"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Miopia Ideológica


 Nada é tão necessário ao senso investigativo de um leitor do que a habilidade de extrair do texto sobre o qual se debruça o real sentido e conclusão que o mesmo apresenta. Uma concessão, é claro, fazemos: nem todo estilo de leitura tem por finalidade destrinchar de forma pormenorizada as sentenças, argumentos e inferências lógicas que compõem seu objeto. Verdadeira severidade seria desestimular o leitor acostumado à contemplação literária por dele aguardar uma resolução que não é exigida pelo contexto.

 Caracterizações à parte, a asserção inicial deste ensaio nos conduz, quando manuseada como medida de análise do conteúdo que segue abaixo, a seu contrário, que expressamos como a absoluta (des)necessidade de inferir do conteúdo observado aquilo que não se lhe está presente.  Tão ruim quanto, é absoluta frivolidade, fruto de arroubos desenfreados, tentar erigir-lhe tese anteposta sem considerar seus pontos centrais.

 O caso em questão, que serve de exemplo adequado à exposição, teve nova oportunidade de se suceder quando certas críticas a uma pequena postagem em rede social do ex presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, tomaram corpo e vieram a público imbuídas de um forte senso de reprovação. Oriundas, num primeiro momento, de profissionais da política pertencentes ao Partido dos Trabalhadores, a réplica nelas contida logo se difundiu para outros setores, denotando sua sutil finalidade de contrabalançar o sentido efetivo de uma declaração através de um piparote que convida a denegrir a integridade moral e a coerência do argüidor.   
 Nesta segunda-feira que se sucedeu às últimas manifestações de 16/08, o ex chefe de governo assim escreveu:

"O mais significativo das demonstrações, como as de ontem, é a persistência do sentimento popular de que o governo, embora legal, é ilegítimo. Falta-lhe a base moral, que foi corroída pelas falcatruas do lulopetismo. Com a metáfora do boneco vestido de presidiário, a Presidente, mesmo que pessoalmente possa se salvaguardar, sofre contaminação dos malfeitos de seu patrono e vai perdendo condições de governar. A esta altura, os conchavos de cúpula só aumentam a reação popular negativa e não devolvem legitimidade ao governo, isto é, a aceitação de seu direito de mandar, de conduzir. Se a própria Presidente não for capaz do gesto de grandeza (renúncia ou a voz franca de que errou, e sabe apontar os caminhos da recuperação nacional), assistiremos à desarticulação crescente do governo e do Congresso, a golpes de Lavajato. Até que algum líder com forca moral diga, como o fez Ulysses Guimarães, com a Constituição na mão, ao Collor: você pensa que é presidente, mas já não é mais".    

Com o dever inicial, para sua total compreensão, de delinear o contexto ao qual a declaração se insere, talvez não seja agir de forma demasiadamente arbitrária tomá-la como mensagem endereçada ao discurso da Presidente Dilma Roussef feito ainda na semana anterior, no qual, com vistas a redargüir a posição favorável a sua deposição via impeachment, ancorava a legitimidade de seu governo no sufrágio universal que a elegera. Na ocasião, a menção ao ápice da vida democrática tinha por função oferecer respaldo a seu governo que numa onda crescente de instabilidades se vira tomado pela redução dos poderes de barganha com as Casas da União e do apoio popular, outrora amplo.  Desta forma, a declaração do ex presidente tucano pode ser vista como destinada a contrabalançar a associação estabelecida entre legitimidade e voto a partir da inserção, neste debate, de outros elementos caros à constituição de uma democracia.

