"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Desengane-se: o Conservadorismo e o Liberalismo possuem afinidades

 Há certo tempo foi escrito por Carlos Góes, membro fundador do Instituto Mercado Popular, um texto[1] um tanto quanto ousado, provocador, que se versa sobre um tema essencialmente polêmico, a saber, a divergência entre conservadorismo e liberalismo. Contudo, distante de ser revelador quanto a doutrina do conservadorismo, o texto acaba pecando por sua análise superficial quanto ao tema a que se propõe.

 Em muitos momentos, parece-nos que certos conceitos e visões manifestados pelo autor a respeito da doutrina conservadora não correspondem ou não a descrevem – perdem-se em lugares-comuns e equívocos singelos. O mesmo se pode dizer quanto ao liberalismo: os próprios autores citados em seu texto possuem páginas e mais páginas que evocam um comum acordo com muitos autores ditos conservadores.

 Mas, comecemos do início. Propõe Góes que “o foco fundamental dos conservadores é na tradição, nos costumes e na continuidade”, utilizando, para tanto, o famoso texto de Russel Kirk, contido em sua obra A Política da Prudência[2]. Ora, nesta mesma obra – nada modesta, nem pequena -, enfatiza o autor que o conservadorismo se trata de doutrina filosófica e política cujo principal objetivo é a conservação do edifício social e político, com os respectivos valores a ele associados, que contribuíram e nos legaram todos os benefícios, tradições e virtudes que gozamos em vida coletiva. O império da Lei, a ordem, a liberdade civil, a propriedade privada, as trocas voluntárias do comércio compõem o corolário de uma civilização por demais valiosa que precisa, sob pena de fazer desaparecer tudo aquilo pelo qual nutrimos profundo amor e veneração, ser conservada a fim de assegurar às gerações vindouras os tesouros que hoje herdamos e necessitamos conservar.

 Por isto mesmo, por esta visão que possui em seu seio preocupação primordial com o futuro e com a herança cultural que hoje é construída, melhorada e preservada, entendem os modernos conservadores que – isto sim – a sociedade deve ser entendida como um contrato. Mas não um contrato à maneira jusnaturalista, que precede um estado de natureza teórico e fundamenta um corpo político. Um contrato tácito, silencioso, milenar, de compromissos, direitos e deveres, que compõe a um determinado povo sua identidade e a seus habitantes seu sentimento de pertença, de solidariedade, o fundamento do tecido social que une a todos a partir de uma linguagem de compreensão comum e sem o qual as individualidades dissipar-se-iam como moscas num dia quente de verão. Em suma, um contrato que tem em si um capital social e humano, cheio daquele conhecimento empírico e não “teorizável” em livros ou compêndios, que foi resultado da interação social de muitas gerações precedentes e que correspondem ás muitas soluções para problemas concretos enfrentados no passado.

 A experiência, a realidade empírica, a história, é sem dúvida a única fonte e farol confiável para a tomada de decisão moral e política. As tradições e práticas que há tento perduram têm mais valor do que abstrações e cálculos geométricos em razão do fato de terem sobrevivido, como diz Coutinho[3], aos “testes do tempo”. Tais valores são racionais justamente porque resultam de uma “seleção natural”, em que as práticas mais adequadas à conservação e sobrevivência de um ordenamento social e político preservaram-se no tempo, demonstrando a sua vantagem em relação a outras possíveis alternativas.

 Neste sentido, a experiência mostra-se mais sábia e, portanto, mais valiosa para a ciência da moral e da política do que as soluções metafísicas e abstratas de um grupo qualquer de filósofos ou intelectuais, no mais das vezes nada mais do que meras utopias. Mas se engana se com isto se quer dizer que o conservadorismo consista numa ode adulatória ao status quo. Em direção diametralmente oposta à afirmação “as mudanças, embora necessárias para a nossa sobrevivência, são vistas como um mal inevitável”, a doutrina conservadora enxerga a mudança como a possibilidade máxima de conservação, de reparo de uma pequena parte em prol da sustentação de todo o edifício. A mudança não é avessa ao espírito conservador. Este a vê como algo positivo, necessário uma vez que a sociedade é um corpo orgânico, sujeito a mudanças para as quais as próprias tradições devem adaptar-se; algo positivo também desde que seja operada e levada adiante de forma prudente, gradual, sem pôr em risco as demais estruturas que mantêm a solidez do corpo político.


