Tal medida, que condiciona a investida apenas ás
ações voltadas ao combate à dengue e à chikungunya, tem por objetivo conter e impedir
a proliferação do mosquito aedes aegypt,
e servirá de ferramenta a esta luta sanitária nos próximos meses, os quais, em
virtude de maior incidência de chuvas e aumento da umidade, oferecem condições
meteorológicas propícias à reprodução do mosquito.
As previsões negativas que surgem com a
aproximação dos tempos úmidos e quentes, feitas com base nos surtos de dengue
que no último verão assolaram quase todo o território nacional e na fragilidade
da infra-estrutura sanitária e médica que nesta oportunidade tornou-se
evidente, sugerem que, salvo em caso de um planejamento eficiente e organizado
levado a cabo pela autoridade pública, uma nova epidemia se estabelecerá nos grandes
centros populacionais. Medidas drásticas, deste modo, tornam-se razoáveis se se
adequarem á finalidade para a qual são direcionadas.
Isto, contudo, carece de
qualquer aspecto de bom senso ou consideração estratégica razoável se
examinarmos o raciocínio que lhe confere sustentação, visto que, se colocado
sob análise, todo esta ação resume-se numa prática, mais do que ilegítima,
ineficiente.
De fato, a proliferação do mosquito e o conseqüente
aumento dos índices de contágio das doenças mencionadas decorrem do acúmulo de
água limpa e parada. Vasos com plantas, pneus, caixas d’água, vasilhames e
muitos outros recipientes, se objeto de descuido de seus respectivos
proprietários, propiciam o acúmulo de água e de outras eventuais substâncias
que facultam a difusão destas e de outras doenças.
Indigno de questionamentos, acrescenta-se a
este ponto de partida a constatação de que o combate à dengue, posto em prática
principalmente através da conscientização pública dos cidadãos sobre os riscos
que envolvem o descuido com água parada e sobre as medidas necessárias para a
resolução deste quadro, provou-se insuficiente na conquista de suas metas. E
mesmo com o apoio de novas vacinas e recursos biológicos criados em
laboratório, chegou-se a conclusão de que há ainda muito para se fazer.
Não há,
no entanto, um sentido de necessidade lógica em auferir, deste diagnóstico, a “justeza”
da ação pública de entrar à força em residências e demais propriedades. Um dos
maiores problemas da metrópole paulistana consiste em sua infra-estrutura sanitária,
de saneamento e nos assentamentos ilegais ao longo da região metropolitana,
onde são flagrantes as péssimas condições de vida de seus habitantes. Com
obviedade se argumenta não ser fácil delimitar e isolar os principais focos da
proliferação do mosquito aedes aegypt,
porém, com igual acuidade se pode enfatizar que a pulverização de residências
não consiste numa medida de resolução efetiva de todo o problema.
Na capital e nas principais cidades que compõem
sua grande região metropolitana, são inúmeros os exemplos de descaso público. Resíduos
e lixo urbano se acumulam em ruas e avenidas; esgotos a céu aberto parecem
multiplicar-se na mesma velocidade com que competem para difundir doenças e
pragas; bairros periféricos sofrem com a péssima infra-estrutura sanitária,
onde seus moradores vêem-se forçados a conviver com roedores e animais
venenosos; prontos-socorros e hospitais – públicos e até privados – carecem da
estrutura e recursos médicos necessários para oferecer suporte a todos os que
necessitam.
Em grande parte destes casos, vale mencionar,
a burocracia estafante e a ineficiência estatal, aliada ao superfaturamento,
consistem em uma de suas principais causas. Impostos diretos e indiretos, que já
reduzem a esfera de liberdade de cada cidadão, tornam-se tão mais onerosos à
medida que se aponta como ação estratégia a ser tomada um processo dispendioso
de pulverização que não apresenta soluções para as verdadeiras deficiências da
cidade e que sempre serão criadouros para a dengue e outras doenças. E o quadro
tende a agravar-se enquanto, além de não oferecer as condições de proteção da
integridade física de cada cidadão, esta medida concorre para a violação do
direito individual de privacidade e inviolabilidade da moradia.
Cada indivíduo resguarda em si a livre recusa
em face do constrangimento de terceiros, e sua propriedade, seja esta a
propriedade sobre seu corpo, intelecto ou bens, não deve, de forma alguma, ser submetida
á decisão arbitrária do poder coletivo. A determinação para a entrada à força
em residências põe em risco a integridade de cada morador à medida em que não
estabelece com rigor as condições que viabilizam esta ação. Em posse de quais
documentos se reconhece sua legitimidade? Como determinar se de fato a equipe
que bate à porta é constituída de representantes do poder público, e não de
falseadores e criminosos? Como assegurar que a propriedade não sofrerá danos
por esta invasão, seja pela recurso à força, seja pelos efeitos das substâncias
tóxicas que são despejadas durante a pulverização? E, principalmente: quais estatísticas são
capazes de apontar que o ato da pulverização, consentida ou á revelia, contribui
com peso para o combate às causas e á disseminação do mosquito e de pragas
urbanas?
E, o que é talvez pior, não apenas a
integridade do indivíduo encontra-se combalida neste contexto. No atual momento
de crise econômica em que nos deparamos, a utilização dos recursos públicos de
forma coerente é cada vez mais necessária. A pulverização forçada esmorece com
mais vigor a tão amada liberdade, porquanto não realoque com sabedoria boa
parte destes recursos onerosos que são destinados ao combate à dengue e torne
lícita a invasão da propriedade. Neste imbróglio salutar de desperdícios e
medidas emergenciais, não restam garantias que nossos bens possam estar
intactos ou ainda existir quando, após um longo dia de atividades laborais,
retornarmos às nossas casas.
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