"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A PEC como Instrumento Republicano

 As principais discussões a respeito da PEC 55 dizem respeito ao equilíbrio orçamentário, ao controle da dívida pública e à estabilização macroeconômica do país. Numa palavra, trata-se de uma medida, como já observamos, fiscal que poderá trazer consequências benéficas para o combate a inflação e para a retomada do crescimento.

 Há, no entanto, um aspecto desta medida que passa despercebida pela grande maioria dos brasileiros, a saber, a função da emenda constitucional como condicionante para a profissionalização da administração pública e como arma necessária para o combate à corrupção.

 Impera no país e principalmente nos meandros das relações políticas, como resultado de uma tradição de séculos, um tipo de organização e de autoridade políticas que não possuem na impessoalidade e na imparcialidade da administração da “coisa pública” o critério de tomada de decisões. Mesmo antes da crescente burocratização e modernização dos aparatos de controle do poder público, a regra de definição inclusive dos negócios privados têm sido aquilo que os sociólogos nomeiam de estado patrimonial.

 Nesta configuração, o poder político é pessoal e exercido à semelhança do poder pessoal do líder. O nepotismo, que hoje consideramos como a nomeação de parentes e conhecidos para cargos públicos, é ainda hoje uma de suas características mais notórias. O preenchimento dos cargos da administração pública é feita conforme critérios ideológicos, pessoais, e não obedece ao rigor da institucionalização e da profissionalização do exercício republicano e eficiente da máquina pública.

 Neste jogo de relações e de troca de influências, estabeleceu-se desde o início da colonização no Brasil os primórdios o que hoje podemos chamar como capitalismo de compadres ou de estado: a economia das mercês. A centralização do poder e das responsabilidades pela criação de riqueza, pelo desenvolvimento da nação e de um povo na figura do rei ou do soberano levaram á criação de um cenário propício para a consolidação das trocas de influência, da concessão de monopólios e privilégios a grandes comerciantes e proprietários que, em troca, forneciam seu apoio político à manutenção da ordem vigente.

 No Brasil que antecede a independência, este processo é intensificado com o pombalismo e suas influências. O ideário de submissão da ordem pública e de toda sociedade ao cientificismo da filosofia natural, ao iluminismo radical e ao déspota esclarecido encontrou na burocracia e no Tribunal do Santo Ofício, responsável por consolidar a visão negativa do lucro e do trabalho livre, suas bases de apoio.

 E o processo não foi diferente durante o Brasil Império e republicano. O poder político e o soberano viam-se na função primordial de agir para curar as mazelas sociais, de ser o principal agente da mudança e da modernização cultural, econômica, política e social brasileira. O estado brasileiro entendeu que seria sua função guiar o próprio conjunto de cidadãos para um caminho iluminado e emancipado. E, se o nepotismo já se manifestara desde o início deste lastimoso processo, o patrimonialismo escancarou no século XX outra importante face de seu método de funcionamento: o paternalismo.

 Todo este processo não teria tido sucesso se uma série de fatores tivessem se manifestado em sentidos diferentes, ou se simplesmente não tivessem existido. Mas, sem dúvida, se há algo que realmente consolidou no imaginário popular a crença na “redenção” através do estado, este algo foi a modernização dos instrumentos de coleta de impostos e da ausência de limites morais para os gastos públicos.

 A subserviência generalizada ao financiamento involuntário deste patrimonialismo, via impostos, e a ilimitada disposição de recursos criaram o ambiente propício para que a economia das mercês continuasse prosperando. A fonte dos privilégios, dos recursos jamais secava, e isto às custas do pagador de impostos. Por outro lado, tal sistema de trocas era simplesmente o salvo conduto para a manutenção de um organismo político excludente, injusto e politicamente blindado às investiduras de adversários.

 Pois bem. Neste contexto, a PEC 55 pode apresentar um passo totalmente novo em nossa história política, econômica e social. Por colocar uma barreira nos custos não financeiros da União, a PEC há necessariamente de impedir o crescimento do estado, e, consequentemente,  de sua burocracia. Sem a possibilidade momentânea (até que os impostos sejam elevados) de direcionar mais recursos aos “colegas do rei”, o estímulo à prática da corrupção, uma das verdadeiras essências da política, sofrerá ligeira queda.

  O corte de cargos comissionados, de ministérios e outros tipos de funções não associados à seleção meritocrática através de concursos públicos poderá ser necessário dado o tamanho da dívida pública e do novo déficit orçamentário divulgado na última semana. A limitação ao poder estipulado nos termos de nova PEC poderá servir para deter o anseio sempre tão perigoso de submeter tudo e todos ao próprio jugo – de fazer da administração pública uma mera extensão do seu poder pessoal. Este enxugamento, que eliminará gastos sem função alguma, exigirá dos tecnicamente capacitados que ocupam altos cargos burocráticos a eficiência para consolidar os investimentos que realmente possa trazer resultados e de submeter ao escrutínio público, mediante uma transparência ainda melhor, as contais e dimensões reais do aparato público.

 O combate à corrupção é importante. Mas, mais ainda, é importante entender que este fenômeno do desvio de recursos é resultado de um conjunto de estruturas e de um sistema de incentivos pernicioso, contraproducente, dizimador da atividade e da “fúria criadora” empresarial. Assim como toda nossa história nacional demonstra, à medida que se intensifica o poder nas mãos da classe política, mais intervencionismo, menos liberdade e mais corrupção surgirão no âmbito da sociedade. A perseguição aos empresários e aos empreendores serviu apenas, ao longo de nossa história, para originar as piores sequelas sociais, políticas e econômicas possíveis.


 A PEC, se aplicada, terá como consequências a melhora da gestão dos recursos públicos, uma provável diminuição do nepotismo e do próprio patrimonialismo, o incremento da transparência e, principalmente, a consolidação de princípios republicanos necessários para qualquer sociedade livre. Mais do que uma medida fiscal, a emenda 241/55 é também um começo fundamental – mas longe de ser suficiente - para estabelecer as relações políticas iguais e impessoais de que tanto necessitamos para fazer do Brasil aquele “país sério” que tanto desejamos. 

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