"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O socialismo democrático é uma utopia

 Desde que foi publicada pela primeira vez, ainda nos idos de 1944, a obra “O Caminho da Servidão”, de F. Hayek tem a peculiaridade de ter permanecido tão atual quanto o foi à época de seu lançamento. Não somente por esta razão talvez seja possível afirmar que esta obra tornou-se um importante manual contemporâneo de ciência política.

 A obra tem uma tese principal: a condução, centralmente planejada e dirigida, da economia e da sociedade conduz, necessariamente, a um tipo de regime político totalmente avesso à liberdade. Os muitos tipos de coletivismo distributivista, do qual o socialismo é apenas uma variante, conduzem, em razão dos seus modos de funcionamento, a um resultado praticamente não desejado por ninguém.

 O socialismo, como qualquer outro método distributivista de planejamento e direção centralizada da atividade econômica de uma determinada sociedade, embora seja tomado por seus defensores apenas no sentido das finalidades que almeja, tais como a justiça social e a igualdade, é totalmente avesso – e, doravante, incompatível – com qualquer ideia de democracia, plural e amparada nos históricos valores da soberania individual, do estado democrático de direito, da separação de poderes e da liberdade enquanto ausência de coerção ou poder absoluto.

 Tal incompatibilidade é atestada pelo autor em esferas diferentes, combinadas num processo que claramente demonstra ter seu início, desenvolvimento, e ápice. Num primeiro momento, o estabelecimento de uma ordem ou de medidas econômicas que ditem, segundo um princípio e medida centralmente decididas, o funcionamento e o destino das riquezas produzidas e dos recursos disponíveis não só tende a violar liberdades individuais como também dá origem a um aparato coercitivo. O antigo mecanismo impessoal de preços e o arranjo moralmente superior da livre concorrência paulatinamente vão sendo substituídos por outro arranjo, cujas medidas não são mais tomadas a nível individual, da própria esfera de cada agente que fornece e demanda serviços; mas, antes, são “calculadas” e tomadas por burocratas que inibem a ação livre dos indivíduos e que quase nada sabem das informações locais, as quais suas medidas afetam diretamente. O resultado é um aumento drástico da burocracia e o aumento da repressão por parte dos poderes constituídos.

 Em sequência, esta ideia de planificação passa a atingir o poder político propriamente dito. A relação é óbvia: num processo deliberativo, o consenso é atingido principalmente nas questões mais gerais e menos específicas. A medida que a especificidade das pautas em discussão avança, o numero de indivíduos que partilham a mesma visão torna-se mais restrito. Por isto, os limites da ação publica são claramente delineados ao campo onde todos parecem concordar com sua finalidade. Todavia, a decisão de um plano comum que dite os meios e as finalidades de uma estratégia coletiva única de meios e fins há, necessariamente, de produzir a alocação forçada de indivíduos e funções à revelia de seu próprio poder de escolha. Dito de outro modo, escalas de valores alternativas ao plano central – diga-se de passagem, visões, liberdades e valores de outros indivíduos e seres humanos – passam a ser completamente desprezadas. Uma hierarquia de valores comum é erigida e mantida única e exclusivamente pela arbitrariedade de um líder. A antiga assembleia de vozes plurais, iguais desaparece.

 Num terceiro momento, o processo avança para o âmbito jurídico. Quase como consequência do passo anterior, o estado de direito torna-se insuficiente para assegurar a implementação do planejamento central. A generalidade deste estado democrático de direito, que estabelece sempre regras aplicadas a todos em comum acordo, e, por isso mesmo, previsíveis porque imparciais, cai por terra. Em seu lugar, ascende um novo tipo de ordenamento, muito mais parcial, diretamente oriundo das próprias decisões pessoais de um líder ou de um órgão central de planejamento. Um ordenamento pétreo, comum e de igual aplicação a todos, especialmente importante para limitar a esfera de ação do poder, é substituído pela arbitrariedade que julga conforme valores e juízos extremamente particulares, imprevisíveis, desconhecidos dos demais membros. Neste arranjo sócio-econômico, o emprego, pela sociedade, dos meios de produção segundo finalidades específicas já não pode subsistir lado a lado com regras gerais e formais que se limitam a criar regras imparciais para serem utilizadas como parâmetro para indivíduos desconhecidos. A necessidade de satisfazer cada demanda que eventualmente possa surgir, faz com que o estabelecimento de prioridades e cursos de ação seja definido e alterado quantas vezes necessário, sem qualquer obstáculo.

 Atualíssimo, O Caminho da Servidão reverbera como luz nos tempos sombrios de agora. Com base em sua leitura, elencar exemplos do avanço de coletivismos ditatoriais torna-se irresistível. Que dizer, por exemplo, da Venezuela de Chavez e Maduro? Da condução cada vez maior, conforme prévio planejamento central, das atividades econômicas, das instituições jurídicas e democráticas? Ou no caso brasileiro, que dizer da utilização de instituições para eliminar os entraves ao exercício de um poder quase absoluto, pautado sobremaneira na força, na corrupção, na intimidação? Que dizer, então, de muitos outros exemplos latino-americanos, como a Argentina de Kirchner, ou a Bolívia de Morales?


 O socialismo democrático tornou-se, como bem nos mostrou Hayek, a utopia mais perigosa do século XX e também do nosso tempo, já que se instala e se desenvolve silenciosamente, alimentando-se do ânimo e do belo discurso que propaga em seu favor. E, pior do que tudo, consegue tornar a separação de poderes antiquada e impotente para assegurar a liberdade e a cidadania numa república ou numa monarquia. Desta forma, Hayek talvez tenha sido um dos primeiros intelectuais do século passado a enxergar que, a descentralização política, mais do que a separação de poderes, é o fator mais imperioso na defesa intransigente da liberdade individual, civil e política. 

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