 Para tanto, é revelador notar a defesa ardorosa de Edmund Burke[4], talvez o maior de todos os conservadores modernos, da revolução americana e de sua independência face à coroa britânica. A política inglesa na colônia ultramarina já deixara de conservar e proporcionar aquilo que justamente a constituira através dos séculos: a liberdade dos súditos, a representação, a autonomia. Tornara-se tirania, e a busca dos colonos por independência e uma nova constituição que lhes assegurasse de uma vez por todas sua liberdade e independência era interesse genuíno e inteiramente legítimo. Da mesma forma, sua crítica ferrenha à Revolução Francesa não pode confundir-se com o interesse em manter o Antigo Regime e suas instituições. A crítica à Revolução dá-se, principalmente, por seu método, por sua psicologia de destruição total, pela aniquilação total do capital social e pela tentativa em reduzir a zero, em fazer como tábula rasa toda uma sociedade de séculos e séculos de história e desenvolvimento. Não se tratava de manter o status quo; trata-se de manter o que havia de positivo no estado francês, de evitar, em suma, a barbárie.

 Mais revelador ainda é notar as influências de outro grande filósofo conservador, David Hume, no pensamento político e econômico de Adam Smith[5]. A Riqueza das Nações, publicada em 1776, expõe de forma clara a preponderância do peso da experiência e do espírito cético sobre a análise de um fenômeno de tamanha grandeza como aquilo que Smith denomina como Sociedade Comercial. Sua obra não é um tratado filosófico-metafísico, de proposições abstratas ou puramente lógicas e formais. Seu estudo é antes de mais nada resultado da observação acurada da experiência fornecida pela imbrincada rede de relações comerciais e sociais que constituem o nascente capitalismo. Seu livro não visa a um objetivo moral de orientar um leitor por um rigoroso “dever-ser”. Ao fim e ao cabo, apenas exprime aquilo que é o livre comércio, e as vantagens inúmeras que dele advém.

 Chocante é também observar, se concordamos de início com Góes, como um conservador ardoroso como Joaquim Nabuco[6], leitor famigerado de Burke e John Mill, opôs-se como ninguém mais à escravidão no Brasil. Ou como um liberal de tanto prestígio como Hayek[7] demonstrou, à guisa de continuidade da tradição iniciada por Burke, Hume, Smith e Toqueville, que o livre mercado nada mais era do que o fruto de algo denominado Ordem espontânea – uma tradição criada pelos próprios indivíduos em interação social que viram nesta prática um instrumento de grande vantagem e valor e decidiram, por isto mesmo, mantê-la ao longo dos séculos. A sociedade comercial, das trocas voluntárias, tão natural à vida humana como a linguagem –eis a mensagem primordial de Hayek em sua obra A Constituição da Liberdade[8].

 Vale lembrar, por fim, que há no próprio Hayek o mesmo receio observado em Benjamim Constant, Ludwig von Mises, Eric Vögelin, Willhem Röpfke, Murray Rothbard e tantos outros, radicais liberais ou conservadores intransigentes: a tentativa de manusear, moldar e manipular a sociedade como se esta fosse um laboratório propenso a servir de campo de prática de experiências que pudessem comprovar teorias abstratas e metafísicas desenvolvidas por cientistas afastados da realidade social. A sociedade é um todo orgânico, com suas próprias leis e sujeita a eterna mudança, que não pode ser mudada à força por ordem ou pela força de um tirano de uma elite de burocratas governamentais. A afinidade que, em suma, une liberais e conservadores é esta, i.e.,a luta pela liberdade e preservação das tradições positivas através da mudanças ou regeneração dos costumes que perderam seu sentido ou se mostraram prejudiciais. Ou, como diria, Oakeshott, o amor por aquilo que herdamos e a que damos valor é o verdadeiros instinto conservador, que até os mais radicais possuem, ainda que em menor medida[9].




[1] http://mercadopopular.org/2014/01/nao-se-engane-o-conservadorismo-e-antagonico-ao-liberalismo/
[2] http://livrosconservadores.com.br/a-politica-da-prudencia-russell-kirk/
[3] http://docslide.com.br/documents/as-ideias-conservadoras-joao-pereira-coutinhopdf.html
[4] http://www.kirkcenter.org/index.php/detail/how-dead-is-burke-1950/
[5] https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/69198/mod_resource/content/3/CHY%20A%20Riqueza%20das%20Na%C3%A7%C3%B5es.pdf
[6] http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000096.pdf
[7] http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp036379.pdf
[8] http://docplayer.com.br/10369204-A-contribuicao-de-hayek-as-ideias-politicas-e-economicas-de-nosso-tempo.html
[9] http://faculty.rcc.edu/sellick/On%20Being%20Conservative.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário