Há certo tempo foi escrito por Carlos Góes,
membro fundador do Instituto Mercado Popular, um texto[1] um tanto quanto ousado, provocador,
que se versa sobre um tema essencialmente polêmico, a saber, a divergência
entre conservadorismo e liberalismo. Contudo, distante de ser revelador quanto a
doutrina do conservadorismo, o texto acaba pecando por sua análise superficial quanto
ao tema a que se propõe.
Em muitos momentos, parece-nos que certos
conceitos e visões manifestados pelo autor a respeito da doutrina conservadora
não correspondem ou não a descrevem – perdem-se em lugares-comuns e equívocos
singelos. O mesmo se pode dizer quanto ao liberalismo: os próprios autores
citados em seu texto possuem páginas e mais páginas que evocam um comum acordo
com muitos autores ditos conservadores.
Mas, comecemos do início. Propõe Góes que “o
foco fundamental dos conservadores é na tradição, nos costumes e na
continuidade”, utilizando, para tanto, o famoso texto de Russel Kirk, contido
em sua obra A Política da Prudência[2].
Ora, nesta mesma obra – nada modesta, nem pequena -, enfatiza o autor que o
conservadorismo se trata de doutrina filosófica e política cujo principal
objetivo é a conservação do edifício social e político, com os respectivos
valores a ele associados, que contribuíram e nos legaram todos os benefícios,
tradições e virtudes que gozamos em vida coletiva. O império da Lei, a ordem, a
liberdade civil, a propriedade privada, as trocas voluntárias do comércio
compõem o corolário de uma civilização por demais valiosa que precisa, sob pena
de fazer desaparecer tudo aquilo pelo qual nutrimos profundo amor e veneração,
ser conservada a fim de assegurar às gerações vindouras os tesouros que hoje
herdamos e necessitamos conservar.
Por isto mesmo, por esta visão que possui em
seu seio preocupação primordial com o futuro e com a herança cultural que hoje
é construída, melhorada e preservada, entendem os modernos conservadores que –
isto sim – a sociedade deve ser entendida como um contrato. Mas não um contrato
à maneira jusnaturalista, que precede um estado de natureza teórico e
fundamenta um corpo político. Um contrato tácito, silencioso, milenar, de
compromissos, direitos e deveres, que compõe a um determinado povo sua
identidade e a seus habitantes seu sentimento de pertença, de solidariedade, o
fundamento do tecido social que une a todos a partir de uma linguagem de compreensão
comum e sem o qual as individualidades dissipar-se-iam como moscas num dia
quente de verão. Em suma, um contrato que tem em si um capital social e humano,
cheio daquele conhecimento empírico e não “teorizável” em livros ou compêndios,
que foi resultado da interação social de muitas gerações precedentes e que
correspondem ás muitas soluções para problemas concretos enfrentados no
passado.
A experiência, a realidade empírica, a
história, é sem dúvida a única fonte e farol confiável para a tomada de decisão
moral e política. As tradições e práticas que há tento perduram têm mais valor
do que abstrações e cálculos geométricos em razão do fato de terem sobrevivido,
como diz Coutinho[3],
aos “testes do tempo”. Tais valores são racionais justamente porque resultam de
uma “seleção natural”, em que as práticas mais adequadas à conservação e
sobrevivência de um ordenamento social e político preservaram-se no tempo,
demonstrando a sua vantagem em relação a outras possíveis alternativas.
Neste sentido, a experiência mostra-se mais
sábia e, portanto, mais valiosa para a ciência da moral e da política do que as
soluções metafísicas e abstratas de um grupo qualquer de filósofos ou
intelectuais, no mais das vezes nada mais do que meras utopias. Mas se engana
se com isto se quer dizer que o conservadorismo consista numa ode adulatória ao
status quo. Em direção diametralmente
oposta à afirmação “as mudanças, embora necessárias para a nossa sobrevivência,
são vistas como um mal inevitável”, a doutrina conservadora enxerga a mudança
como a possibilidade máxima de conservação, de reparo de uma pequena parte em
prol da sustentação de todo o edifício. A mudança não é avessa ao espírito
conservador. Este a vê como algo positivo, necessário uma vez que a sociedade é
um corpo orgânico, sujeito a mudanças para as quais as próprias tradições devem
adaptar-se; algo positivo também desde que seja operada e levada adiante de
forma prudente, gradual, sem pôr em risco as demais estruturas que mantêm a
solidez do corpo político.
