No último dia 03 de julho, o Departamento de Proteção
e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça, decretou orientação técnica,
passível de multa em caso de descumprimento, pela qual veta a cobrança
diferenciada para homens e mulheres em casas noturnas, restaurantes e bares[1].
Festejada por alguns e criticada por outros, a
medida reacende um debate acerca da legalidade da prática da discriminação de
preços – agravada, neste caso, é claro, pela questão da discriminação de
gênero: conforme afirmou Arthur Rollo, secretário Nacional do Consumidor, esta
prática abusiva de mercado que preconiza “a utilidade da mulher como estratégia
de marketing é ilegal”, pois “vai contra os princípios da dignidade da pessoa
humana e da isonomia.”
Neste artigo, abordaremos os possíveis efeitos
da medida na esfera econômica, porquanto seja necessário analisar seus efeitos,
a longo prazo, em termos dos benefícios ou malefícios que possa trazer ao
âmbito do bem-estar.
Diagnóstico:
com qual cenário estamos lidando?
Em termos puramente
econômicos, podemos afirmar que o mercado de entretenimento noturno, onde a
prática de discriminação de preços por gênero é substancialmente mais comum,
caracteriza-se como um mercado de competição
monopolística, no qual existem diversos produtores responsáveis pela oferta
de produtos considerados similares, porém não idênticos. É possível classificar
tal setor como de competição monopolística ao ponderar que o conjunto de
serviços ofertados, por exemplo, por um estabelecimento como o pub irlandês O’Malleys[2] é
semelhante, porém diferente, do conjunto apresentado pela concorrente D-Edge[3]. Apesar
de similares, as características específicas, as identidades únicas de cada
casa fazem com que sejam atrativas a diferentes tipos de consumidores.
Uma característica importante na análise de
qualquer mercado monopolístico, cuja essência decorre do próprio modo de
funcionamento de um monopólio, refere-se ao fato de que cada produtor deste
mercado goza de um certo poder no momento de determinar os preços de seu
produto. Dado que a ambientação de uma casa de shows em particular pode ser
única e ímpar, a esta é possibilitada um alcance maior na determinação das
tarifas cobradas. Tal fenômeno ocorre simplesmente porquê, ausentes os
mecanismos existentes num cenário de competição perfeita, torna-se desnecessário
tomar o preço de mercado como dado: ainda que contando com poder de monopólio
relativamente pequeno, cada casa noturna pode, até certo limite, formar os
próprios preços sem se preocupar com a competição de seus concorrentes.
Neste cenário, dizemos que há uma alocação
ineficiente de recursos em virtude de uma falha de mercado, já que o preço
cobrado, superior ao custo marginal[4], reduz
a quantidade efetivamente consumida e opera como um fator essencial para determinar
a quantidade final a ser produzida. Neste caso, o preço mais elevado e uma
quantidade menor de um determinado bem afastam a produção do chamado ótimo social, medida na qual a
quantidade demandada de um bem iguala-se à quantidade ofertada do mesmo, sem
ocorrer, por isso, desperdício de insumos ou escassez de produtos.
Como esta falha de mercado pode afetar a
sociedade como um todo? Para responder a esta pergunta, podemos utilizar os
conceitos e medições introduzidos pela economia do bem –estar[5],
ramo das ciências econômicas que estuda como as tomadas de decisão dos agentes
econômicos resultam na máxima alocação eficiente dos recursos. Nela, dois
conceitos são fundamentais, a saber, os excedente do consumidor, que mede a
disposição máxima para pagar dos consumidores envolvidos no mercado menos o
preço efetivamente pago; e do produtor, o qual, por sua vez, estabelece a
medição do valor pelo qual os bens foram vendidos menos seus custos de
produção, ou seja, o lucro do produtor. Medido em unidades monetárias, quanto maior ser valor, maior é o bem-estar atingido com a atividade econômica.
Nesta análise, consideramos eficiente o
arranjo ou alocação de recursos que permite maximizar o excedente total, isto
é, a soma dos excedentes do consumidor e do produtor. Quando isto ocorre,
dizemos que as condições deste mercado maximizam o bem-estar dos agentes
envolvidos nas negociações e, indiretamente, de todos os outros agentes
inseridos nesta mesma sociedade.
A Discriminação
de Preços
A estrutura de mercado
monopolizada é considerada ineficiente, dentre outras razões, porque introduz
uma cunha, uma divisão entre os ganhos do produtor e o excedente do consumidor.
Dito de outro modo, o monopólio não é, em geral, um arranjo eficiente por não
conduzir o mercado à produção da quantidade socialmente desejável, ao preço
socialmente desejável pelos consumidores. Sua ação não conduz, portanto, à
maximização do bem-estar dos agentes envolvidos neste mercado.
Para ilustrar este processo,
considere a tabela abaixo. Nela estão demonstradas o preço que uma determinada
casa noturna cobra por entrada e a disposição que cada consumidor possui para
consumir este bem:
CONSUMIDORES
|
DISPOSIÇÃO MÁXIMA PARA PAGAR
|
PREÇO
|
PAULO
|
R$ 130
|
R$ 70,00
|
MARIA
|
R$ 130
|
R$ 70,00
|
JOÃO
|
R$ 100
|
R$ 70,00
|
CÉLIA
|
R$ 100
|
R$ 70,00
|
MÁRIO
|
R$ 80
|
R$ 70,00
|
GABRIELA
|
R$ 60
|
R$ 70,00
|
PAULA
|
R$ 50
|
R$ 70,00
|
MIRIAM
|
R$ 50
|
R$ 70,00
|
Note que, ao preço dado, Gabriela, Paula e Miriam
decidiriam não entrar na casa, uma vez que a tarifa cobrada supera o preço
máximo que todos estão dispostos a pagar. Agora, pelo lado da oferta, levantemos
a hipótese que o custo total de “produção” da casa – que inclui gastos com
funcionários, luz, impostos, compra de mercadorias, etc.. -, por pessoa, seja
de R$ 20,00. Lançando mão da formula
simplificada de cálculo de lucro, resultado da diferença entre receita total e
despesa total, temos que o lucro da casa no exemplo citado é igual a R$ 70,00 x
5 (Paulo, Maria, João, Célia e Mário) menos R$ 20,00 x 5, ou seja, R$ 250.
De forma análoga, temos que o excedente do
consumidor – a soma da disposição máxima para pagar menos o preço efetivamente
pago de cada consumidor -, em que Paulo, Maria, João, Célia e Mário têm,
respectivamente, excedentes de R$ 60, R$ 60, R$ 30, R$ 30 e R$ 10, é igual a R$ 170. Ao fim e ao cabo, chegamos ao
resultado de excedente total (excedente do consumidor menos excedente do
produtor) igual a - R$ 80,00.
Agora, suponhamos que esta mesma casa decida
aplicar uma tarifa menor, no montante total de R$ 45,00 por entrada, apenas
para o público feminino. Baseando-se na mesma tabela, temos não apenas que
Gabriela, Paula e Miriam decidiriam entrar na casa, como também que Maria e
Célia passam a ter um excedente do consumidor ainda maior. Em termos numéricos,
neste novo cenário o excedente do consumidor é referente à soma R$ 60 (Paulo) +
R$ 85 (Maria) + R$ 30 (João) + R$ 55 (Célia) + R$ 10 (Mário) + R$ 15 (Gabriela)
+ R$ 5 (Paula) + R$ 5 (Miriam) = R$ 265,00.
Por outro lado, tendo em mente que o
custo de R$ 20,00 por pessoa manteve-se mesmo após a discriminação de preços,
com as três novas clientes o lucro da casa estabeleceu-se no novo patamar de R$ 275, enquanto o excedente total,
neste caso, saltou para R$ -10, um
aumento estimado em 87,5%.
Por este exemplo demasiado
simples, podemos observar que a prática da discriminação de preços apresentada
pela casa, resultou, ao mesmo tempo, num aumento dos excedentes do produtor, do
consumidor e total sem ocasionar uma redução dos lucros pelo lado da oferta e,
tampouco, uma redução da quantidade consumida, pelo lado da demanda.
Em termos econômicos, é crível afirmar que a
discriminação de preços opera como uma correção natural do próprio mercado para
eventuais falhas de mercado que possam ocorrer em mercados de concorrência
imperfeita. Sem qualquer necessidade de coerção ou força exógena, tal como uma
regulamentação pública, a maximização do lucro via discriminação de preços conduz
a um melhor resultado tanto para o produtor quanto para seus demandantes,
aproximando a atividade para mais próximo de seu ótimo social, elevando a
eficiência da alocação de recursos e contribuindo, em suma, para a maximização
do bem-estar entre os agentes envolvidos. Em nosso exemplo, tanto a casa quanto
os consumidores estão, introduzida a nova tarifa, em melhor situação do que se
não tivessem efetuado a transação.
De onde
provem a Discriminação de Preços?
Como apontado, a discriminação de preços
possui forte correlação com a disposição para pagar de cada consumidor, ou
nicho de consumidores. Além do custo médio por unidade, ou por pessoa, conforme
trouxemos no exemplo, cada produtor leva em consideração o custo marginal e a
receita decorrente de cada unidade adicional produzida. Se para este setor em
específico do entretenimento, o custo adicional de se aceitar uma pessoa a mais
num estabelecimento é nulo ou irrisório, é racional e lucrativo apresentar uma
tarifa diferenciada para aquela parcela do mercado consumidor que possui uma propensão
menor a utilizar tais serviços a um preço mais elevado.
A pergunta essencial aqui, no entanto, é saber
por quais razões as mulheres são tomadas como portadoras de uma disposição menor
para pagar pelos inúmeros estabelecimentos de entretenimento noturno. Pode-se
argumentar que tal público não apresenta os mesmos níveis de consumo, fato que
poderia se refletir numa sensibilidade maior a preços mais elevados. A
existência de hábitos antigos, como a quitação de todo o gasto por parte do
homem no caso dos casais, e a utilização da mulher como mero objeto de marketing
também são alternativas plausíveis, embora uma resposta definitiva seja difícil
de alcançar.
Quais os
efeitos da proibição no longo prazo?
Os efeitos desta proibição
sobre os estabelecimentos, os consumidores e o nível de bem-estar irão
depender, sobretudo, da elasticidade,
em quanto, negativa ou positivamente, em termos de quantidade demandada, o
nicho de mercado irá reagir.
Supondo que a proibição conduza à manutenção
de um preço universal elevado, equivalente ao o que se é cobrado aos homens – o
cenário com maior probabilidade de ocorrer – deveremos observar, no curto
prazo, uma queda no excedente total deste mercado, resultante da diminuição da
receita dos produtores e do consumo dos clientes, fato que evidenciaria uma
queda na eficiência de recursos.
O mais
provável, a nosso ver, é que a mudança a longo prazo não irá causar alterações
significativas na quantidade de usuários deste serviço, embora, sem sombra de
dúvida, em termos de maximização de bem-estar, a medida definitivamente deixará
os agentes deste mercado, em especial os consumidores, em pior situação,
reduzindo os benefícios totais oriundos da atividade do setor. Para a
sociedade, como um todo, portanto, a medida não é a mais eficiente para se tratar
a questão da discriminação de gênero e do machismo.
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