"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

terça-feira, 7 de junho de 2016

A Secessão deveria ser um direito



 Houve na história do Brasil acontecimentos de um tipo tão singular que até hoje manifestam sentimentos indefiníveis e contraditórios nos espíritos daqueles que se debruçam sobre seus detalhes. Seja a Revolução Pernambucana, a Guerra de Canudos ou Guerra dos Farrapos, é difícil estabelecer uma posição definida acerca de seus respectivos desenlaces sem hesitar penosamente ante os aspectos de repressão centralizadora, por um lado, e identidade cultural regional, por outro.

 Fato é que movimentos separatistas e de independência política também permeiam os grandes manuais de história internacional: A guerra civil americana, a Batalha de Bannockburn e a incrível história de William Wallace, na Escócia; o IRI e seus ideias de independência na Irlanda no Norte e a luta pelo fim do Apartheid na África do Sul. Todos os exemplos – até os muitos que não foram citados – nos ajudam a entender e interpretar a longa história humana como um sucedâneo da aspiração de povos e etnias pela liberdade de organizar-se livremente frente a outros poderes tirânicos e despóticos.

 O advento da modernidade experimentou, como disse Hannah Arendt, um significado nunca antes visto para o termo revolução. A fundação de um novo corpo político, a experiência de uma nova liberdade tornou-se o significado premente de um fenômeno político extremamente recente que caracterizou praticamente todo o século XX.

 O que me dá ensejo a escrever este ensaio é a associação entre liberdade e separação que, arrisco dizer, encontro em grande parte dos movimentos políticos de independência. Com efeito, quase todos as guerras de independência africanas ou contextos conturbados de separação das colônias em relação às respectivas metrópoles observados na América e na Ásia partilham de um sentimento evidente: a violação dos costumes, das leis e liberdades de uma civilização local por exércitos e estados-nação claramente movidos por ideias expansionistas e de consolidação de poder econômico e político.

 Mas, quase num movimento de dedução deste princípio, é preciso chamar a atenção para outro fator que nos impulsiona – ou que pelo menos deveria – para uma consideração crítica acerca da própria democracia: a constante e progressiva perda de poder que subsiste em seu seio.  

 Não se trata da perda do poder do governante em relação aos governados, ou dos partidos políticos em relação aos eleitores. É justamente o contrário. Trata-se, antes, da perda do poder de cada indivíduo e, consequentemente a liberdade escolha individual, face ao funcionamento da democracia nos estados nacionais no século XXI.  

 Experienciamos hoje o agigantamento da centralização dos aparatos estatais, com novos instrumentos de controle criados a cada momento. Em praticamente todas as democracias do mundo ocidental, a burocracia cresceu considerável e proporcionalmente aos custos impostos a seus cidadãos para alimentar as pesadas máquinas federais que tentam organizar, centralmente, a vida em cada uma de suas subdivisões.

 Os antigos mitos democráticos de que “a democracia é a vontade do povo” ou de que nela “cada voto conta” perderam – se é que um dia o tiveram – substancialmente seu significado. Ter o direito, salvaguardado em uma constituição, de eleger um presidente ou governador, ou prefeito e mesmo um vereador a cada quatro anos de forma alguma nos protege da coerção que subsiste neste regime. O caso brasileiro é um forte exemplo desta tese, onde boa parte do que ganhamos com o fruto do nosso trabalho é confiscado de forma brutal e direcionado para inúmeros fins sem que possamos ao menos decidir onde, para quem ou o quê será utilizado. Por exemplo: de todas as ONG’s que recebem recursos públicos, você que me lê agora sabe para quais finalidades elas estão ali, se estas finalidades são do seu agrado, se valem o dinheiro que recebem ou se realmente existem? De todos os partidos políticos que são financiados por dinheiro estatal, você concorda com todas as ideologias que cada um defende? Em caso negativo, porque você os financia? O mesmo raciocínio é válido para praticamente tudo: cultura, universidades públicas, segurança pública, empresas estatais, entre outros.

 Em suma, muito mais do que se nos assemelha, nossa liberdade em relação à ação de terceiros e de grupos coletivos é exageradamente reduzida. Nos parece que progressivamente nos esforçamos para viver às custas dos demais. Comunidades locais formadas pela livre associação de seus membros também perdem poder e significado quando confrontadas aos poderes da federação. Boa parte das decisões que são tomadas por nossos políticos não precede nossa consulta e raramente influímos de fato nas resoluções que modelam o futuro do nosso país.

 O direito de secessão, desta forma, surge neste cenário como uma alternativa: se a descentralização do poder central em comunidades menores já produz um aumento considerável de autonomia e liberdade, o que nos impede de formar livremente um grupo independente, autônomo, que partilha um sentimento e conjunto de ideias em comum, que é muito mais próximo à realidade de cada membro, que não viola as liberdades individuais e a cujo poder, limitado, cada membro tem acesso de fato sem ameaçar a perda ou redução da efetiva capacidade de escolha dos demais?    

 Na Constituição de 1988, diz-se que a União é formada indissoluvelmente por cada Estado e território. Mas qual o sentido de limitar o próprio direito da escolha livre de cada cidadão? Nos deveria ser facultado também, numa sociedade livre, a escolha autônoma por viver sob o regime político ou tributário que mais nos agrada. Se não haja um só país que represente nossos ideias políticos e econômicos, que direito possuem nossos governantes de nos impedir de fundar uma nova confederação ou república?

 Ninguém outorgou a nossos governantes tamanho poder. A única legitimidade para que nossos mais íntimos valores e preferências sejam assim ofendidas e descartadas reside unicamente no poder bélico e nas Forças Armadas. Pensar a secessão como um direito – não no sentido de que um determinado governo deve prover a este direito – é também pensar, por fim, a possibilidade de algo novo, a possibilidade da liberdade e da política numa comunidade ou associação livres da tirania.

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