"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Golpe Democrático

  Num primeiro momento pode causar estranheza ao leitor o título deste ensaio, o qual associa numa única sentença dois termos considerados, na ciência política, como antagônicos e que exprimem sentidos de natureza diferentes. O autor assume, humildemente,  que talvez possa estar em vias de incorrer em ledo engano ao ultimar o termo, porém resguarda-se e lança-se mão de mostrar ao leitor as razões que o animaram por esta escolha.

 Com efeito, emprega-se o termo “golpe” à medida que visa, sobretudo, à deposição de um governante e chefe político por vias que não encontram legitimação institucional. De caráter abrupto e freqüentemente associado historicamente ao ponto de partida da instauração de regimes autoritários e despóticos, esta deposição é levada a efeito quando as regras constitucionais ou direitos políticos que conferem a legitimidade ou legalidade de certo corpo civil são tomados como empecilhos para os anseios de poder de um determinado grupo, partido ou colégio eleitoral. Neste sentido, o discurso fortemente crítico e polarizados aos adversários da luta política floreia-se com um senso ou noção de dever moral para com uma população de particularidades e características bem definidas - quer dizer, um senso moral que obriga seu detrator a tomar-se como o possível herói e protetor do povo, nação ou democracia real. Em resumo, o que bem caracteriza um “golpe” é a ação de tomada de poder resultante de meios não prescritos no códice legal de determinada organização e que, por isto mesmo, não se origina dos meios considerados legítimos por este ordenamento para a escolha do governante e para a condução dos negócios privados e coloca por terra o conjunto de forças escolhido de forma legítima pelo eleitorado ou pelo respectivo órgão legislativo.

 Em forte oposição ao conceito “golpe”, a democracia, que possui margem imensurável de discussões e controvérsias acerca de sua natureza, funções e condições de existência, enquanto regime político encontra seu fundamento no sufrágio e na decisão livre de seus cidadãos. Neste regime, a origem do poder reside no indivíduo, e é através da decisão da maioria do eleitorado, do sufrágio efetivado esporadicamente entre intervalos previamente definidos e segundo normas, direitos políticos e leis constitucionais asseguradas, que se constitui o poder executivo e boa parte dos magistrados que exercem funções importantes na administração deste corpo político e burocrático.  

 Nas formas de governo nas quais esta estrutura ascendente de poder é o fator determinante para a manutenção do poder político, as vias institucionais, representadas pelo aparato jurídico e pelas Casas do Legislativo, além de permitirem e garantirem que o verdadeiro poder resida e seja exercido em nome de seus cidadãos, detém em si a peculiaridade de constituir barreiras ao exercício das funções do representante do eleitorado e assim conferir uma esfera segura de independência, autonomia e liberdade a cada cidadão. Dentre as limitações ao chefe político que são estabelecidos por todo este aparato, o direito a cada um de possuir sua propriedade, orientar-se segundo seus próprios objetivos, valores e vontades, poder resguardar-se do constrangimento ou do uso ilegal da força por parte de terceiros e exprimir seu próprio pensamento são garantias fundamentais à sua manutenção. O direito formal, orientado segundo o intuito de promover a justiça por meio da imparcialidade nas decisões públicas , é também, aqui, o princípio orientador para que as condições da vida civil sejam mantidas e do qual diversas outras leis e máximas são deduzidas e afirmadas.

 Pois bem. Finalizado este percurso, necessário para as conclusões que hão de advir com este ensaio, mas que em pouco convergiu para atenuar o embaraço do leitor, introduzo o fato que me conduz a esta empresa: a reprovação ampla de boa parte dos partidos de esquerda no Brasil, em rede nacional, a um possível processo de impeachment da presidente Dilma Roussef, deposição esta considerada “golpe” e incentivada por uma direita anti-democrática e opressora.

  Afirmam estes grupos que a mera tentativa de depor Dilma Roussef viola a mais elementar condição da democracia: a soberania do povo. Candidata eleita em sufrágio legítimo, tem suas funções e poderes derivados do povo que a elegeu, e que nenhuma manifestação, grupo de oposição ou discurso contrário é capaz de tirar a legitimidade de seu governo. Por conseguinte, um processo de impeachment, ainda que conforme às jurisdições da constituição, não soa razoável à “vontade do povo”.

 Contra esta argumentação elejo os pontos a seguir – eis a razão deste ensaio -: como já dito inúmeras vezes em outras oportunidades neste blog, não é tão-somente o sufrágio que confere existência á democracia. Outros aspectos devem ser observados, pelos cidadãos e pelas estruturas de limitação às decisões políticas, para que um regime possa ser considerado como tal. Os direitos essenciais, políticos e civis devem ser assegurados; a corrupção, falta de transparência pública e as irresponsabilidades com as propriedades dos pagadores de impostos devem ser frontalmente combatidas. A constituição deve ser observada, e a liberdade de cada cidadão deve ser seu fim máximo.

 Quanto ao povo, vale ressaltar que tal conceito trata-se antes de uma figura de linguagem ou de um termo de inexistência real e sentido oblíquo. O que, de fato, assegura o resultado de uma eleição é a maioria dos votantes. As diferenças de convicções, valores ou opiniões, não importa a quais áreas estejam voltadas, entre os indivíduos que compõe todo este eleitorado é quase tão extensa quanto é numerosa a população brasileira. É impossível estabelecer qualquer senso ou característica unificante entre todos os cidadãos em termos de preferência, objetivos de vida ou interpretação da própria existência. A única qualidade que os une num único e inequívoco conglomerado organizado é o fato de pertencerem à República Federativa do Brasil.

 Assim sendo, a principal consternação do autor defronte à propaganda partidária das legendas mencionadas refere-se ao fato de estas serem coniventes, ao fim e ao cabo, com uma presidente e um partido que tiveram suas contas de campanha rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União, num forte indício de que recursos de vultuosa quantia foram retirados ilegal e ilegitimamente de uma empresa estatal para que alianças políticas fossem consolidadas e processos legislativos ou judiciários fraudados pela substituição da imparcialidade pelo alinhamento ideológico nos processos democráticos. Soa também desonroso ao autor uma certa defesa de um chefe executivo que promoveu um dos maiores calotes aos próprios bancos públicos, descurando por completo de qualquer responsabilidade fiscal e desrespeitando num grau assombroso o cidadão pagador de impostos que alimenta, muito contra a própria vontade, uma máquina estatal inchada e corrupta.

 Afigura-se trágico ao autor, por fim, o apoio concedido a um governo que manifesta animosidade e empréstimos de recursos financeiros a regimes ditatoriais latino-americanos e que age como se tivesse estado, todo este tempo, imune ou acima da própria lei que lhe serve de amparo e de limitação, utilizando por este meio as instituições da República para proteger e garantir todo seu poder político e reduzir com isto as nossas liberdades. Qualquer processo de impeachment que possa sobrevir no futuro, portanto, quanto a atual presidente não apenas é legal, visto que é prescrito em lei, como também faz-se legítimo, dado que até mesmo sua popularidade ou base moral esgotaram-se de relevância na disputa política. Tudo isto traz ao autor severas dúvidas quanto a realmente quem tem por anseio subverter a democracia e fazer do próprio arbítrio a medida de justeza de suas ações.     

Nenhum comentário:

Postar um comentário