“A USP está em greve, de
novo?” – Sim, está. Novamente, a maior universidade da América Latina encontra-se
paralisada em mais uma greve que, tudo indica, há de se estender por tempo
indeterminado. Iniciada com a paralisação total dos funcionários da
universidade no último dia 12 de maio, não levou muito tempo para que também os
alunos e alguns professores aderissem ao movimento.
Obviamente,
não se trata de algo novo. Não raro greves, sem ou com esta mesma magnitude,
tomam noticiários e são decretadas também em outras universidades públicas ou
federais Brasil afora. Cumpre notar, no entanto, que todo este cenário seja,
talvez, antes mais um sintoma de um quadro geral que tem se arrastado há vários
anos do que o problema por excelência desse setor.
Desde os anos 1990 verdadeiras crises
orçamentarias tem acometido boa parte das universidades públicas no Brasil, em
especial no Estado de São Paulo. Em nossa década, estes números se tornaram
ainda mais agravantes no que tange à Universidade de São Paulo, que opera desde
setembro de 2015 com congelamento de 20% de seus gastos previstos. Atualmente,
mais de 100% da receita obtida pela universidade com os Repasses do Tesouro do
Estado é direcionada ao pagamento de salários e benefícios de seus servidores e
também por isso suas próprias reservas financeiras tem sido utilizadas, desde
2014, para a quitação do rombo que é deixado a cada ano pelo déficit
orçamentário.
O culpado da vez é João Grandino Rodas,
antecessor do atual reitor Marco Antonio Zago, o qual, segundo se afirma, teria
alavancado em proporções desmedidas os gastos da universidade. Possíveis
desvios ilícitos de receita também lhe são creditados, sem denúncia formal por
enquanto, mas evidenciam mais um aspecto da falta de transparência e,
consequentemente, da atual crise universitária para a qual endereço agora estas
reflexões.
Também não é de hoje que é saliente uma certa “injustiça”
no funcionamento da instituição: numa universidade cujos recursos advém de um dos
principais tributos sobre consumo do Estado (ICMS), a absoluta maioria de seu
corpo estudantil é constituída, sobretudo, por alunos tidos brancos que não
fizeram uso do ensino público durante prévia formação, enquanto o espólio nada
generoso do estado que a financia não discrimina ou se restringe a parcelas
específicas da população . O resultado, sem dúvida, dá-se com o aumento das
desigualdades sociais e econômica observadas no Estado. As soluções elencadas
para este problema não são, todavia, promissoras. Por um lado, as cotas raciais
– refiro-me especificamente a elas em razão de não terem sido, até o momento,
implementadas pela universidade em questão - padecem de um velho problema: em
sua maioria modelos importados de outros países, não levam em consideração a
confusão que se faz comumente entre cor e raça e a extrema dificuldade que
consiste em, numa população cuja parte majoritária é afrodescendente,
distinguir fatalmente e sem equívoco negros de brancos ou de indígenas. Como diria o autor de As Raízes do Brasil, a miscigenação é um conceito histórico chave
para se entender a realidade política e social brasileira. Por outro, as muitas
conjeturas para substituição do vestibular por outra porta de entrada esbarram muitas
vezes em obstáculos prévios ou extremismos. No primeiro caso, a sugerida
implantação de um método americano de seleção de alunos recém-formados no ensino
médio tampouco seria justa em virtude dos sérios problemas que atingem a
educação básica. No segundo, a extinção do vestibular sem substituição por
outro método coloca em xeque os recursos da universidade, que são escassos e
com certeza não seriam capazes de suportar, no sentido de fornecer um serviço com
requisitos mínimos de funcionamento, nem mesmo um ligeiro aumento do número
total de alunos matriculados. Mesmo a alternativa de se cobrar um tipo de “mensalidade”
sobre os alunos mais afortunados, talvez com o intuito de criar vagas
específicas para os estratos mais desfavorecidos com a receita obtida, não
escapa à chamada “dupla tributação”, fenômeno onde a pessoa tributada para a
existência de determinado serviço ainda precisa, num segundo momento, pagar
diretamente pela utilização do mesmo.
A causa primordial para as greves dos últimos
anos, entretanto, parece residir em ainda outro aspecto que não deve deixar de
ser mencionado quando o assunto é USP. Com
efeito, ela tem sido frequentemente utilizada como instrumento de disputas
político-partidárias exógenas, como celeiro de recrutamento de membros e
militantes que, manobrados, agem e hasteiam bandeiras das mais diversas siglas
partidárias. Obviamente, não quero dizer com isso que o movimento estudantil
seja ilegítimo ou não deva existir. Nada há de mais arbitrário. O que se
sobressai é antes o aparelhamento destes movimentos organizados como braços estendidos
de legendas políticas que possuem finalidades distintas de uma universidade. Como
já fiz notar, a falta de transparência nas contas universitárias é motivo suficiente
para se desconfiar de esquemas gigantescos de desvio de recursos públicos,
onde, nesta verdadeira festa da canalhice, quase “todo mundo deseja fazer uma
boquinha”.
Isto é mais claro quando se leva em
consideração a ação do SINTUSP (Sindicato dos Trabalhadores da USP). Além de
recair num problema mais geral da ausência de liberdade sindical e da
contribuição obrigatória, cada vez mais se discute sobre a irrelevância, ou
melhor, sobre os impactos negativos da ação de associações sindicais sobre os
próprios funcionários e, no caso da USP, sobre toda a comunidade universitária.
Não há qualquer tipo exigência à transparência dos recursos repassados e
geridos por sindicatos brasileiros, nem tampouco estes são exemplos de representatividade
no sentido lato do termo. Inclusive, a impressão que se tem é que a USP age
como um refém do próprio SINTUSP, sem possuir meios de barganha ou de proteção
contra a ação unilateral e muitas vezes autoritária deste último.
E qual é, afinal, o diagnóstico que se tem da
realidade USPiana? Em duas palavras: privilégio e ineficiência. A USP
infelizmente é responsável por consolidar de forma autoritária, direta ou
indiretamente, privilégios da elite econômica, de grupos partidários e de outros
pequenos grupos emparelhados com funções partidárias implícitas. Como todo
empreendimento público ferrenhamente protegido e concentrador de grandes
fortunas, a universidade parece mais servir a outros interesses do que aqueles
propriamente associados ao segmento do ensino. E como
quase todo empreendimento público, há mais gasto do que arrecadação. Os
excessos de burocracia são também notáveis para este fator por encarecerem
reformas e aquisição de novos materiais, geralmente comprados com valor acima
do mercado. De forma análoga ao funcionamento da “coisa pública” no Brasil,
nossas estruturas redistribuem a riqueza dos pobres para os mais abastados. O
ensinamento que se tira de todo este cenário não pode ser senão que o desmonte
e a precarização dessa universidade, e provavelmente de muitas outras públicas
e federais, não resultam (pasmem!) da figura temível do espantalho do “neoliberalismo”,
mas antes da própria insuficiência de modelos falidos de gestão e administração
de recursos e direitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário