Na história econômica
recente do Brasil considera-se evidente que o grave problema inflacionário, que
por tantas décadas assolou a vida dos brasileiros, vê-se superado. É relativo
consenso entre os economistas e cientistas sociais que esta vitória monetária,
a qual tornou possível o rearranjo mais eficiente do dispêndio público, das
etapas do sistema produtivo nacional e do combate à extrema pobreza e
desigualdade, resultou da implantação bem-sucedida do Plano Real.
Inaugurado
oficialmente em julho de 1994, após um ano de uso do indexador representado
pela URV, o Plano Real tem sua história dividida em duas partes. Num primeiro
momento, com o regime de âncora cambial e busca da paridade da nova moeda com o
dólar americano, buscou-se trazer com o estímulo às importações e à entrada do
capital estrangeiro uma maior competividade à economia nacional que pudesse
resultar numa queda expressiva dos preços finais praticados internamente. Nesse
momento, diante do ritmo ascendente de crescimento da dívida pública –
decorrido, em parte, pelos seguidos déficits orçamentários ocorridos desde 1994
– e pela necessidade inescapável de se obter maior quantidade da moeda americana,
necessária para manter o câmbio no nível almejado, entraram em cena as
privatizações da Vale do Rio Doce e da Telebrás.
Contudo, na esteira de
déficits consecutivos do balanço de pagamentos, que fazia agravar a (in)solvência
brasileira a seus credores externos, e diante das crises ocorridas no México e,
sobretudo na Rússia, não puderam mais as autoridades econômicas e formuladores de
políticas sustentar o modelo então em voga a partir de um volume tão baixo de
reservas internacionais. A desvalorização cambial então ocorrida, aliada aos
prognósticos pessimistas a respeito da evolução da dívida pública, fizeram
ressuscitar o temor com o retorno da aceleração inflacionária e seus tétricos correlatos.
A segunda parte da
história do Plano Real apresenta a solução tomada para se colocar a
estabilidade monetária novamente em bom caminho. Acordados os termos de um
empréstimo ao FMI em 1998-1999, adotou-se o que, em uso até mais ou menos 2011,
se convencionou chamar de tripé-macroeconômico: sistema de metas de inflação
(com independência do Banco Central), câmbio flutuante e superávit primário. A
estratégia de estabilização era clara: o déficit orçamentário, eliminado seu
remédio amargo inflacionário de anos pretéritos, deveria ser combatido com o
rigor da nova Lei de Responsabilidade Fiscal, com os superávits primários obtidos
a partir de então para saldar os juros da dívida e reduzir os alarmantes níveis
de perda de credibilidade da dívida pública; a inflação deveria ser mantida em
níveis “civilizados”, sempre a convergir para a meta estabelecida pela
autoridade monetária máxima, e controlada, sobretudo, pelo uso dos mecanismos
da taxa de juros, a SELIC, e do mercado aberto de venda e compra de títulos da
dívida; e a taxa cambial deveria ser entregue a um regime flutuante – ainda que
sujo -, cuja valorização ficaria suscetível ao sucesso das demais políticas
econômicas, entre elas a monetária e fiscal.
Desde 1999, portanto,
assistimos a uma retomada do crescimento econômico brasileiro, ainda que
tímido, acompanhado por baixos níveis de inflação, uma combinação raríssima em
se tratando de nossa história econômica. A desigualdade e a pobreza extrema
caíram ambas para patamares inéditos e o crescimento do emprego e da renda
passaram a ser manchete nos mais variados veículos de comunicação.
No campo
macroeconômico, o sucesso do tripé era evidente. O superávit primário fora variável
constante durante os dois mandatos Lula, o câmbio mantivera-se flutuante e valorizado
durante mais de uma década, e a dívida pública, seguida pelo índice de
solvência, retornara a níveis considerados saudáveis e confiáveis. Os
investimentos atingiam níveis históricos e a confiança do investidor, sobretudo
do investidor externo, era altíssima.
O receituário
ortodoxo, todavia, a despeito de seus frutos positivos, passou a ser alvo de um
tipo de crítica que encontra ecos na atual corrida eleitoral, em especial nos
discursos da equipe econômica de Ciro Gomes e Guilherme Boulos. “Sacrifica-se”,
dizia-se e ainda diz-se, “abre-se mão de um crescimento econômico mais
acelerado e robusto para enriquecer os bolsos de banqueiros e de rentistas”. Trocando
em miúdos, afirmava-se – e dentre os críticos, nomes de peso da economia, como
Pérsio Árida, um dos formuladores do Plano Real – que, conforme o crescimento
econômico e da renda pressionasse os preços para cima, conforme medida estipulada
pelo tripé macroeconômico não veria outra saída o Banco Central senão elevar a
taxa de juros, de forma a manter a inflação e o nível de preços dentro da meta
estabelecida. Arrefecia-se, com essa medida, a expansão do crédito e do
consumo, desestimulando por completo a chamada demanda agregada.
Ciro Gomes, grande
crítico da ortodoxia liberal, chegou inclusive a dizer que chutaria o tripé
macroeconômico, anulando o sistema de metas de inflação e alterando o “sentido”
das intervenções do Banco Central na flutuação do Câmbio. Segundo seu ideário,
a flutuação suja ou a banda cambial devem ser utilizados com a finalidade de
valorizar ou fomentar a atividade nacional, promovendo-a em detrimento da
concorrência estrangeira – o que significa dizer que a desvalorização cambial,
que claramente pode levar a uma escalonada da inflação, seria um dos objetivos
de sua nova matriz econômico-financeira. O abandono do sistema de metas de
inflação também é preocupante na medida em que se associa com sua visão de
estímulo à indústria nacional a partir da recuperação da capacidade ociosa e do
estímulo ao consumo. Neste último ponto, entra em cena sua busca por salvar os
consumidores e empresas de suas dívidas com o uso de parte das reservas
internacionais, embora o presidenciável não explique de que forma se poderia
transferir estes recursos do Banco Central ao Tesouro ou ao BNDES, nem como
poderia lidar com os efeitos mais imediatos de tal medida, como a súbita
valorização do real e o inevitável aumento da liquidez na economia brasileira.
E a proposta de combate às elevadas taxas de juros praticadas internamente fica
um tanto obscura, na medida em que não explica como uma eventual intervenção
deste tipo no mercado de crédito poderia transmitir aos agentes econômicos que
o risco elevado de atuação neste setor subitamente tornou-se reduzido.
O problema crucial de
toda esta questão, contudo, talvez seja que a recente experiência histórica
vivenciada com Dilma Roussef antecipa e desencoraja – ou, pelo menos, deveria –
a implementação de uma política econômica desse tipo. Tendo herdado um governo
com índices macroeconômicos estáveis e abraçando uma postura de oposição dura,
porém velada, ao mesmo tripé ortodoxo, Dilma Roussef deu inicio a uma verdadeira
virada na matriz então consagrada – o pior erro de sua carreira política, que
deu origem a pior crise econômica de nossa história. Percebendo que a taxa
juros poderia contribuir melhor, por assim dizer, para o objetivo do rápido e robusto
crescimento econômico, a autonomia do Banco Central passou a ser mera
perfumaria, enquanto níveis de inflação acima da meta praticamente foram ignorados.
Sucessivas quedas na taxa de juros, acompanhadas pela subida crescente do IPCA,
tornaram-se o instrumento fundamental de afrouxamento das restrições impostas
pelo tripé: em nenhum ano de seu governo, desde sua primeira eleição, a
inflação convergiu para o centro da meta.
A intervenção direta
no sistema de preços como instrumento auxiliar do controle da inflação também
tornou-se prática recorrente, como evidenciam as medidas de represamento dos
preços do petróleo, das tarifas de energia e das diversas desonerações
tarifárias. Aqui cumpriria questionar o presidenciável Ciro Gomes se sua recusa
em privatizar a Eletrobrás ou sua severa crítica à política de preços da
Petrobrás adotada pela gestão de Pedro Parente também fariam parte de um
possível expediente de escamotear a subida de preços.
No âmbito fiscal, a
elevação dos gastos sem contraparte na elevação de receitas, muito em virtude
do cenário de desaceleração do crescimento, fez com que os superávits primários
se reduzissem ano após ano, até dar lugar a um expressivo déficit primário em
2015. E isto sem levar em consideração a chamada contabilidade criativa, posta
em prática, sobretudo para esconder o resultado cada vez mais tenebroso das
contas públicas. E, se é verdade que Ciro Gomes preza por uma saúde fiscal
vigorosa, também não deixa de ser relevante questionar como irá obter os tão
sonhados superávits fiscais, já que afirmou ele mesmo discordar do expediente
do congelamento de gastos. Fica presente a questão análoga de como poderá o
candidato, se eleito, lidar com as diversas pressões de partidos amigos por
emendas ou cargos, além é claro, como irá sanear o orçamento em face da rigidez
de gastos que o compõe e que impede a realização de um verdadeiro ajuste
fiscal.
No governo Dilma,
curiosamente, a intervenção estatal também se deu na política cambial. Por meio
do programa contínuo de “Hedges cambiais”, o Banco Central deixaria explícito
em agosto de 2013 a intenção manter o câmbio num nível desvalorizado, outra
clara ruptura com outro importante ponto do tripé. Na política monetária, o
crescimento do crédito também foi notável. O Estado, por meio do BNDES, passou
a financiar cerca de 88% dos empréstimos de longo prazo, reduzindo
sensivelmente, por um lado, o estoque de crédito disponível na economia e,
elevando, por outro, a dívida pública global. Assistia-se assim à criação de um
modelo de crescimento econômico de dar inveja a qualquer heterodoxo ou nacional
desenvolvimentista, incluindo os economistas de Ciro e Boulos: taxas de juros
baixas, busca de uma taxa de câmbio enfraquecida, certa tolerância com a inflação
e com o crescimento desordenado do gasto público e incentivos, de ordem
monetária ou fiscal, à indústria nacional. Seus péssimos resultados
evidenciaram-se pela redução do nível de crescimento econômico brasileiro a
partir de 2011, revertida em profunda recessão já a partir do primeiro ano do
segundo mandato da ex-chefe do poder executivo.
É óbvio que mesmo com as
lições desta experiência cabal mantêm-se a questão aventada também por Pérsio
Árida: o que fazer para então acelerar o crescimento e ao mesmo tempo manter a
estabilidade da moeda? A teoria econômica convencional – neoliberal, alguns
diriam – apresenta uma resposta coerente. A explicação ortodoxa para um cenário
de inflação alta e crescimento baixo se baseia em deficiências estruturais pelo
lado da oferta, como baixa produtividade, infraestrutura débil, carga
tributária elevada e distorciva, altos níveis de gasto público, associados à ineficiência
dos mesmos, burocracia, direitos de propriedade instáveis, baixa qualidade da
mão-de-obra e péssimo ambiente de negócios. Entrando no cerne da teoria do
crescimento econômico, pode-se afirmar que este é obtido por uma combinação de
poupança e investimento, inovação tecnológica e estoque de capital. Sabe-se
que, como qualquer poupança, a poupança nacional é resultado da abstenção do
consumo, cujo montante é então redirecionado á atividade econômica na forma de
investimento. E sabe-se, também, que o alto consumo em detrimento da estagnação
ou mesmo redução da capacidade de produção de bens e serviços é uma das grandes
causas da subida generalizada dos preços. A pergunta anterior, portanto, pode
encontrar sua resposta noutra indagação ainda mais profunda: como viabilizar o
crescimento econômico se os recursos produzidos pela sociedade são em boa parte
consumidos pelo poder público com despesas de custeio de pessoal, funcionalismo,
previdência, dívidas dos entes federados (muitos irresponsáveis com suas
próprias conas) e várias estatais deficitárias? Como estimular a inovação
tecnológica se o empreendedorismo e a união formação acadêmica-mercado são tão atrapalhados
em nossas terras? E como adquirir estoques de capital se é baixíssimo o nível
de poupança interna e se é tão caro e burocrático importar insumos e
maquinários mais modernos? As respostas a todas estas perguntas sem dúvida
podem apresentar uma solução muito mais prudente ao persistente problema do
baixo crescimento brasileiro.
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