"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Desculpe, mas preciso perguntar: se somos a favor da democracia, por que somos contra a igualdade perante a lei?

 Desculpe a pergunta, mas se todos nós concordamos que as pessoas devem ser tratadas iguais, então porque concedemos tratamento diferenciado a alguns grupos através de novas legislações? Se devemos ser reconhecidos pela nossa condição de cidadão pertencente a um determinado organismo político, porque criamos definições específicas para então alçá-las acima da categoria do cidadão?

 Meu questionamento tem muitos motivos. Certamente, há que se concordar que o foro privilegiado é um instrumento terrível, que consolida a impunidade e dissocia o político da prestação de contas ao eleitorado. Da mesma forma, é certo estender a questão ao contexto levantado pela prisão de Eike Batista: por que alguém detentor de um determinado conhecimento, certificado por um diploma universitário, deve receber um tratamento especial e diferente da grande maioria? O que faz com que um diplomado, independentemente da área de atuação, tenha direitos diferentes de qualquer outro cidadão, ainda mais quando este não for também um diplomado?

 O conceito de cidadania é excepcionalmente moderno em nossa história política. Nasce mais ou menos no mesmo momento em que uma concepção descendente de poder passa a ganhar forma no imaginário político. A origem de um governo legítimo desloca-se da sanção divina para a razão humana: o poder político, que intui diretamente na dominação e na autoridade políticas, tem a sua origem na decisão individual, na legislação, no voto e na vontade humanas.

 Apenas a vontade e a razão humanas podem fundamentar um organismo político novo e conceder o poder de agir em representação de um povo ou comunidade a um determinado governante. Da mesma forma opera o conceito de autogoverno ou autodeterminação: só se pode reconhecer uma lei como determinação legítima se esta tem origem na minha própria razão e, portanto, na minha própria liberdade. O consentimento é o fundamento último para o governo que se queira legítimo.

 Este processo de nascimento da democracia moderna não foi, contudo, uniforme, muito menos pacífico. A ideia da igualdade de todos perante a lei exerceu um papel fundamental na conquista da universalização dos direitos e do acesso á coisa pública. Privilégios consolidados pela ação do tempo, como direitos de nascença, não poderiam subsistir com a ideia de um regime de amplo escrutínio e de submissão da ação política ao governo do próprio cidadão, que o origina e diretamente sofre as consequências de sua ação. A participação no poder, deste modo, só pôde ser garantida pela eliminação ainda que gradual de todos os privilégios assegurados por lei. Tal como proclamou John Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil: “Os homens são criados livres e iguais” – livres porque nenhuma restrição à liberdade é aceitável se não tiver origem no próprio consentimento racional daquele que sofrerá a ação; e iguais porque é justamente a igualdade de todos, sem concessão de privilégios por parte de um poder político, que assegurará a possibilidade de todos desfrutarem de sua própria liberdade pessoal. A lógica do raciocínio é clara: um determinado ser possuir um privilégio específico legal a si é uma condição suficiente que lhe confere legitimidade para restringir, ainda que de modo leve, as minhas liberdades individuais. Num regime que se queira livre, isto é inaceitável.

 Voltando à questão que me propus como título do ensaio, salta à vista os inúmeros casos em que o princípio da cidadania, ou a igualdade de todos perante a lei, bem como sua submissão ao “rule of law”, é violado, tornando desiguais as relações políticas entre os cidadãos.

 Isto é evidente na consolidação dos direitos das minorias, ou dos grupos coletivos. Indígenas, brancos, homossexuais, heterossexuais, transexuais, afro-descendentes, homens, mulheres – todos são, antes destas classificações, cidadãos de uma comunidade política, que possuem uma constituição que lhe assegura o benefício e o dever da cidadania e lhe protege (ou deveria) do arbítrio do poder e de terceiros.

 Por que, por exemplo, um homem responsável por um assassinato de uma mulher deve responder à sanção da lei de forma mais rígida e com mais anos de reclusão do que outro responsável pelo assassinato de outro homem? Somos todos iguais perante a lei, independentemente de cor, raça, credo, sexualidade e sexo. Por que as penas não são iguais para ambos? Se a justiça é entendida como igualdade, por que há esta desigualdade tornada lei?

 O mesmo vale para as distinções de sexualidade e raça. Nossa constituição e código penal asseguram o livre exercício de funções independentemente da cor da pele (que não é raça, mas deixemos isto para outro ensaio) e da sexualidade. Qualquer tipo de discriminação com base em qualquer motivo é inaceitável. Então, por que termos pejorativos como “Branco azedo”, “corretivo” são plenamente aceitáveis na vida social? O mesmo racioncío é idêntico para a questão da sexualidade. Discriminar um homossexual pela simples questão de sua homossexualidade é considerado crime. Ótimo. Então, se uma empresa opta por contratar apenas funcionários homossexuais, incorreria ela em algo passível de ação penal por discriminação ou heterofobia?

 A mesma questão se estende aos indígenas. O que realmente constitui o “ser indígena”? No Brasil tínhamos mais de mil povos hoje chamados sob este nome, e que possuíam hábitos e costumes inteiramente diferentes. Tupinambás e Tupiniquins, inimigos mortais desde o tempo anterior à chegada dos portugueses, provavelmente não concordariam em ser classificados no mesmo grupo seleto “indígenas”. E, por que reservar a alguns povos determinadas terras? E os demais brasileiros e cidadãos, não deveriam também os mesmos ter direito a determinadas terras? Por que o branco, o classe média ou o rico também não podem ter direito a uma terra reservada pelo poder político? Que consegue provar que dado sua classificação em determinado grupo, ele obteve mais sorte e possui “privilégios” que os indivíduos de outro grupo não possuem?

 A Cidadania encontra-se ameaçada nos dias atuais pela consolidação de direitos que fazem os cidadãos desiguais perante a lei. E isto é tanto mais triste e inspira sérias reflexões, quanto sabemos que a luta pela igualdade de direitos foi sangrenta, custou vidas e, principalmente, foi substancial para que o sucesso, a conquista pessoal e profissional, a riqueza e o exercício de funções públicas não estivessem mais associadas ao nascimento, o pertencimento a uma grande família, a uma determinada raça ou ancestralidade. O risco que hoje observo é que, no Brasil, a desigualdade venha a restaurar antigos privilégios incompatíveis com a ideia de democracia. Num futuro péssimo, a cor da sua pele, sua sexualidade ou o seu sexo poderão determinar de acordo com a lei se você entrará numa universidade de ponta ou exercerá um cargo público; se merecerá ter riqueza e sucesso profissional. Nunca a antiga ideia “do sangue azul”, de já determinava o destino de uma pessoa pelo nascimento pareceu estar tão viva.


 E você, o que fez hoje pela democracia e pela igualdade perante a lei?   

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