Para tanto, é revelador notar a defesa
ardorosa de Edmund Burke[4], talvez o maior de todos
os conservadores modernos, da revolução americana e de sua independência face à
coroa britânica. A política inglesa na colônia ultramarina já deixara de
conservar e proporcionar aquilo que justamente a constituira através dos
séculos: a liberdade dos súditos, a representação, a autonomia. Tornara-se
tirania, e a busca dos colonos por independência e uma nova constituição que
lhes assegurasse de uma vez por todas sua liberdade e independência era
interesse genuíno e inteiramente legítimo. Da mesma forma, sua crítica ferrenha
à Revolução Francesa não pode confundir-se com o interesse em manter o Antigo
Regime e suas instituições. A crítica à Revolução dá-se, principalmente, por
seu método, por sua psicologia de destruição total, pela aniquilação total do
capital social e pela tentativa em reduzir a zero, em fazer como tábula rasa
toda uma sociedade de séculos e séculos de história e desenvolvimento. Não se
tratava de manter o status quo; trata-se de manter o que havia de positivo no
estado francês, de evitar, em suma, a barbárie.
Mais revelador ainda é notar as influências de
outro grande filósofo conservador, David Hume, no pensamento político e
econômico de Adam Smith[5]. A Riqueza das Nações,
publicada em 1776, expõe de forma clara a preponderância do peso da experiência
e do espírito cético sobre a análise de um fenômeno de tamanha grandeza como
aquilo que Smith denomina como Sociedade Comercial. Sua obra não é um tratado
filosófico-metafísico, de proposições abstratas ou puramente lógicas e formais.
Seu estudo é antes de mais nada resultado da observação acurada da experiência
fornecida pela imbrincada rede de relações comerciais e sociais que constituem
o nascente capitalismo. Seu livro não visa a um objetivo moral de orientar um
leitor por um rigoroso “dever-ser”. Ao fim e ao cabo, apenas exprime aquilo que
é o livre comércio, e as vantagens
inúmeras que dele advém.
Chocante é também observar, se concordamos de
início com Góes, como um conservador ardoroso como Joaquim Nabuco[6], leitor famigerado de
Burke e John Mill, opôs-se como ninguém mais à escravidão no Brasil. Ou como um
liberal de tanto prestígio como Hayek[7] demonstrou, à guisa de
continuidade da tradição iniciada por Burke, Hume, Smith e Toqueville, que o
livre mercado nada mais era do que o fruto de algo denominado Ordem espontânea – uma tradição criada
pelos próprios indivíduos em interação social que viram nesta prática um
instrumento de grande vantagem e valor e decidiram, por isto mesmo, mantê-la ao
longo dos séculos. A sociedade comercial, das trocas voluntárias, tão natural à
vida humana como a linguagem –eis a mensagem primordial de Hayek em sua obra A Constituição da Liberdade[8].
Vale lembrar, por fim, que há no próprio Hayek
o mesmo receio observado em Benjamim Constant, Ludwig von Mises, Eric Vögelin, Willhem
Röpfke, Murray Rothbard e tantos outros, radicais liberais ou conservadores
intransigentes: a tentativa de manusear, moldar e manipular a sociedade como se
esta fosse um laboratório propenso a servir de campo de prática de experiências
que pudessem comprovar teorias abstratas e metafísicas desenvolvidas por
cientistas afastados da realidade social. A sociedade é um todo orgânico, com
suas próprias leis e sujeita a eterna mudança, que não pode ser mudada à força
por ordem ou pela força de um tirano de uma elite de burocratas governamentais.
A afinidade que, em suma, une liberais e conservadores é esta, i.e.,a luta pela
liberdade e preservação das tradições positivas através da mudanças ou
regeneração dos costumes que perderam seu sentido ou se mostraram prejudiciais.
Ou, como diria, Oakeshott, o amor por aquilo que herdamos e a que damos valor é
o verdadeiros instinto conservador, que até os mais radicais possuem, ainda que
em menor medida[9].
[1] http://mercadopopular.org/2014/01/nao-se-engane-o-conservadorismo-e-antagonico-ao-liberalismo/
[2] http://livrosconservadores.com.br/a-politica-da-prudencia-russell-kirk/
[3] http://docslide.com.br/documents/as-ideias-conservadoras-joao-pereira-coutinhopdf.html
[4] http://www.kirkcenter.org/index.php/detail/how-dead-is-burke-1950/
[5] https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/69198/mod_resource/content/3/CHY%20A%20Riqueza%20das%20Na%C3%A7%C3%B5es.pdf
[6] http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000096.pdf
[7] http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp036379.pdf
[8] http://docplayer.com.br/10369204-A-contribuicao-de-hayek-as-ideias-politicas-e-economicas-de-nosso-tempo.html
[9] http://faculty.rcc.edu/sellick/On%20Being%20Conservative.pdf
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