As principais discussões a respeito da PEC 55
dizem respeito ao equilíbrio orçamentário, ao controle da dívida pública e à
estabilização macroeconômica do país. Numa palavra, trata-se de uma medida,
como já observamos, fiscal que poderá trazer consequências benéficas para o
combate a inflação e para a retomada do crescimento.
Há, no entanto, um aspecto desta medida que
passa despercebida pela grande maioria dos brasileiros, a saber, a função da
emenda constitucional como condicionante para a profissionalização da administração
pública e como arma necessária para o combate à corrupção.
Impera no país e principalmente nos meandros
das relações políticas, como resultado de uma tradição de séculos, um tipo de
organização e de autoridade políticas que não possuem na impessoalidade e na
imparcialidade da administração da “coisa pública” o critério de tomada de
decisões. Mesmo antes da crescente burocratização e modernização dos aparatos
de controle do poder público, a regra de definição inclusive dos negócios
privados têm sido aquilo que os sociólogos nomeiam de estado patrimonial.
Nesta configuração, o poder
político é pessoal e exercido à semelhança do poder pessoal do líder. O
nepotismo, que hoje consideramos como a nomeação de parentes e conhecidos para
cargos públicos, é ainda hoje uma de suas características mais notórias. O
preenchimento dos cargos da administração pública é feita conforme critérios
ideológicos, pessoais, e não obedece ao rigor da institucionalização e da profissionalização
do exercício republicano e eficiente da máquina pública.
Neste jogo de relações e de troca de
influências, estabeleceu-se desde o início da colonização no Brasil os
primórdios o que hoje podemos chamar como capitalismo de compadres ou de
estado: a economia das mercês. A centralização do poder e das responsabilidades
pela criação de riqueza, pelo desenvolvimento da nação e de um povo na figura
do rei ou do soberano levaram á criação de um cenário propício para a
consolidação das trocas de influência, da concessão de monopólios e privilégios
a grandes comerciantes e proprietários que, em troca, forneciam seu apoio
político à manutenção da ordem vigente.
No Brasil que antecede a independência, este
processo é intensificado com o pombalismo e suas influências. O ideário de submissão
da ordem pública e de toda sociedade ao cientificismo da filosofia natural, ao
iluminismo radical e ao déspota esclarecido encontrou na burocracia e no
Tribunal do Santo Ofício, responsável por consolidar a visão negativa do lucro
e do trabalho livre, suas bases de apoio.
E o processo não foi diferente durante o
Brasil Império e republicano. O poder político e o soberano viam-se na função
primordial de agir para curar as mazelas sociais, de ser o principal agente da
mudança e da modernização cultural, econômica, política e social brasileira. O
estado brasileiro entendeu que seria sua função guiar o próprio conjunto de
cidadãos para um caminho iluminado e emancipado. E, se o nepotismo já se
manifestara desde o início deste lastimoso processo, o patrimonialismo escancarou
no século XX outra importante face de seu método de funcionamento: o
paternalismo.
Todo este processo não teria tido sucesso se
uma série de fatores tivessem se manifestado em sentidos diferentes, ou se simplesmente
não tivessem existido. Mas, sem dúvida, se há algo que realmente consolidou no
imaginário popular a crença na “redenção” através do estado, este algo foi a
modernização dos instrumentos de coleta de impostos e da ausência de limites
morais para os gastos públicos.
A subserviência generalizada ao financiamento
involuntário deste patrimonialismo, via impostos, e a ilimitada disposição de
recursos criaram o ambiente propício para que a economia das mercês continuasse
prosperando. A fonte dos privilégios, dos recursos jamais secava, e isto às
custas do pagador de impostos. Por outro lado, tal sistema de trocas era
simplesmente o salvo conduto para a manutenção de um organismo político
excludente, injusto e politicamente blindado às investiduras de adversários.
Pois bem. Neste contexto, a PEC 55 pode
apresentar um passo totalmente novo em nossa história política, econômica e
social. Por colocar uma barreira nos custos não financeiros da União, a PEC há
necessariamente de impedir o crescimento do estado, e, consequentemente, de sua burocracia. Sem a possibilidade momentânea
(até que os impostos sejam elevados) de direcionar mais recursos aos “colegas
do rei”, o estímulo à prática da corrupção, uma das verdadeiras essências da
política, sofrerá ligeira queda.
O corte
de cargos comissionados, de ministérios e outros tipos de funções não
associados à seleção meritocrática através de concursos públicos poderá ser
necessário dado o tamanho da dívida pública e do novo déficit orçamentário
divulgado na última semana. A limitação ao poder estipulado nos termos de nova
PEC poderá servir para deter o anseio sempre tão perigoso de submeter tudo e
todos ao próprio jugo – de fazer da administração pública uma mera extensão do
seu poder pessoal. Este enxugamento, que eliminará gastos sem função alguma,
exigirá dos tecnicamente capacitados que ocupam altos cargos burocráticos a
eficiência para consolidar os investimentos que realmente possa trazer
resultados e de submeter ao escrutínio público, mediante uma transparência
ainda melhor, as contais e dimensões reais do aparato público.
O combate à corrupção é importante. Mas, mais
ainda, é importante entender que este fenômeno do desvio de recursos é
resultado de um conjunto de estruturas e de um sistema de incentivos
pernicioso, contraproducente, dizimador da atividade e da “fúria criadora”
empresarial. Assim como toda nossa história nacional demonstra, à medida que se
intensifica o poder nas mãos da classe política, mais intervencionismo, menos
liberdade e mais corrupção surgirão no âmbito da sociedade. A perseguição aos
empresários e aos empreendores serviu apenas, ao longo de nossa história, para
originar as piores sequelas sociais, políticas e econômicas possíveis.
A PEC, se aplicada, terá como consequências a
melhora da gestão dos recursos públicos, uma provável diminuição do nepotismo e
do próprio patrimonialismo, o incremento da transparência e, principalmente, a
consolidação de princípios republicanos necessários para qualquer sociedade
livre. Mais do que uma medida fiscal, a emenda 241/55 é também um começo
fundamental – mas longe de ser suficiente - para estabelecer as relações
políticas iguais e impessoais de que tanto necessitamos para fazer do Brasil
aquele “país sério” que tanto desejamos.
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