minha Casa, Minha Vida.

 Óbvio está que esta afirmação, apesar de perdulária, apresenta um dúbio conteúdo. Primeiramente, se a asserção acima causa estranheza a qualquer cidadão consciente do que atualmente se passa nas instituições políticas, econômicas e cívicas que lhe rodeiam, não é exagero, todavia, afirmar que esta não é desprovida de sentido. Com efeito, as pedaladas fiscais foram tomadas em consonância à finalidade de arrecadar votos e fidelizar eleitores quando o déficit público e o endividamento dos cofres do Tesouro já se sobressaíam e colocavam em risco os programas sociais do governo. O receio de que se perdesse o poder assombrou de tal modo seus detentores e toda a coligação aliada que considerações éticas e legais não se impuseram na tomada de decisões sobre as medidas necessárias para a aquisição de votos. Em adição, Lula não apenas consentiu – em tom semelhante a uma confissão – com as atuais constatações públicas acerca das contas da campanha de sua apadrinhada, como também levou-nos a crer que os tais programas sociais, mais do que fundamentar e estender benesses às parcelas mais pobres da população brasileira, tinham função primordialmente política.

 Em segundo lugar, conforme já havíamos enfatizado no ensaio “A função política da corrupção”, com esta frase se torna legítimo tomar o atual escândalo de corrupção como uma tragédia republicana, possivelmente sem precedentes em nossa história. Muito mais do que o desvio ilícito e oculto de recursos públicos para a satisfação de demandas privadas de funcionários públicos, políticos ou empresários apoiadores do governo, o “Petrolão” e seus desmembramentos atualmente em curso nos apontam distintamente para a prática pérfida da perpetuação sem escrúpulos do poder político e dos instrumentos de coerção: quantias insondáveis de dinheiro espoliadas do erário tiveram por finalidade financiar campanhas, comprar votos, fornecer privilégios, estabelecer alianças, enquanto o estado real da economia do país deteriorava-se sem que a isso nossa presidente e seus aliados se detivessem com a merecida atenção.

 Os esforços levados a cabo para que o poder se mantivesse sob seu desígnio apenas revelou o fratricídio do Estado Democrático de Direito, pois a Lei, soberana e superior até mesmo ao mais alto cargo administrativo, esvaziou-se de seu significado, sendo usurpada e substituída pela arbitrariedade do governante tornada a nova lei, o novo critério de decisão e valoração das ações passadas e vindouras.   

 Sem muito esforço, desconfia-se e até observa-se certo tipo de coerção do poder executivo sobre as demais Casas. Táticas de intimidação e ameaça sobre o TSE ou sobre o STF, juntamente com o fornecimento de propina em troca de apoio político cego e indistinto constituem sintoma de desfalecimento das principais instituições da República, assim como colocam em dúvida se há de fato, no sistema político brasileiro, uma real divisão de poderes. Desconfia-se até mesmo da validade das últimas eleições, onde rumores despontam a respeito de processos fraudulentos durante as campanhas eleitorais. Se nota, principalmente, que a democracia nos parece ter sido subtraída por um poder tirano, adulador das massas e rancoroso de nossos valores da propriedade e autonomia.

 Por fim, assistimos hoje a uma verdadeira tragédia das instituições que compõem nosso corpo civil, e cujas finalidades deveriam servir à manutenção de nossa liberdade. Com tudo isso, torna-se assente, sobretudo, o aspecto falido de uma retórica populista voltada ao apelo pelo combate à desigualdade e à pobreza. Programas sociais tais quais os mencionados acima são também responsáveis pela deterioração presente da economia, onde o cidadão pobre, afastado das grandes oportunidades e do acesso a uma qualidade de vida melhor, sorverá o principal fruto amargo e indigesto deste regime. Reformas de certa forma radicais, além de uma liderança política sisuda e sábia, fazem-se mais do que necessárias se é objetivo comum a restituição da República e a solidez das liberdades individuais que lhe são resultantes. A tragédia republicana, talvez a maior de nossa história, desenrola com furor e se nos toma de assalto, enquanto, receosos, lutamos e para que uma sociedade livre enfim tenha lugar neste país chamado Brasil. 

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