Desculpe a pergunta, mas se todos nós
concordamos que as pessoas devem ser tratadas iguais, então porque concedemos
tratamento diferenciado a alguns grupos através de novas legislações? Se
devemos ser reconhecidos pela nossa condição de cidadão pertencente a um
determinado organismo político, porque criamos definições específicas para então
alçá-las acima da categoria do cidadão?
Meu questionamento tem muitos motivos.
Certamente, há que se concordar que o foro privilegiado é um instrumento
terrível, que consolida a impunidade e dissocia o político da prestação de
contas ao eleitorado. Da mesma forma, é certo estender a questão ao contexto
levantado pela prisão de Eike Batista: por que alguém detentor de um
determinado conhecimento, certificado por um diploma universitário, deve
receber um tratamento especial e diferente da grande maioria? O que faz com que
um diplomado, independentemente da área de atuação, tenha direitos diferentes
de qualquer outro cidadão, ainda mais quando este não for também um diplomado?
O conceito de cidadania é excepcionalmente moderno
em nossa história política. Nasce mais ou menos no mesmo momento em que uma
concepção descendente de poder passa a ganhar forma no imaginário político. A origem
de um governo legítimo desloca-se da sanção divina para a razão humana: o poder
político, que intui diretamente na dominação e na autoridade políticas, tem a
sua origem na decisão individual, na legislação, no voto e na vontade humanas.
Apenas a vontade e a razão humanas podem
fundamentar um organismo político novo e conceder o poder de agir em
representação de um povo ou comunidade a um determinado governante. Da mesma
forma opera o conceito de autogoverno ou autodeterminação: só se pode
reconhecer uma lei como determinação legítima se esta tem origem na minha
própria razão e, portanto, na minha própria liberdade. O consentimento é o
fundamento último para o governo que se queira legítimo.
Este processo de nascimento da democracia
moderna não foi, contudo, uniforme, muito menos pacífico. A ideia da igualdade
de todos perante a lei exerceu um papel fundamental na conquista da
universalização dos direitos e do acesso á coisa pública. Privilégios
consolidados pela ação do tempo, como direitos de nascença, não poderiam
subsistir com a ideia de um regime de amplo escrutínio e de submissão da ação
política ao governo do próprio cidadão, que o origina e diretamente sofre as
consequências de sua ação. A participação no poder, deste modo, só pôde ser
garantida pela eliminação ainda que gradual de todos os privilégios assegurados
por lei. Tal como proclamou John Locke no seu Segundo Tratado sobre o Governo
Civil: “Os homens são criados livres e iguais” – livres porque nenhuma
restrição à liberdade é aceitável se não tiver origem no próprio consentimento
racional daquele que sofrerá a ação; e iguais porque é justamente a igualdade
de todos, sem concessão de privilégios por parte de um poder político, que
assegurará a possibilidade de todos desfrutarem de sua própria liberdade pessoal.
A lógica do raciocínio é clara: um determinado ser possuir um privilégio específico
legal a si é uma condição suficiente que lhe confere legitimidade para
restringir, ainda que de modo leve, as minhas liberdades individuais. Num
regime que se queira livre, isto é inaceitável.
Voltando à questão que me propus como título
do ensaio, salta à vista os inúmeros casos em que o princípio da cidadania, ou
a igualdade de todos perante a lei, bem como sua submissão ao “rule of law”, é
violado, tornando desiguais as relações políticas entre os cidadãos.
Isto é evidente na consolidação dos direitos
das minorias, ou dos grupos coletivos. Indígenas, brancos, homossexuais,
heterossexuais, transexuais, afro-descendentes, homens, mulheres – todos são,
antes destas classificações, cidadãos de uma comunidade política, que possuem
uma constituição que lhe assegura o benefício e o dever da cidadania e lhe
protege (ou deveria) do arbítrio do poder e de terceiros.
Por que, por exemplo, um homem responsável por
um assassinato de uma mulher deve responder à sanção da lei de forma mais
rígida e com mais anos de reclusão do que outro responsável pelo assassinato de
outro homem? Somos todos iguais perante a lei, independentemente de cor, raça,
credo, sexualidade e sexo. Por que as penas não são iguais para ambos? Se a
justiça é entendida como igualdade, por que há esta desigualdade tornada lei?
O mesmo vale para as distinções de sexualidade
e raça. Nossa constituição e código penal asseguram o livre exercício de
funções independentemente da cor da pele (que não é raça, mas deixemos isto
para outro ensaio) e da sexualidade. Qualquer tipo de discriminação com base em
qualquer motivo é inaceitável. Então, por que termos pejorativos como “Branco
azedo”, “corretivo” são plenamente aceitáveis na vida social? O mesmo racioncío
é idêntico para a questão da sexualidade. Discriminar um homossexual pela
simples questão de sua homossexualidade é considerado crime. Ótimo. Então, se
uma empresa opta por contratar apenas funcionários homossexuais, incorreria ela
em algo passível de ação penal por discriminação ou heterofobia?
A mesma questão se estende aos indígenas. O
que realmente constitui o “ser indígena”? No Brasil tínhamos mais de mil povos
hoje chamados sob este nome, e que possuíam hábitos e costumes inteiramente
diferentes. Tupinambás e Tupiniquins, inimigos mortais desde o tempo anterior à
chegada dos portugueses, provavelmente não concordariam em ser classificados no
mesmo grupo seleto “indígenas”. E, por que reservar a alguns povos determinadas
terras? E os demais brasileiros e cidadãos, não deveriam também os mesmos ter
direito a determinadas terras? Por que o branco, o classe média ou o rico também
não podem ter direito a uma terra reservada pelo poder político? Que consegue
provar que dado sua classificação em determinado grupo, ele obteve mais sorte e
possui “privilégios” que os indivíduos de outro grupo não possuem?
A Cidadania encontra-se ameaçada nos dias
atuais pela consolidação de direitos que fazem os cidadãos desiguais perante a
lei. E isto é tanto mais triste e inspira sérias reflexões, quanto sabemos que
a luta pela igualdade de direitos foi sangrenta, custou vidas e,
principalmente, foi substancial para que o sucesso, a conquista pessoal e
profissional, a riqueza e o exercício de funções públicas não estivessem mais
associadas ao nascimento, o pertencimento a uma grande família, a uma
determinada raça ou ancestralidade. O risco que hoje observo é que, no Brasil,
a desigualdade venha a restaurar antigos privilégios incompatíveis com a ideia
de democracia. Num futuro péssimo, a cor da sua pele, sua sexualidade ou o seu
sexo poderão determinar de acordo com a lei se você entrará numa universidade
de ponta ou exercerá um cargo público; se merecerá ter riqueza e sucesso
profissional. Nunca a antiga ideia “do sangue azul”, de já determinava o
destino de uma pessoa pelo nascimento pareceu estar tão viva.
E você, o que fez hoje pela democracia e pela
igualdade perante a lei?
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