"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Breve Comentário sobre o Programa de Governo de João Amoedo


Nas últimas semanas vieram a público as propostas de governo dos candidatos à Presidência da República. Dentre eles, fez conhecer seu programa de governo João Amoedo, do Partido Novo, tido como um dos partidos representantes do ideário liberal nestas eleições. Comento, abaixo, os aspectos positivos e negativos de suas propostas.

 Dividido em 10 principais tópicos, seu programa de governo é orientado por uma visão clássica liberal que combina fatores fundamentais para o desenvolvimento econômico:

     A) A segurança, tanto jurídica e institucional, quanto propriamente dita, necessária não apenas para fazer valer contratos e direitos dos diversos agentes da sociedade civil, como também para assegurar a cada um o gozo do que lhe pertence;

        B) A redução da burocracia e dos processos públicos, restringindo seu escopo de atuação às esferas mais gerais de regulação;

        C) A criação de um ambiente favorável à livre iniciativa e a busca, por parte do cidadão, de seus próprios interesses e objetivos, tendo como contrapartida a valorização da responsabilidade individual em detrimento ação “moralizadora” e, muitas vezes, paternalista das autoridades públicas;

      D) A busca por condições mais justas de competição a partir da implementação de uma maior igualdade de oportunidades entre os diversos indivíduos que competem pelos mesmos recursos escassos.

A seguir, os principais aspectos nos quais os tópicos encontram-se reunidos.

Ajuste Fiscal e Responsabilidade com o Erário

Como não poderia deixar de ser no caso de um programa de governo elaborado, dentre outros autores, por Gustavo Franco, herdeiro da tradição liberal brasileira incorporada por Roberto Campos, salta a vista a grande preocupação com a situação fiscal brasileira.

 Sem apresentar superávits primários desde 2015, e com evolução perigosa e desestabilizadora da dívida pública – cujo montante bruto já supera 70% do PIB, nível preocupante para uma economia com tantas despesas orçamentárias fixas e historicamente marcada por um baixo/moderado crescimento desde a implementação do Plano Real -, equalizar de maneira justa as contas do orçamento da União é um dever do qual depende, em suma, a própria estabilidade de nossa moeda e, por conseguinte, de nossa economia. A dívida pública segue em franca expansão, a por em dúvida a solvência futura do estado brasileiro.  

 As privatizações de muitas empresas estatais, boa parte das quais deficitária e dependente do Tesouro, acompanhadas do combate aos chamados penduricalhos, o corte de despesas não essenciais e a revisão de desonerações tributárias que distorcem o ambiente concorrencial figuram, acertadamente, como viés orientador da política fiscal por parte da ótica das despesas. Vale mencionar que estas, na forma como se configuram hoje, são fortes indutoras da concentração de renda e contribuem, ao demandar sempre uma quantidade maior de impostos para fazer frente à evolução crescente dos últimos 20 anos, para a manutenção de um verdadeiro circulo vicioso, no qual a pressão por mais gastos públicos origina a necessidade da obtenção de maiores recursos do setor privado. 


 No que tange à esfera dos impostos, a simplificação tributária com a substituição de muitos dos impostos sobre o consumo pelo Imposto de Valor Agregado (IVA) tem a virtude de simplificar nosso atual modelo de coleta de recursos, tornando-o mais eficiente e econômico em termos de libertar às empresas um tempo precioso que atualmente destinam à adequação aos regimes tributários exigidos por lei.

 A solidez fiscal é reforçada por outro tema muito mais espinhoso, que já se segue.

A Reforma da Previdência e a criação de um Sistema de Proteção Social mais Efetivo

 Leia-se, por efetivo, “que atende a quem realmente mais precisa”. Já é de conhecimento público que nosso atual sistema previdenciário não atende ao problema da pobreza e da desigualdade como era de se esperar. Outras regras como o pensionato e a ausência de uma idade mínima de aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social também originam fortes distorções, que, se somadas a muitas outras – como a rápida mudança do cenário etário brasileiro – compõem hoje a principal rubrica de gastos do orçamento público federal.   

 Entre as mudanças apontadas, chamam a atenção positivamente a desvinculação dos benefícios previdenciários dos reajustes do salário mínimo e a criação de regras iguais para os trabalhadores de ambos os setores, mecanismos que exercem hoje forte pressão fiscal sobre o crescimento da despesa previdenciária. Cumpre notar que a busca de superávits primários e a solidez fiscal são imprescindíveis para a retomada da capacidade de investimento público. Nos termos da proposta, “se nada for feito [com o sistema previdenciário], com o envelhecimento da população, em alguns anos, a previdência consumirá todo o orçamento público”.

 A implementação de um Sistema de Proteção Social, por seu turno, parece remeter às ideias de Amartya Sen, em cuja obra, “Desenvolvimento como Liberdade”, advoga em prol do conjunto de proteções ao cidadão como recurso para se ampliar sua esfera de liberdade, ao mitigar as restrições que diminuem seu escopo e amplitude de ação individual e que, em algumas partes do mundo, incluindo o Brasil, ainda são severas. O combate à extrema pobreza e a criação de programas voltados ao atendimento das parcelas mais pobres da população vinculam-se a este ideal ao mesmo tempo redistributivo e incorporador de grandes parcelas marginalizadas ao mercado formal de trabalho. Deve-se se ressaltar a ênfase dada ao combate à extrema pobreza principalmente entre os mais jovens, que representam contingente considerável dos extremamente pobres e são, muito em razão disso, demasiadamente vulneráveis à violência e à morte precoce.

 A saúde e a educação públicas também recebem destaque especial no Programa de João Amoedo. A primeira, alvo de uma análise acertada quanto a seu diagnóstico presente, promete ser renovada por inteiro a partir de medidas que visam expandir a medicina preventiva e aproximar o setor privado dos centros públicos de saúde. A existência e contágio de doenças infecciosas são corretamente apontados como um grande desafio para a saúde pública.

 As propostas para a educação básica, por seu turno, aproximam-se do objetivo mais universal de se criar condições mais igualitárias para a competição individual. As medidas atualmente em curso, cujos efeitos reforçam a brutal concentração de renda, são colocadas em xeque. Os recursos federais alocados nas universidades e centros de formação superior terão parte considerável redirecionada para o sistema básico de formação, carente de maior suporte financeiro. Esta medida, aliada a outras que atuam em conjunto no sentido de promover a queda nos índices de evasão escolar e melhoramento na qualidade do aprendizado, encontra-se alinhada a várias experiências internacionais de sucesso no tocante a formação adequada de uma mão-de-obra altamente capacitada, fator essencial para a obtenção de maiores índices de produtividade do trabalho – item que, por sua vez, explica em grande parte a estagnação econômica e o baixo crescimento brasileiros.   

A Política Econômica Sem Devaneios

 Sem se estender muito sobre este assunto, abordado aqui (http://ocorreioliberal.blogspot.com/2018/08/chutando-escada-do-ciro-gomes.html)  e aqui (http://ocorreioliberal.blogspot.com/2016/12/quais-as-causas-da-crise-economica-no.html), a manutenção de uma política econômica ortodoxa, com independência formal e prática das principais instituições e autarquias financeiras públicas, compreende um aspecto norteador desse programa de governo. A inflação deverá ser contida dentro das metas estipuladas pelo Banco Central, com ajuste fiscal e interferência governamental nula nos negócios privados.   


O Direito à Vida

 Tema sensível nessas eleições, a segurança pública é abordada a partir de propostas de mudanças em nossos atuais sistemas penais, prisionais, investigativo e de policiamento.

 Grandes quadrilhas gestam-se e retroalimentam-se em nossos presídios, carentes de infraestrutura, organização e separação adequada entre os detentos. Uma parceira público-privada pode trazer grandes resultados para o setor, haja vista a baixa capacidade de investimento público em segurança. São apontadas as regras vigentes para saídas temporárias, cumprimento das penas em liberdade e alta impunidade, que devem ser veementemente combatidas através de reformas legislativas e do melhoramento das condições de trabalho da carreira policial e investigativa.

A Reforma Política e a Transparência da Máquina Pública

Não deve faltar às propostas de qualquer presidenciável o combate às distorções existentes em nossa Democracia Representativa, presentes, sobretudo, nos modelos eleitorais adotados e nas disfunções de representação no Congresso Nacional.

 No caso de João Amoedo, a ênfase colocada sobre o modelo distrital misto, que combina os sistemas majoritário e proporcional de voto, apresenta a virtude de aproximar o eleitor do representante eleito e das siglas partidárias detentoras do maior número de votos, aumentando a responsabilidade de cada partido pela atuação de seus congressistas. A sub-representação de algumas unidades da Federação, aliada a sobre-representação de outras, podem ser, assim, combatidas, além de propiciarem uma redução nos custos associados ao processo eleitoral.

 Presentes estão também as propostas de redução do número atual de deputados federais e senadores – com sensíveis impactos positivos para os cofres públicos – e uma forte crítica ao fundo público de campanha, cujos vultuosos recursos, concentrados num pequeno grupo de partidos, fazem do jogo partidário um negócio extremamente lucrativo levado a cabo às expensas do pagador de impostos.  

 Outra disfunção presente no quadro institucional brasileiro refere-se ao nosso funcionalismo público, cujas regras de atuação permitem a seus membros uma estabilidade inadmissível, desvinculada de qualquer análise de performance ou programas de bonificação e apoiada em remunerações descomunais. Essa distorção explica, em grande parte, a péssima eficiência de nossos serviços públicos, bem como a chamada baixa produtividade do setor público.

 Para a tratativa deste problema explicita-se nas propostas do presidenciável a substituição de alguns dos serviços hoje fornecidos pela esfera pública por sistemas digitais e simples, acessíveis a todos os cidadãos e promovedores de importantes reduções de custos para o erário brasileiro, ao mesmo tempo que visam fornecer ao usuário final uma facilidade muito maior na obtenção dos serviços desejados. Tal medida encontra paralelo positivo em nações desenvolvidas e emergentes.

 Integração Mundial e Competividade Nacional e Internacional

 Como fio condutor do programa oficial de governo subjaz a criação de um ambiente de negócios muito mais favorável à atividade privada e empresarial. Na esteira deste componente, surge outro de igual importância para o desenvolvimento econômico e social brasileiro: a abertura comercial.

 Num país onde por décadas a fio vicejou – se é que ainda não viceja – um rígido nacionalismo econômico amparado por um conjunto de proposições econômicas desenvolvimentistas, são os índices de fluxo de comércio a triste representação da subserviência a uma doutrina com raríssimos casos de sucesso, seja em nossa história, seja na literatura mundial. A soma das importações e exportações de cada país em relação ao PIB ultrapassa na média global a casa dos 50%. No Brasil, o mesmo índice ainda resiste em cerca de 19%, patamar muito semelhante ao mesmo nível observado nos idos dos anos 1950 e 1960, quando então as trocas comerciais internacionais se davam em montantes muito inferiores. Tanto a teoria econômica quanto a experiência são pródigas em apontar os efeitos positivos de uma maior abertura comercial – a possibilidade de importação de insumos de melhor qualidade a preços inferiores, a obtenção de preços mais baixos ao consumidor final, o rearranjo das forças produtivas internas no sentido de promover uma alocação mais eficiente dos recursos disponíveis, a obtenção de melhores índices de competividade e produtividade através da especialização de atividades.

 A exploração de nossas vantagens competitivas, em detrimento da busca do desenvolvimento nacional por vias da industrialização forçada e da autossuficiência interna, fica clara quando se aborda a compatibilização do agronegócio com métodos de produção agrícola com impactos ambientais menos nocivos. O combate ao desmatamento ilegal – 40% do qual ocorre largamente em áreas públicas de conservação ambiental e em terras devolutas - e a universalização do saneamento básico constituem medidas positivas a gerar, no jargão dos economistas, externalidades positivas tais como o aumento da produtividade da produção agrícola e de todas as atividades que integram a complexa rede de relações do agronegócio.


Conclusões

 Pelo o que aqui foi exposto, fica claro que as propostas de governo do candidato à presidência João Amoedo aproximam um liberalismo clássico – filosoficamente representado pela tríade liberdade, propriedade e vida, nominalmente presente logo no início do documento – da modernização institucional e dos próprios mecanismos de funcionamento e regulação do estado brasileiro.

 A melhoria do quadro institucional, que possa proporcionar um ambiente de negócios mais favorável a partir da criação de direitos de propriedade mais sólidos, burocracia reduzida e respeito aos contratos, sistema tributário simplificado e eficiente, caminha de mãos dadas com a fundação das chamadas instituições inclusivas, que permitem o acesso mais amplo dos cidadãos nos processos de tomada de decisão e reduzem a níveis praticamente nulos a redistribuição ignara e injusta de custos e prejuízos entre as diversas classes existentes na sociedade. Em resumo, o programa de governo do presidenciável tem a excepcional qualidade de ser uma reprodução do pensamento de Roberto de Oliveira Campos, adaptada aos nossos dias: a vitória sobre a miséria se faz antes de tudo com criação de renda e riqueza, ambas proporcionadas somente com muita liberdade e mercado; qualquer tentativa de supressão da pobreza por outros meios resulta somente na igual distribuição da miséria.   

 Contudo, algumas críticas pontuais e importantes devem ser levantadas. Seja por se encontrar implícito ao longo do texto, seja por estar profundamente associada aos projetos de privatização e melhoria das condições de negócios no país, a infraestrutura e a atenção aos gargalos que dela se originam não aparecem no conjunto das propostas do presidenciável. Não há menção aos evidentes problemas do sistema elétrico brasileiro, nem ao marco regulatório para concessão de rodovias e aeroportos em posse do poder público. Da mesma forma, os recentes problemas decorridos da greve dos caminhoneiros e o excesso de custos e perdas de eficiência no setor de combustíveis não são sequer apontados.

 O quesito taxa de juros e distorções no mercado de crédito brasileiro, detentor de um tópico a parte, também inexistem nesse conjunto de propostas. É claro que o combate ao estado perdulário, o fim das desonerações e a redução do papel do governo como indutor do crescimento via bancos públicos contribuem sensivelmente para uma redução, ainda que gradual, para uma queda na taxa dos juros observada no mercado privado. E, embora tenha João Amoedo o grande economista Gustavo Franco como coordenador de sua campanha em tudo o que tange a economia, a ausência deste tema em seu programa de governo deixa muito a desejar, sobretudo por não apresentar ao público as principais medidas que eventualmente seriam tomadas para combater as causas dos juros tão altos praticados no mercado de crédito.

 O desarmamento civil, pauta polêmica associada ao tema da segurança pública, também não recebe menção. É necessário que se traga esta discussão ao meio político, ainda mais porque se evidencia um certo fracasso das políticas atuais de desarmamento na redução das mortes causadas pelo uso de armas de fogo, embora, por outro lado, o armamento civil possa não representar a solução unilateral e unívoca para o problema da segurança interna. Cumpre notar, também, que a fiscalização nas fronteiras, essencial no combate ao tráfico de armas, passa despercebido no programa do presidenciável. A busca pela segurança no campo, fragilizada pela constante invasão de terras que põe a perder a estabilidade da produção agrícola e afugentam cada vez mais investimentos importantes no setor, deveria ter sido incluída no tópico respectivo ao agronegócio.

 Ao fim, entrementes, da análise deste programa de governo, a despeito das críticas citadas logo acima, tem-se a forte de impressão que as propostas de governo de João Amoedo fazem jus a um liberalismo econômico e político vigoroso, pautado, sobretudo, na ênfase dada à ação individual criadora de riqueza e emancipação e na promoção das liberdades individuais em todos os campos associados à vida civil.       

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Chutando a Escada do Ciro Gomes


Na história econômica recente do Brasil considera-se evidente que o grave problema inflacionário, que por tantas décadas assolou a vida dos brasileiros, vê-se superado. É relativo consenso entre os economistas e cientistas sociais que esta vitória monetária, a qual tornou possível o rearranjo mais eficiente do dispêndio público, das etapas do sistema produtivo nacional e do combate à extrema pobreza e desigualdade, resultou da implantação bem-sucedida do Plano Real. 


 Inaugurado oficialmente em julho de 1994, após um ano de uso do indexador representado pela URV, o Plano Real tem sua história dividida em duas partes. Num primeiro momento, com o regime de âncora cambial e busca da paridade da nova moeda com o dólar americano, buscou-se trazer com o estímulo às importações e à entrada do capital estrangeiro uma maior competividade à economia nacional que pudesse resultar numa queda expressiva dos preços finais praticados internamente. Nesse momento, diante do ritmo ascendente de crescimento da dívida pública – decorrido, em parte, pelos seguidos déficits orçamentários ocorridos desde 1994 – e pela necessidade inescapável de se obter maior quantidade da moeda americana, necessária para manter o câmbio no nível almejado, entraram em cena as privatizações da Vale do Rio Doce e da Telebrás. 

 Contudo, na esteira de déficits consecutivos do balanço de pagamentos, que fazia agravar a (in)solvência brasileira a seus credores externos, e diante das crises ocorridas no México e, sobretudo na Rússia, não puderam mais as autoridades econômicas e formuladores de políticas sustentar o modelo então em voga a partir de um volume tão baixo de reservas internacionais. A desvalorização cambial então ocorrida, aliada aos prognósticos pessimistas a respeito da evolução da dívida pública, fizeram ressuscitar o temor com o retorno da aceleração inflacionária e seus tétricos correlatos.

