Desde que foi publicada pela primeira vez,
ainda nos idos de 1944, a obra “O Caminho da Servidão”, de F. Hayek tem a
peculiaridade de ter permanecido tão atual quanto o foi à época de seu
lançamento. Não somente por esta razão talvez seja possível afirmar que esta
obra tornou-se um importante manual contemporâneo de ciência política.
A obra tem uma tese principal: a condução,
centralmente planejada e dirigida, da economia e da sociedade conduz,
necessariamente, a um tipo de regime político totalmente avesso à liberdade. Os
muitos tipos de coletivismo distributivista, do qual o socialismo é apenas uma
variante, conduzem, em razão dos seus modos de funcionamento, a um resultado
praticamente não desejado por ninguém.
O socialismo, como qualquer outro método
distributivista de planejamento e direção centralizada da atividade econômica de
uma determinada sociedade, embora seja tomado por seus defensores apenas no
sentido das finalidades que almeja, tais como a justiça social e a igualdade, é
totalmente avesso – e, doravante, incompatível – com qualquer ideia de
democracia, plural e amparada nos históricos valores da soberania individual,
do estado democrático de direito, da separação de poderes e da liberdade
enquanto ausência de coerção ou poder absoluto.
Tal incompatibilidade é atestada pelo autor em
esferas diferentes, combinadas num processo que claramente demonstra ter seu
início, desenvolvimento, e ápice. Num primeiro momento, o estabelecimento de
uma ordem ou de medidas econômicas que ditem, segundo um princípio e medida
centralmente decididas, o funcionamento e o destino das riquezas produzidas e
dos recursos disponíveis não só tende a violar liberdades individuais como
também dá origem a um aparato coercitivo. O antigo mecanismo impessoal de
preços e o arranjo moralmente superior da livre concorrência paulatinamente vão
sendo substituídos por outro arranjo, cujas medidas não são mais tomadas a nível
individual, da própria esfera de cada agente que fornece e demanda serviços;
mas, antes, são “calculadas” e tomadas por burocratas que inibem a ação livre
dos indivíduos e que quase nada sabem das informações locais, as quais suas
medidas afetam diretamente. O resultado é um aumento drástico da burocracia e o
aumento da repressão por parte dos poderes constituídos.
Em sequência, esta ideia de planificação passa
a atingir o poder político propriamente dito. A relação é óbvia: num processo
deliberativo, o consenso é atingido principalmente nas questões mais gerais e
menos específicas. A medida que a especificidade das pautas em discussão
avança, o numero de indivíduos que partilham a mesma visão torna-se mais
restrito. Por isto, os limites da ação publica são claramente delineados ao
campo onde todos parecem concordar com sua finalidade. Todavia, a decisão de um
plano comum que dite os meios e as finalidades de uma estratégia coletiva única
de meios e fins há, necessariamente, de produzir a alocação forçada de indivíduos
e funções à revelia de seu próprio poder de escolha. Dito de outro modo,
escalas de valores alternativas ao plano central – diga-se de passagem, visões,
liberdades e valores de outros indivíduos e seres humanos – passam a ser
completamente desprezadas. Uma hierarquia de valores comum é erigida e mantida
única e exclusivamente pela arbitrariedade de um líder. A antiga assembleia de
vozes plurais, iguais desaparece.
Num terceiro momento, o processo avança para o
âmbito jurídico. Quase como consequência do passo anterior, o estado de direito
torna-se insuficiente para assegurar a implementação do planejamento central. A
generalidade deste estado democrático de direito, que estabelece sempre regras
aplicadas a todos em comum acordo, e, por isso mesmo, previsíveis porque
imparciais, cai por terra. Em seu lugar, ascende um novo tipo de ordenamento,
muito mais parcial, diretamente oriundo das próprias decisões pessoais de um líder
ou de um órgão central de planejamento. Um ordenamento pétreo, comum e de igual
aplicação a todos, especialmente importante para limitar a esfera de ação do
poder, é substituído pela arbitrariedade que julga conforme valores e juízos
extremamente particulares, imprevisíveis, desconhecidos dos demais membros. Neste
arranjo sócio-econômico, o emprego, pela sociedade, dos meios de produção
segundo finalidades específicas já não pode subsistir lado a lado com regras
gerais e formais que se limitam a criar regras imparciais para serem utilizadas
como parâmetro para indivíduos desconhecidos. A necessidade de satisfazer cada
demanda que eventualmente possa surgir, faz com que o estabelecimento de
prioridades e cursos de ação seja definido e alterado quantas vezes necessário,
sem qualquer obstáculo.
Atualíssimo, O Caminho da Servidão reverbera como luz nos tempos sombrios de
agora. Com base em sua leitura, elencar exemplos do avanço de coletivismos
ditatoriais torna-se irresistível. Que dizer, por exemplo, da Venezuela de
Chavez e Maduro? Da condução cada vez maior, conforme prévio planejamento
central, das atividades econômicas, das instituições jurídicas e democráticas?
Ou no caso brasileiro, que dizer da utilização de instituições para eliminar os
entraves ao exercício de um poder quase absoluto, pautado sobremaneira na
força, na corrupção, na intimidação? Que dizer, então, de muitos outros
exemplos latino-americanos, como a Argentina de Kirchner, ou a Bolívia de
Morales?
O socialismo democrático tornou-se, como bem
nos mostrou Hayek, a utopia mais perigosa do século XX e também do nosso tempo,
já que se instala e se desenvolve silenciosamente, alimentando-se do ânimo e do
belo discurso que propaga em seu favor. E, pior do que tudo, consegue tornar a
separação de poderes antiquada e impotente para assegurar a liberdade e a
cidadania numa república ou numa monarquia. Desta forma, Hayek talvez tenha
sido um dos primeiros intelectuais do século passado a enxergar que, a
descentralização política, mais do que a separação de poderes, é o fator mais
imperioso na defesa intransigente da liberdade individual, civil e política.
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