 De volta à postagem: “O mais significativo das demonstrações, como as de ontem, é a persistência do sentimento popular de que o governo, embora legal, é ilegítimo. Falta-lhe a base moral, que foi corroída pelas falcatruas do lulopetismo”. Com efeito, se é consenso que o caráter lícito e legítimo de um governo em um regime político assentado sobre o princípio da soberania do povo origina-se no sufrágio, concede-se também ao mesmo regime sua forte dependência das percepções e das formas como o eleitor enxerga as medidas que são tomadas. Próximo de outro princípio assaz fundamental, identificado como a possibilidade deste mesmo povo subtrair do representante máximo o poder que lhe foi diretamente concedido, isto equivale a dizer que a visibilidade do governo por parte do eleitorado constitui parâmetro, ainda que dubitável, capaz de mensurar os limites e flexibilidades da ação política do governante numa dada situação. O que as últimas manifestações do dia 16/08 demonstram, juntamente com as recentes pesquisas de visibilidade da opinião pública sobre o atual governo Dilma é sua avassaladora perda de apoio popular que pode, na opinião de FHC, comprometer suas condições e escopo de ação e medidas atualmente em curso. Os escândalos recentes associados ao avanço da operação Lava-Jato e a crise econômica que demonstra estar ainda em seu início representam, para o cidadão comum, a corrosão das bases e dos valores de idoneidade, gestão respeitosa e eficiente de recursos públicos e das finanças advindas da tributação e eliminação da pobreza sobre os quais se alicerçavam o edifício político do atual mandato. De certa forma, a perda de confiança e sentimento de traição que boa parte da parcela da população parece nutrir em relação ao governo Dilma em última instância faz gestar no “seio do povo” não apenas o réprobo diante do que se agiganta a nossos olhos, mas a perda do reconhecimento geral da autoridade e justeza de sua ação política. O elo entre a legitimidade e o voto, segundo FHC, aqui parece, portanto, ter se rompido ou carecer de sentido na medida em que se põe em questão o sufrágio como garantia exclusiva de uma democracia.    

 Em adição, se por outro lado trazemos a discussão presente para a ótica de outro elemento não menos importante do governo democrático, a saber, a divisão de poderes, salta aos olhos a perda de apoio do poder executivo dentro das Casas do Senado e da Câmara. Nos termos do ex-presidente: “A esta altura, os conchavos de cúpula só aumentam a reação popular negativa e não devolvem legitimidade ao governo, isto é, a aceitação de seu direito de mandar, de conduzir.” A esterilidade do diálogo político e de tentativas de estabelecer ações conjuntas entre executivo e legislativo, tal qual proposto, por exemplo, pelo senador Renan Calheiros, evidenciam a estreiteza do escopo de ações possíveis em que estacionou o atual poder executivo. Tão importante quanto as reações negativas populares neste cenário são as reações de reprovação manifestadas no Congresso que subtraem também, por seu turno, qualquer força moral da Presidente e colocam em xeque sua atual capacidade de conduzir os negócios da política.  E como fator resultante desta inação política, resta a FHC concluir: “Se a própria Presidente não for capaz do gesto de grandeza (renúncia ou a voz franca de que errou, e sabe apontar os caminhos da recuperação nacional), assistiremos à desarticulação crescente do governo e do Congresso, a golpes de Lavajato.” Dito de outro modo, face ao estado em que parece se encontrar a Presidente – acuada por todos os lados e moralmente abatida pela perda de boa parte de sua força – a situação tende a se agravar se nenhuma atitude for tomada neste momento. A busca por uma conciliação deve ser enfatizada e levada à prática o mais breve possível, antes “que algum líder com forca moral diga, como o fez Ulysses Guimarães, com a Constituição na mão, ao Collor: você pensa que é presidente, mas já não é mais".

 O sentido real da declaração, mais do que incentivar um debate acerca das ilicitudes que rodeiam ou não um partido que possui sua identificação máxima com um símbolo da luta dos trabalhadores do Brasil, reside – a meu ver, é claro - no aviso desesperançoso, fruto de análise da penosa instabilidade que hoje nos governa, acerca do futuro lastimoso que se avizinha com força nos quadros da política. Me é triste observar, porém, como alguns representantes políticos, formadores de opinião e diversos bloguistas se furtam, em razão, possivelmente, de uma miopia ideológica, a este debate através de uma suposta réplica ao texto e seus argumentos fundamentada sobre juízos de valor dirigidos ao autor do texto. Longe de propor uma verdadeira competição entre espoliadores do tesouro e da máquina pública a fim de desvendar seu mais perito contendor, é possível extrair do texto sua finalidade de apresentar um ponto de vista a respeito de nossa atual crise política, sem permitir, por seu conteúdo, fundamentar uma nova teoria sobre o momento mais oportuno de renúncia de um Presidente que deva se aplicar a todas as situações em que o fenômeno de reprovação popular e do descrédito de suas ações advir. Por fim, FHC não parece propor um novo princípio teórico, mas antes apenas parece exercitar a faculdade de aplicar princípios da política às situações concretas deste próprio âmbito.  E é inegável como é infrutífero propor uma crítica sem entender a posição que a provoca.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário