"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A Invasão da Propriedade no Combate à Dengue


Nesta segunda-feira, 05 de outubro, o prefeito da cidade de São Paulo Fernando Haddad sancionou lei, proposta pela câmara municipal dos deputados, na qual autoriza o uso da força para invadir domicílios cujos moradores não estejam presentes ou se recusem a permitir a entrada da equipe sanitária da prefeitura.

 Tal medida, que condiciona a investida apenas ás ações voltadas ao combate à dengue e à chikungunya, tem por objetivo conter e impedir a proliferação do mosquito aedes aegypt, e servirá de ferramenta a esta luta sanitária nos próximos meses, os quais, em virtude de maior incidência de chuvas e aumento da umidade, oferecem condições meteorológicas propícias à reprodução do mosquito.

 As previsões negativas que surgem com a aproximação dos tempos úmidos e quentes, feitas com base nos surtos de dengue que no último verão assolaram quase todo o território nacional e na fragilidade da infra-estrutura sanitária e médica que nesta oportunidade tornou-se evidente, sugerem que, salvo em caso de um planejamento eficiente e organizado levado a cabo pela autoridade pública, uma nova epidemia se estabelecerá nos grandes centros populacionais. Medidas drásticas, deste modo, tornam-se razoáveis se se adequarem á finalidade para a qual são direcionadas.
Isto, contudo, carece de qualquer aspecto de bom senso ou consideração estratégica razoável se examinarmos o raciocínio que lhe confere sustentação, visto que, se colocado sob análise, todo esta ação resume-se numa prática, mais do que ilegítima, ineficiente.

 De fato, a proliferação do mosquito e o conseqüente aumento dos índices de contágio das doenças mencionadas decorrem do acúmulo de água limpa e parada. Vasos com plantas, pneus, caixas d’água, vasilhames e muitos outros recipientes, se objeto de descuido de seus respectivos proprietários, propiciam o acúmulo de água e de outras eventuais substâncias que facultam a difusão destas e de outras doenças.

 Indigno de questionamentos, acrescenta-se a este ponto de partida a constatação de que o combate à dengue, posto em prática principalmente através da conscientização pública dos cidadãos sobre os riscos que envolvem o descuido com água parada e sobre as medidas necessárias para a resolução deste quadro, provou-se insuficiente na conquista de suas metas. E mesmo com o apoio de novas vacinas e recursos biológicos criados em laboratório, chegou-se a conclusão de que há ainda muito para se fazer.

 Não há, no entanto, um sentido de necessidade lógica em auferir, deste diagnóstico, a “justeza” da ação pública de entrar à força em residências e demais propriedades. Um dos maiores problemas da metrópole paulistana consiste em sua infra-estrutura sanitária, de saneamento e nos assentamentos ilegais ao longo da região metropolitana, onde são flagrantes as péssimas condições de vida de seus habitantes. Com obviedade se argumenta não ser fácil delimitar e isolar os principais focos da proliferação do mosquito aedes aegypt, porém, com igual acuidade se pode enfatizar que a pulverização de residências não consiste numa medida de resolução efetiva de todo o problema.

 Na capital e nas principais cidades que compõem sua grande região metropolitana, são inúmeros os exemplos de descaso público. Resíduos e lixo urbano se acumulam em ruas e avenidas; esgotos a céu aberto parecem multiplicar-se na mesma velocidade com que competem para difundir doenças e pragas; bairros periféricos sofrem com a péssima infra-estrutura sanitária, onde seus moradores vêem-se forçados a conviver com roedores e animais venenosos; prontos-socorros e hospitais – públicos e até privados – carecem da estrutura e recursos médicos necessários para oferecer suporte a todos os que necessitam.

 Em grande parte destes casos, vale mencionar, a burocracia estafante e a ineficiência estatal, aliada ao superfaturamento, consistem em uma de suas principais causas. Impostos diretos e indiretos, que já reduzem a esfera de liberdade de cada cidadão, tornam-se tão mais onerosos à medida que se aponta como ação estratégia a ser tomada um processo dispendioso de pulverização que não apresenta soluções para as verdadeiras deficiências da cidade e que sempre serão criadouros para a dengue e outras doenças. E o quadro tende a agravar-se enquanto, além de não oferecer as condições de proteção da integridade física de cada cidadão, esta medida concorre para a violação do direito individual de privacidade e inviolabilidade da moradia.

 Cada indivíduo resguarda em si a livre recusa em face do constrangimento de terceiros, e sua propriedade, seja esta a propriedade sobre seu corpo, intelecto ou bens, não deve, de forma alguma, ser submetida á decisão arbitrária do poder coletivo. A determinação para a entrada à força em residências põe em risco a integridade de cada morador à medida em que não estabelece com rigor as condições que viabilizam esta ação. Em posse de quais documentos se reconhece sua legitimidade? Como determinar se de fato a equipe que bate à porta é constituída de representantes do poder público, e não de falseadores e criminosos? Como assegurar que a propriedade não sofrerá danos por esta invasão, seja pela recurso à força, seja pelos efeitos das substâncias tóxicas que são despejadas durante a pulverização?  E, principalmente: quais estatísticas são capazes de apontar que o ato da pulverização, consentida ou á revelia, contribui com peso para o combate às causas e á disseminação do mosquito e de pragas urbanas?

 E, o que é talvez pior, não apenas a integridade do indivíduo encontra-se combalida neste contexto. No atual momento de crise econômica em que nos deparamos, a utilização dos recursos públicos de forma coerente é cada vez mais necessária. A pulverização forçada esmorece com mais vigor a tão amada liberdade, porquanto não realoque com sabedoria boa parte destes recursos onerosos que são destinados ao combate à dengue e torne lícita a invasão da propriedade. Neste imbróglio salutar de desperdícios e medidas emergenciais, não restam garantias que nossos bens possam estar intactos ou ainda existir quando, após um longo dia de atividades laborais, retornarmos às nossas casas.  

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