Restringir-me-ei neste ensaio a desenvolver
minha posição em relação a este tema tão controverso. Longe de querer propor
uma solução final a um problema insolúvel, proponho antes um exercício de
concatenação e dedução lógica de consequências a partir de seus princípios originários.
Portanto, este texto basicamente não se versará sobre seu aspecto prático.
Em primeiro lugar, me parece que as
divergências têm inicio num ponto fundamental, a saber, se o embrião e o feto já
possuem vida – no sentido biológico do termo. Minha posição em respeito a este
ponto é deveras clara: há concepção e vida desde o momento da fecundação. O
embrião e o feto caracterizam uma vida humana plena, ainda em gestação. O fato
de se discutir se este ser em desenvolvimento já possui um sistema nervoso
desenvolvido que lhe permitiria sentir dor é particularmente secundário em
relação ao tema central.
Aqui estabeleço, ao mesmo tempo, uma conclusão
e o ponto de partida essencial. O aborto envolve, em suma, uma dimensão ética
que não podemos ignorar. Se se trata de uma vida humana, é moralmente correto defende-la
com todas as faculdades que temos à disposição. “Age moralmente”, dizia o
filósofo do esclarecimento, Immanuel Kant. Tenha o homem, a mulher, o ser
humano, como um fim em si mesmo, jamais somente como um meio. Reflita e
estabeleça seu principio de ação como uma máxima universalizável muito antes de
agir, verberaria Hannah Arendt. É o sumo dever ético, de cada ser humano,
proteger a vida, a nossa, do nosso próximo[1]. Podem dizer, “É um
direito da mulher poder realizar o aborto” – antes de qualquer direito, é seu
dever, fruto da sua virtude e liberdade, proteger a vida humana. Cada um de nós
é em si a humanidade inteira.
Por conseguinte, se assumimos que cabe a
alguma autoridade, no nosso caso a autoridade pública, assegurar o direito à
vida, da mesma forma como é legítima sua ação em proteção de qualquer individuo
quando este se encontra em ameaça iminente de morte ou violação da integridade,
podemos considerar ato legítimo sua interferência direta também nesta questão. Ninguém
pode se valer de um poder absoluto, que não possui, nem submeter a domínio
absoluto qualquer individuo, livre por natureza ou definição. A ação
governamental de proibição à prática do aborto, deste modo, é ainda mais
justificável dado que o embrião ou o feto não possuem quaisquer meios de defesa
frente a uma ação violenta. O aborto é, claramente até aqui, não apenas ato
infenso ao bom senso e ao sentimento de valoração imensurável da vida humana,
como também uma prática extremamente cruel e torpe. A única exceção plausível poderia
ser[2], de fato, o penoso caso de
risco de morte, por parte da gravidez, existente à gestante. E isto não apenas
porque, em caso de morte da progenitora, a vida do feto também se extinguiria,
como também, podendo ser esta mulher mãe de outros filhos, cabe a ela e ao
companheiro – se porventura o tenha – a criação e a proteção daqueles cujo
sustento é impossível por suas próprias forças.
Atingida esta segunda semi-conclusão,
introduzo outro problema que não deve, de forma alguma, ser esquecido. Como
parece ser essência do estado e de seus serviços públicos, ele opera mal, com
resultados insatisfatórios e é extremamente ineficiente. Tal como no combate às
drogas e nas campanhas pelo desarmamento, sua ação não soluciona os problemas
em evidência e as consequências advindas conseguem deteriorar suas condições. E
os custos envolvidos em todos estes casos são incrivelmente altos. A prática do
aborto, infelizmente, como qualquer outro homicídio, jamais poderá ser sanada.
Parece existir um movimento irresistível que conduz nações inteiras à
legalização de sua prática. Este momento, cedo ou tarde, também chegará ao
Brasil, isto já não estiver instalado em seu seio. Todavia, como já ficou claro
anteriormente, sua possível legalização não conduz, ou não deve conduzir, a
fazer do estado um ente responsável perante a sociedade, no sentido de possuir
um dever, em fornecer as condições de possibilidade do aborto. Não sendo
direito de qualquer pessoa praticar ato contra a vida de outrem, tampouco deve
ser dever daquele que por origem deve assegurar o direito à vida oferecer todos
os meios necessários a esta prática abominável.
Em contrapartida ao o que muitos de seus
opositores defendem, o principal campo de batalha contra a prática do aborto,
no qual realmente os esforços podem render frutos muito mais valiosos e
eficientes a longo prazo, consiste no ensino e na disseminação da virtude[3]. Uma sociedade livre não
existe sem antes estar pautada em valores ou princípios de aceitação comum. A
finalidade desta sociedade, como sabemos, deve sempre ser a liberdade,
individual, civil e política; e, para tanto, se converge porque entendemos que
uma sociedade de indivíduos livres é, além de moralmente superior às suas possíveis
alternativas, a melhor organização possível, haja vista que possibilita a
autonomia e a ação livre - porque moral – de todos. Neste sentido, e apenas
neste, a legalização do aborto torna-se minimamente razoável (embora, a meu
ver, continue imoral): muito mais valoroso e importante do que a coerção é a
possibilidade da livre escolha, a tomada de consciência da importância e do
caráter virtuoso de uma determinada conduta, neste caso, a colocação da vida
como valor supremo. Os esforços da sociedade contra o aborto podem ser mais
eficientemente empregados quando destinados a unir aquilo que sempre esteve no
cerne da mensagem liberal: a liberdade não tem sentido se não estiver associada
à virtude. A liberdade é pré-condição para a ação virtuosa, e esta é
extremamente necessária para a sobrevivência da liberdade.
A mensagem de que o aborto não passa de uma
relativização da vida deve ser espalhada se se quer assegurar que vida de
muitos seja preservada. Cedo ou tarde, o aborto será legalizado e, como
informei no início, trata-se de uma questão que origina infindáveis debates,
sem antes apresentar um desfecho plausível. O importante é estarmos preparados e
agirmos com a coerência necessária, isto é, as mulheres contrárias ao aborto,
que sigam com a gestação e futura criação até o fim; os contrários ao aborto,
que se disponham a socorrer à mulher que desejar interromper a gravidez,
mostrando-lhe o absurdo desta medida e lhe fornecendo, de algum modo, auxilio
para que a gestação continue.
[1]
Salvo, é claro, se este próximo atenta contra minha própria vida e liberdade.
[2]
Ainda assim, tal situação não conduz a uma relação de causalidade sui generis que possa nos fazer afirmar
categoricamente que em todos os casos semelhantes ele possa ser permitido.
[3]
Virtude no sentido clássico do termo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário