"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 4 de junho de 2016

As Duas Faces da Realidade USPiana


 “A USP está em greve, de novo?” – Sim, está. Novamente, a maior universidade da América Latina encontra-se paralisada em mais uma greve que, tudo indica, há de se estender por tempo indeterminado. Iniciada com a paralisação total dos funcionários da universidade no último dia 12 de maio, não levou muito tempo para que também os alunos e alguns professores aderissem ao movimento.

  Obviamente, não se trata de algo novo. Não raro greves, sem ou com esta mesma magnitude, tomam noticiários e são decretadas também em outras universidades públicas ou federais Brasil afora. Cumpre notar, no entanto, que todo este cenário seja, talvez, antes mais um sintoma de um quadro geral que tem se arrastado há vários anos do que o problema por excelência desse setor.  

 Desde os anos 1990 verdadeiras crises orçamentarias tem acometido boa parte das universidades públicas no Brasil, em especial no Estado de São Paulo. Em nossa década, estes números se tornaram ainda mais agravantes no que tange à Universidade de São Paulo, que opera desde setembro de 2015 com congelamento de 20% de seus gastos previstos. Atualmente, mais de 100% da receita obtida pela universidade com os Repasses do Tesouro do Estado é direcionada ao pagamento de salários e benefícios de seus servidores e também por isso suas próprias reservas financeiras tem sido utilizadas, desde 2014, para a quitação do rombo que é deixado a cada ano pelo déficit orçamentário.

 O culpado da vez é João Grandino Rodas, antecessor do atual reitor Marco Antonio Zago, o qual, segundo se afirma, teria alavancado em proporções desmedidas os gastos da universidade. Possíveis desvios ilícitos de receita também lhe são creditados, sem denúncia formal por enquanto, mas evidenciam mais um aspecto da falta de transparência e, consequentemente, da atual crise universitária para a qual endereço agora estas reflexões.

 Também não é de hoje que é saliente uma certa “injustiça” no funcionamento da instituição: numa universidade cujos recursos advém de um dos principais tributos sobre consumo do Estado (ICMS), a absoluta maioria de seu corpo estudantil é constituída, sobretudo, por alunos tidos brancos que não fizeram uso do ensino público durante prévia formação, enquanto o espólio nada generoso do estado que a financia não discrimina ou se restringe a parcelas específicas da população . O resultado, sem dúvida, dá-se com o aumento das desigualdades sociais e econômica observadas no Estado. As soluções elencadas para este problema não são, todavia, promissoras. Por um lado, as cotas raciais – refiro-me especificamente a elas em razão de não terem sido, até o momento, implementadas pela universidade em questão - padecem de um velho problema: em sua maioria modelos importados de outros países, não levam em consideração a confusão que se faz comumente entre cor e raça e a extrema dificuldade que consiste em, numa população cuja parte majoritária é afrodescendente, distinguir fatalmente e sem equívoco negros de brancos ou de indígenas.  Como diria o autor de As Raízes do Brasil, a miscigenação é um conceito histórico chave para se entender a realidade política e social brasileira. Por outro, as muitas conjeturas para substituição do vestibular por outra porta de entrada esbarram muitas vezes em obstáculos prévios ou extremismos. No primeiro caso, a sugerida implantação de um método americano de seleção de alunos recém-formados no ensino médio tampouco seria justa em virtude dos sérios problemas que atingem a educação básica. No segundo, a extinção do vestibular sem substituição por outro método coloca em xeque os recursos da universidade, que são escassos e com certeza não seriam capazes de suportar, no sentido de fornecer um serviço com requisitos mínimos de funcionamento, nem mesmo um ligeiro aumento do número total de alunos matriculados. Mesmo a alternativa de se cobrar um tipo de “mensalidade” sobre os alunos mais afortunados, talvez com o intuito de criar vagas específicas para os estratos mais desfavorecidos com a receita obtida, não escapa à chamada “dupla tributação”, fenômeno onde a pessoa tributada para a existência de determinado serviço ainda precisa, num segundo momento, pagar diretamente pela utilização do mesmo.

 A causa primordial para as greves dos últimos anos, entretanto, parece residir em ainda outro aspecto que não deve deixar de ser mencionado quando o assunto é USP.  Com efeito, ela tem sido frequentemente utilizada como instrumento de disputas político-partidárias exógenas, como celeiro de recrutamento de membros e militantes que, manobrados, agem e hasteiam bandeiras das mais diversas siglas partidárias. Obviamente, não quero dizer com isso que o movimento estudantil seja ilegítimo ou não deva existir. Nada há de mais arbitrário. O que se sobressai é antes o aparelhamento destes movimentos organizados como braços estendidos de legendas políticas que possuem finalidades distintas de uma universidade. Como já fiz notar, a falta de transparência nas contas universitárias é motivo suficiente para se desconfiar de esquemas gigantescos de desvio de recursos públicos, onde, nesta verdadeira festa da canalhice, quase “todo mundo deseja fazer uma boquinha”.

 Isto é mais claro quando se leva em consideração a ação do SINTUSP (Sindicato dos Trabalhadores da USP). Além de recair num problema mais geral da ausência de liberdade sindical e da contribuição obrigatória, cada vez mais se discute sobre a irrelevância, ou melhor, sobre os impactos negativos da ação de associações sindicais sobre os próprios funcionários e, no caso da USP, sobre toda a comunidade universitária. Não há qualquer tipo exigência à transparência dos recursos repassados e geridos por sindicatos brasileiros, nem tampouco estes são exemplos de representatividade no sentido lato do termo. Inclusive, a impressão que se tem é que a USP age como um refém do próprio SINTUSP, sem possuir meios de barganha ou de proteção contra a ação unilateral e muitas vezes autoritária deste último.


 E qual é, afinal, o diagnóstico que se tem da realidade USPiana? Em duas palavras: privilégio e ineficiência. A USP infelizmente é responsável por consolidar de forma autoritária, direta ou indiretamente, privilégios da elite econômica, de grupos partidários e de outros pequenos grupos emparelhados com funções partidárias implícitas. Como todo empreendimento público ferrenhamente protegido e concentrador de grandes fortunas, a universidade parece mais servir a outros interesses do que aqueles propriamente associados ao segmento do ensino.   E como quase todo empreendimento público, há mais gasto do que arrecadação. Os excessos de burocracia são também notáveis para este fator por encarecerem reformas e aquisição de novos materiais, geralmente comprados com valor acima do mercado. De forma análoga ao funcionamento da “coisa pública” no Brasil, nossas estruturas redistribuem a riqueza dos pobres para os mais abastados. O ensinamento que se tira de todo este cenário não pode ser senão que o desmonte e a precarização dessa universidade, e provavelmente de muitas outras públicas e federais, não resultam (pasmem!) da figura temível do espantalho do “neoliberalismo”, mas antes da própria insuficiência de modelos falidos de gestão e administração de recursos e direitos.     

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