 A segunda parte da história do Plano Real apresenta a solução tomada para se colocar a estabilidade monetária novamente em bom caminho. Acordados os termos de um empréstimo ao FMI em 1998-1999, adotou-se o que, em uso até mais ou menos 2011, se convencionou chamar de tripé-macroeconômico: sistema de metas de inflação (com independência do Banco Central), câmbio flutuante e superávit primário. A estratégia de estabilização era clara: o déficit orçamentário, eliminado seu remédio amargo inflacionário de anos pretéritos, deveria ser combatido com o rigor da nova Lei de Responsabilidade Fiscal, com os superávits primários obtidos a partir de então para saldar os juros da dívida e reduzir os alarmantes níveis de perda de credibilidade da dívida pública; a inflação deveria ser mantida em níveis “civilizados”, sempre a convergir para a meta estabelecida pela autoridade monetária máxima, e controlada, sobretudo, pelo uso dos mecanismos da taxa de juros, a SELIC, e do mercado aberto de venda e compra de títulos da dívida; e a taxa cambial deveria ser entregue a um regime flutuante – ainda que sujo -, cuja valorização ficaria suscetível ao sucesso das demais políticas econômicas, entre elas a monetária e fiscal.


 Desde 1999, portanto, assistimos a uma retomada do crescimento econômico brasileiro, ainda que tímido, acompanhado por baixos níveis de inflação, uma combinação raríssima em se tratando de nossa história econômica. A desigualdade e a pobreza extrema caíram ambas para patamares inéditos e o crescimento do emprego e da renda passaram a ser manchete nos mais variados veículos de comunicação.

 No campo macroeconômico, o sucesso do tripé era evidente. O superávit primário fora variável constante durante os dois mandatos Lula, o câmbio mantivera-se flutuante e valorizado durante mais de uma década, e a dívida pública, seguida pelo índice de solvência, retornara a níveis considerados saudáveis e confiáveis. Os investimentos atingiam níveis históricos e a confiança do investidor, sobretudo do investidor externo, era altíssima.   

 O receituário ortodoxo, todavia, a despeito de seus frutos positivos, passou a ser alvo de um tipo de crítica que encontra ecos na atual corrida eleitoral, em especial nos discursos da equipe econômica de Ciro Gomes e Guilherme Boulos. “Sacrifica-se”, dizia-se e ainda diz-se, “abre-se mão de um crescimento econômico mais acelerado e robusto para enriquecer os bolsos de banqueiros e de rentistas”. Trocando em miúdos, afirmava-se – e dentre os críticos, nomes de peso da economia, como Pérsio Árida, um dos formuladores do Plano Real – que, conforme o crescimento econômico e da renda pressionasse os preços para cima, conforme medida estipulada pelo tripé macroeconômico não veria outra saída o Banco Central senão elevar a taxa de juros, de forma a manter a inflação e o nível de preços dentro da meta estabelecida. Arrefecia-se, com essa medida, a expansão do crédito e do consumo, desestimulando por completo a chamada demanda agregada.

 Ciro Gomes, grande crítico da ortodoxia liberal, chegou inclusive a dizer que chutaria o tripé macroeconômico, anulando o sistema de metas de inflação e alterando o “sentido” das intervenções do Banco Central na flutuação do Câmbio. Segundo seu ideário, a flutuação suja ou a banda cambial devem ser utilizados com a finalidade de valorizar ou fomentar a atividade nacional, promovendo-a em detrimento da concorrência estrangeira – o que significa dizer que a desvalorização cambial, que claramente pode levar a uma escalonada da inflação, seria um dos objetivos de sua nova matriz econômico-financeira. O abandono do sistema de metas de inflação também é preocupante na medida em que se associa com sua visão de estímulo à indústria nacional a partir da recuperação da capacidade ociosa e do estímulo ao consumo. Neste último ponto, entra em cena sua busca por salvar os consumidores e empresas de suas dívidas com o uso de parte das reservas internacionais, embora o presidenciável não explique de que forma se poderia transferir estes recursos do Banco Central ao Tesouro ou ao BNDES, nem como poderia lidar com os efeitos mais imediatos de tal medida, como a súbita valorização do real e o inevitável aumento da liquidez na economia brasileira. E a proposta de combate às elevadas taxas de juros praticadas internamente fica um tanto obscura, na medida em que não explica como uma eventual intervenção deste tipo no mercado de crédito poderia transmitir aos agentes econômicos que o risco elevado de atuação neste setor subitamente tornou-se reduzido.


 O problema crucial de toda esta questão, contudo, talvez seja que a recente experiência histórica vivenciada com Dilma Roussef antecipa e desencoraja – ou, pelo menos, deveria – a implementação de uma política econômica desse tipo. Tendo herdado um governo com índices macroeconômicos estáveis e abraçando uma postura de oposição dura, porém velada, ao mesmo tripé ortodoxo, Dilma Roussef deu inicio a uma verdadeira virada na matriz então consagrada – o pior erro de sua carreira política, que deu origem a pior crise econômica de nossa história. Percebendo que a taxa juros poderia contribuir melhor, por assim dizer, para o objetivo do rápido e robusto crescimento econômico, a autonomia do Banco Central passou a ser mera perfumaria, enquanto níveis de inflação acima da meta praticamente foram ignorados. Sucessivas quedas na taxa de juros, acompanhadas pela subida crescente do IPCA, tornaram-se o instrumento fundamental de afrouxamento das restrições impostas pelo tripé: em nenhum ano de seu governo, desde sua primeira eleição, a inflação convergiu para o centro da meta.

 A intervenção direta no sistema de preços como instrumento auxiliar do controle da inflação também tornou-se prática recorrente, como evidenciam as medidas de represamento dos preços do petróleo, das tarifas de energia e das diversas desonerações tarifárias. Aqui cumpriria questionar o presidenciável Ciro Gomes se sua recusa em privatizar a Eletrobrás ou sua severa crítica à política de preços da Petrobrás adotada pela gestão de Pedro Parente também fariam parte de um possível expediente de escamotear a subida de preços.

 No âmbito fiscal, a elevação dos gastos sem contraparte na elevação de receitas, muito em virtude do cenário de desaceleração do crescimento, fez com que os superávits primários se reduzissem ano após ano, até dar lugar a um expressivo déficit primário em 2015. E isto sem levar em consideração a chamada contabilidade criativa, posta em prática, sobretudo para esconder o resultado cada vez mais tenebroso das contas públicas. E, se é verdade que Ciro Gomes preza por uma saúde fiscal vigorosa, também não deixa de ser relevante questionar como irá obter os tão sonhados superávits fiscais, já que afirmou ele mesmo discordar do expediente do congelamento de gastos. Fica presente a questão análoga de como poderá o candidato, se eleito, lidar com as diversas pressões de partidos amigos por emendas ou cargos, além é claro, como irá sanear o orçamento em face da rigidez de gastos que o compõe e que impede a realização de um verdadeiro ajuste fiscal.

 No governo Dilma, curiosamente, a intervenção estatal também se deu na política cambial. Por meio do programa contínuo de “Hedges cambiais”, o Banco Central deixaria explícito em agosto de 2013 a intenção manter o câmbio num nível desvalorizado, outra clara ruptura com outro importante ponto do tripé. Na política monetária, o crescimento do crédito também foi notável. O Estado, por meio do BNDES, passou a financiar cerca de 88% dos empréstimos de longo prazo, reduzindo sensivelmente, por um lado, o estoque de crédito disponível na economia e, elevando, por outro, a dívida pública global. Assistia-se assim à criação de um modelo de crescimento econômico de dar inveja a qualquer heterodoxo ou nacional desenvolvimentista, incluindo os economistas de Ciro e Boulos: taxas de juros baixas, busca de uma taxa de câmbio enfraquecida, certa tolerância com a inflação e com o crescimento desordenado do gasto público e incentivos, de ordem monetária ou fiscal, à indústria nacional. Seus péssimos resultados evidenciaram-se pela redução do nível de crescimento econômico brasileiro a partir de 2011, revertida em profunda recessão já a partir do primeiro ano do segundo mandato da ex-chefe do poder executivo.


 É óbvio que mesmo com as lições desta experiência cabal mantêm-se a questão aventada também por Pérsio Árida: o que fazer para então acelerar o crescimento e ao mesmo tempo manter a estabilidade da moeda? A teoria econômica convencional – neoliberal, alguns diriam – apresenta uma resposta coerente. A explicação ortodoxa para um cenário de inflação alta e crescimento baixo se baseia em deficiências estruturais pelo lado da oferta, como baixa produtividade, infraestrutura débil, carga tributária elevada e distorciva, altos níveis de gasto público, associados à ineficiência dos mesmos, burocracia, direitos de propriedade instáveis, baixa qualidade da mão-de-obra e péssimo ambiente de negócios. Entrando no cerne da teoria do crescimento econômico, pode-se afirmar que este é obtido por uma combinação de poupança e investimento, inovação tecnológica e estoque de capital. Sabe-se que, como qualquer poupança, a poupança nacional é resultado da abstenção do consumo, cujo montante é então redirecionado á atividade econômica na forma de investimento. E sabe-se, também, que o alto consumo em detrimento da estagnação ou mesmo redução da capacidade de produção de bens e serviços é uma das grandes causas da subida generalizada dos preços. A pergunta anterior, portanto, pode encontrar sua resposta noutra indagação ainda mais profunda: como viabilizar o crescimento econômico se os recursos produzidos pela sociedade são em boa parte consumidos pelo poder público com despesas de custeio de pessoal, funcionalismo, previdência, dívidas dos entes federados (muitos irresponsáveis com suas próprias conas) e várias estatais deficitárias? Como estimular a inovação tecnológica se o empreendedorismo e a união formação acadêmica-mercado são tão atrapalhados em nossas terras? E como adquirir estoques de capital se é baixíssimo o nível de poupança interna e se é tão caro e burocrático importar insumos e maquinários mais modernos? As respostas a todas estas perguntas sem dúvida podem apresentar uma solução muito mais prudente ao persistente problema do baixo crescimento brasileiro.

domingo, 8 de julho de 2018

100 anos de socialismo: Os liberais brasileiros precisam de mais estudo



Numa sabatina recente no programa a Hora do Voto, da Rede Gazeta, o pré-candidato Flávio Rocha tornou-se motivo de chacota nas redes sociais após afirmar que 100 anos de socialismo, inclusive no Brasil, haviam deixado como legado que a receita para a superação da pobreza só poderia advir da compatibilização entre liberdade política e liberdade econômica.

 A declaração, em verdade uma resposta ao questionamento do jornalista Bob Fernandes acerca da existência de uma massa populacional brasileira considerada pobre ou mísera, a despeito de utilizar sabiamente como recurso a experiência histórica moderna, se mostrou insuficiente para que o presidenciável fizesse frente de forma mais satisfatória aos seus entrevistadores e ouvintes.

 Sua resposta apresenta um expediente clássico: no campo do saber e da busca da verdade – e, mais ainda, no campo das ciências humanas – a história e a experiência social se mostram como o único recurso confiável para guiar nossas conclusões e tomadas de decisão, uma vez que qualquer nova teoria surgida nesse campo padece do velho problema de não poder ser provada por meio de exames laboratoriais ou experiências imediatas. Neste sentido, o colapso da antiga União Soviética e a queda de inúmeros regimes do leste europeu que guardavam em si certas singularidades opostas à “filosofia liberal do ocidente” não são de modo algum acontecidos insignificantes. Representam a falência de estratégias de produção e organização política baseadas no controle de preços e salários, da imprensa, da liberdade individual, da produção incentivada unicamente por decisões livres de agentes econômicos associadas ao gozo da propriedade privada dos meios de produção e ordenadas conforme restrições formais de um ordenamento jurídico com ampla proteção aos direitos de propriedade.

 A constatação, contudo, tem um porém. Em termos lógicos, o fato da opção A não corresponder ao que dela esperava não fornece qualquer validade em deduzir que não-A será necessariamente eficiente para atingir a mesma finalidade. Trocando em miúdos, dizer que o socialismo (real ou deturpado, pouco importa) falhou em criar prosperidade e justiça não implica em dizer que seu avesso é, por uma relação necessária, de causa e efeito, a única saída para os mesmos objetivos.

 É nesse impasse lógico que deveria ser introduzido por qualquer defensor do dogma liberal (incluindo eu mesmo) a afirmação teórica e recheada de provas empíricas de que a prosperidade e a igualdade são possíveis somente quando certas condições são satisfeitas. Não basta dizer não-A; é preciso que se afirme e justifique racionalmente porque B.

 Flávio Rocha poderia ter muito bem dito que o conceito de subdesenvolvimento e o problema da pobreza estão historicamente relacionados à baixa acumulação de capital. Poderia citar os estudos de Solow, Harrod-Domar, Kusnetz, Rostow, Schultz e tantos outros estudiosos do crescimento econômico para ir adiante e afirmar que a superação da pobreza depende da utilização de parte da renda gerada socialmente para criação de poupança, investimento em técnicas mais avançadas de produção, formação de mão-de-obra qualificada e aquisição de estoques cada vez maiores de capital.

 Poderia dizer que, como Solow, acredita e tem provas empíricas de que a difusão do progresso técnico é o fator fundamental do desenvolvimento econômico e que as escorchantes regulamentações, o protecionismo, a alta e distorciva carga tributária impedem que novas descobertas e tecnologias (muitas vezes vindas de fora) se espraiem pelos diversos setores da economia nacional. Poderia resumir e dizer que o aumento da renda do brasileiro, em especial daquele que se encontra na pior situação possível em termos materiais, será resultado direto dos ganhos de produtividade do trabalho, afinal, desde os tempos nos quais Adam Smith compôs sua monumental A Riqueza das Nações, admite-se, com aporte sólido na experiência histórica dos últimos 200 anos, que a riqueza provém de uma produção cada vez maior e mais eficiente de bens e serviços. Sobre o aspecto igualdade, poderia muito bem trazer à discussão à famosa Lei de Kuznets, pela qual, no processo de desenvolvimento, o aumento da renda per capita é acompanhada rigorosamente de um aumento crescente e estável nos níveis de desigualdade, a qual, contudo, tende a decair sensivelmente a medida que um determinado nível de crescimento é atingido - fato corroborado, por exemplo, pela constatação de que nos países considerados ricos e desenvolvidos a remuneração do trabalho, em média, tende a ser próximo, igual ou mesmo maior do que o emprego do capital físico ou financeiro.

 A entrevista de Flávio Rocha, para bem dizer a verdade, não é de toda ruim. O presidenciável apresenta uma boa argumentação acerca do principal problema do Brasil, a saber, sua (in)solidez fiscal que põe a perder a capacidade pública e privada de se realizar investimentos e provoca fortes distorções no campo da competividade empreendedora, a força motriz do desenvolvimento econômico, segundo Schumpeter. O estado brasileiro nada mais é, nos padrões atuais, uma instituição que distribui privilégios a classes e marajás abastados, socializando a todos os demais, cidadãos em sua maioria pequenos e sem poder de pressão, os custos dessa manobras estapafúrdias. E, pior, é ainda um estado capaz de sufocar a inovação, a busca pela eficiência, campeão em afugentar o capital privado nas áreas onde justamente os recursos públicos são escassos para produzir qualquer mudança positiva.

 É indubitável que um modelo de crescimento à gauche, sob as rédeas do controle estatal e de um planejamento estatal que insistem em coibir a prática da busca pelo lucro e o auto-interesse, é antiquado. Trágico, quando se voltam os olhos para seus lampejos existentes, como Cuba e Venezuela. Mas é verdade, também, que a busca da riqueza no Brasil vai precisar muito mais do que dizer que 100 anos de socialismo não funcionaram. Se Socialista ou não, pouco importa neste momento. O importante, para o Brasil, é que deixemos o capitalismo de fato, concorrencial, com acúmulo de poupança e criação de estoques de capital, produtividade entrar e ficar. Se foi a partir desta fórmula que muitas nações lograram sair do martírio da pobreza ou do subdesenvolvimentismo, por que se resiste tanto a aplica-la no Brasil? E por que poucos liberais, em especial dentre aqueles que na mídia se identificam como tal, dão a entender que podem provar não somente não-A, mas também B?



sábado, 18 de novembro de 2017

Contra a Tirania da Opinião Pública: Por que a Liberdade de Expressão é tão importante?

 Anos atrás, quando Yoani Sánchez desembarcou no Brasil, pronta para apresentar o diagnóstico que fizera da Revolução Cubana, uma horda de desocupados militantes apressou-se a impedir que falasse em público. Em 2012, uma peça de teatro teve sua exibição censurada em virtude de acusação de “racismo” movida por um coletivo negro, muito embora já tivesse estado em turnê em muitos outros momentos, sem ter causado qualquer alvoroço. Em 2016, o conservador Milo Yiannopolous foi coercivamente impedido de discursar na Universidade de Berkeley; do mesmo modo esteve Judith Butler sujeita a constrangimento no ato de sua chegada em São Paulo. Em episódio ainda mais recente, a Justiça determinou que todas as frases “#caetanopedofilo” fossem apagadas das redes sociais, sob penalidade de multa e/ou processo judicial.

 Exemplos, evidentemente, não faltam quando o assunto é o cerceamento da liberdade de expressão. As razões que o justificam costumam expressar a luta contra a intolerância ou o discurso de ódio, promovidos e incentivados por certos grupos – motivação que determinou, por escrito, a decisão favorável aos artistas Caetano Veloso e Paula Lavigne. Não me interesso, aqui, por apontar as razões do meu dissenso dessa decisão ou das severas críticas feitas às exposições “Queermuseum” ou no Museu de Arte Moderna. Antes, pretendo demonstrar porque a liberdade de pensamento, debate e discussão é e deve continuar sendo um valor absoluto e fundamental.

  A obra “On Liberty”, do filósofo inglês John Stuart Mill e publicada em 1859, talvez seja a mais pródiga quando o assunto é a defesa pela liberdade de imprensa e opinião. As justificativas por sua defesa são simples e adaptadas ao o que o autor denomina de “tirania social” ou “tirania da opinião pública”.

 Percebe Mill que a longa tradição da luta contra a autoridade, responsável pela determinação da liberdade em seu sentido negativo (a ação individual não deve ser alvo da intervenção de terceiros), não deve resumir-se na oposição ao poder institucionalizado somente, nem imiscuir-se de agir também de forma positiva. Após a leitura da obra “A Democracia na América”, do amigo e também pensador liberal Alexis de Tocqueville, Mill se dá conta de que o novo fenômeno da igualitarização, marca singular das democracias então nascentes, será responsável por aquilo que Ortega Y Gasset futuramente chamaria de democracia das massas – um novo tipo de força, mais coerciva e constrangedora do que qualquer monarca absoluto poderia ter imaginado.


 Se claro está que deve haver uma esfera de autonomia e independência individuais, ao qual não é legítimo que nem o governo, nem a sociedade possam intervir, surge a questão: como e com o quê poderemos combater a tirania nascente, marcada sobretudo pela mediocridade massificada tornada valor e pelo constrangimento produzido por normas sociais arraigadas e que encontram nos próprios membros da sociedade os seus juízes e promotores?

 A opinião pública, tão policialesca e severa, parece agora constituir o novo braço do poder que censura e representa a tirania da maioria. Para sustentar a necessidade da liberdade de discordar, Mill recorre em primeiro lugar aos exemplos históricos mais notáveis. “A adesão a uma ideia não pode servir como critério de validade”: os julgamentos de Sócrates, Jesus e Galileu evidenciam as trágicas consequências da condenação de ideias e pessoas promovida substancialmente pela opinião pública.

 Em segundo lugar, dado que a constituição humana caminha lado a lado com a existência do erro, consistiria numa presunção terrível imaginar “que se está certo sobre tudo e a todo instante”. Permitir a manifestação da opinião alheia, portanto, é a condição sine qua non para se encontrar a verdade de forma segura. A falibilidade humana, sobre a qual reside o principal argumento em prol da liberdade de pensamento e expressão, não por acaso remete-se ao filósofo Sócrates, o qual subverteu a opinião geral reinante com o exercício das opiniões vigentes submeter ao crivo da razão. No combate à ignorância e às más crenças estabelecidas, é um dever ético combater a ignorância individual e social a partir do diálogo e da disseminação de conhecimento que resultam do debate e do exame racional das diferentes hipóteses levantadas. A fórmula “conhece-te a ti mesmo” não está dissociada nem do uso da razão, nem da prática da liberdade de expressão. A originalidade das ideias que despontam e conduzem a um melhoramento dos hábitos e técnicas de produção não teria sido possível (embora tenha sido dificultada pelo combate à livre expressão de pensamento) sem este exame livre das opiniões aceitas, proporcionada em suma pela possibilidade de expressar visões divergentes.

 Por último, argumenta Mill em prol da autonomia individual, sem nomeadamente referir-se a este termo, como o aspecto positivo da definição de liberdade. O direito à fala, à dissensão, à expressão é fundamental para a busca individual da felicidade. É responsabilidade moral de cada um valer-se não da opinião da maioria, mas realizar-se a partir de sua própria ponderação. Afinal, argumenta Mill, imaginemos quão triste cenário nasceria a nossa frente se apenas a opinião vigente, arraigada na absoluta maioria, servisse de base e princípio orientador na busca por nossos sonhos e desejos?


 O valor fundamental da liberdade de expressão está associado, portanto, a uma finalidade ética e moral, qual seja, a substituição de opiniões equivocadas por outras que sejam corretas, ao aperfeiçoamento daquilo que está ruim. A ignorância nunca é um bem em si mesmo e manter-se voluntariamente nesta escuridão é um ato desalentador e covarde. A repressão à ideia diferente é fenômeno representativo deste medo do diferente e da perda de poder. As nossas certezas, que devem constituir as bases de nossa conduta individual e social, são mais fortes e seguras quando testadas contra todas as teses opostas. Entregar-se à censura é só mais uma prova da rendição face à falibilidade da “natureza” humana, aspecto que nos diz que o erro é mais comum e nocivo à nossa existência do que orientar-se por uma máxima que tenha se provado correta após a submissão ao exame racional e ao livre debate. Acostumar-se ao erro e à inverdade não é senão abrir mão da possibilidade do melhoramento de si mesmo e de uma sociedade inteira: indivíduos, povos e nações apenas se libertam e são mais livres de seus preconceitos e utopias com o uso da crítica e da razão.   

sábado, 11 de novembro de 2017

O Curioso Caso STF versus ENEM

 Não é razoável supor que uma mera redação do Exame Nacional do Ensino Médio possa incorrer numa violação dos direitos humanos. Requer muito esforço de imaginação pensar que as palavras escritas por um indivíduo qualquer tenham como resultado a perda injusta da liberdade, da moradia ou da vida de um ser humano que esteja do seu lado ou a muitos quilômetros de distância.

 Durante parte da Idade Média, como bem retratou Humberto Eco em sua brilhante obra “O Nome da Rosa”, creia-se que a realidade de um ente ou fenômeno manifestava-se, de certa forma, apenas com o pronunciar do seu enunciado – um tipo de platonismo aperfeiçoado com uma roupagem nova, diga-se de passagem.

 O veto contra a penalidade de anulação da redação em virtude da violação ou mesmo da mera apologia à violação dos direitos humanos, expedido pelo STF horas antes da realização da prova, representa uma decisão acertada, sóbria. “Não se pode combater intolerância social com intolerância estatal”, escreveu a meritíssima Carmen Lúcia. A liberdade de expressão ficou assim resguardada, tanto mais porque não se definiu bem, no edital da prova, quais eram esses tão sagrados direitos humanos ou com a definição de qual entidade se associava a cláusula.

 Os mais inditosos defensores da moralidade da luta contra a “barbárie neoliberal” se rebelaram, quase enfurecidos. Afinal, argumentaram, o fascismo poderia discorrer à vontade, sem que nada se lhe opusesse. Ironicamente, contudo, a decisão do STF lhe foi extremamente benéfica.

 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, representa o breviário, o estatuto internacional com o qual todas as noções e esforços correntes de proteção dos direitos humanos se referendam. São já notórias as advertências que a ONU dirige ao Brasil no que tange à proteção da dignidade da pessoa humana. Os jovens negros e a comunidade LGBT constituem o foco de atenção e a fonte de muitas das preocupações das organizações multilaterais que concorrem para a promoção dos direitos inalienáveis da pessoa humana. Escreve o projeto Vidas Negras que a cada 02 horas 05 jovens negros são vitimados no país. Salienta a última resolução do Conselho de Direitos Humanos que a cada 28 horas um homossexual/transexual/travesti é assassinado por aqui, muito embora, em contrapartida, não se explique quais são os outros grupos étnicos ou qual a sexualidade dos demais mortos no mesmo espaço de tempo. Segundo o Anuário de Segurança Pública, a cada 02 horas 14 pessoas perdem a vida de forma violenta no Brasil. Se 05 são jovens negros, os restantes só podem ser pessoas brancas, e/ou mestiços e/ou índios, etc... Da mesma forma, temos 196 mortos a cada 28 horas, mas parece interessar a alguns frisar o sofrimento apenas de uma pequena parte da amostra.

 Incongruências à parte, há outros direitos humanos que são violados em nossas terras tupiniquins e cuja defesa (da violação, não da preservação do direito) é hegemônica, para não dizer lastimosa. A Declaração é clara ao considerar a propriedade um direito, e sua violação uma clara violência à dignidade humana. Não fosse o STF, defender as invasões do MST ou do MTST não cairia nada bem. O Conselho dos Direitos Humanos também é claro ao atestar a fragorosa violação em massa dos direitos humanos em Cuba e Venezuela. Não fosse o STF, apoiar Maduro ou apostar nos elogios à Fidel e sua ilha privada tampouco soaria bem. Basta lembrar da obra “Antes que Anoiteça”, do cubano exilado Reinaldo Arenas. E o que dizer então do comunismo? Chegados os 100 anos da Revolução Russa, veem a tona os muitos aspectos ditatoriais e, novamente, intrinsecamente violadores da dignidade humana presentes na doutrina. Tanto que é possível encontrar, online, o Memorial das Vítimas do Comunismo, entidade sem fins lucrativos que se destina ao honroso trabalho de denunciar as inúmeras privações e mortes ocorridas sob o encanto utópico da luta contra a exploração do capital. Andrei Sakharov e sua luta memorável pela instalação de liberdades civis na Rússia comunista que o diga. Não fosse o STF, os jacobinos de Marx, do lulopetismo insano da quimera “socialismo e liberdade” seriam reprovados aos montes.

 A noção de direitos inalienáveis da pessoa humana é uma ideia valiosa. Serve principalmente ao fito de estabelecer uma linha rígida de proteção da integridade individual face ao poder abusivo de um governo. A soberania do indivíduo e a autonomia para realizar-se em sociedade, unir-se com quem quiser e perseguir seus intrincados sonhos constituem um dos pontos fundamentais do seu arcabouço filosófico. Uma grande ideia burguesa, portanto.

 Graças, deste modo, ao STF, mas, mais especialmente à rosa que tem sua realidade derivada não do nome, mas de sua concretude empírica, salvaguarda-se a possibilidade do discurso de esquerda mais radical. Se assim não fosse a linguagem ou a realidade epistemológica, imagine-se o sangue que não se faria verter das mãos daqueles que escrevessem “o comunismo representou um baluarte na resistência contra a civilização ocidental, um ponto positivo para a história humana”.

 Bibliografia   


sábado, 4 de novembro de 2017

A Afro-Matemática não deve ser uma Anti-ciência


 Em outubro deste ano realizou-se a inclusão, na UFABC, do ensino obrigatório da “afro-etnomatemática” no curso de licenciatura em Matemática. A medida, que disparou opiniões controvertidas na opinião pública, apresenta pontos extremamente positivos e notáveis– mas, em contrapartida, outros igualmente deletérios.

 De autoria de Jorge Costa e do Coletivo Negro Vozes, a medida é resultado da plataforma Matemáfrica, cujo objetivo é criar um espaço de publicação de projetos e pesquisas associadas ao ensino e aprendizagem da afro-matemática. A escolha pela implementação da afro-matemática, por sua vez, destina-se a eliminar a sub-representação de negras e negros tanto entre discentes, quanto entre os docentes escolares e universitários.  

Nas palavras de Jorge,

“Referências como o filme ‘Estrela Além do Tempo’, demonstram o quanto negras e negros são produtoras de conhecimento científico e que devem ser introduzidos em nossas escolas, com a finalidade de se quebrar estereótipos e demonstrar o talento e a genialidade de nosso povo também nas áreas consideradas ciências duras como matemática, física e química”.

 Em síntese, a instituição das matérias de Estudos Étnico-raciais e Afro-Matemáticas como Transformadora Social resulta da tentativa de descolonizar o curriculum de ensino atualmente vigente no Brasil e no Ocidente: numa palavra, resistir à imposição de matérias e saberes europeus que excluíram ou deixaram forçosamente à margem contribuições e autores africanos. A sub-representação étnica e, doravante, o racismo ainda em voga encontram sua subsistência e sua retroalimentação no ensino de um conjunto de saberes colonizador – porque oriundo da imposição forçada de colonialistas europeus -  e discriminatório.


 Ora, com base nos ensinamentos de um dos mais notórios filósofos da ciência do século XX, karl Popper, o processo de fazer ciência, e portanto, de constituição do conhecimento, tem na tradição racionalista um se seus aspectos mais importantes. O livre debate e aquilo que herdamos dos filósofos gregos e helênicos, posteriormente renascidos pela pena de Galileu, como a busca da verdade através de uma abordagem racional rica e de múltiplas visões, são fatores fundamentais para a valorização da ciência e para a capacidade humana de se livrar de velhas crenças e preconceitos.

 O debruçar-se sobre teorias e autores até então excluídos em virtude de um processo civilizador é louvável e necessário. Popper nos mostrou sabiamente que a ciência se faz com a virtude da humildade. A ciência e o próprio saber deparam-se com a possibilidade de falseabilidade de suas conclusões a partir do nascimento de novas teorias, e nos conduzem sempre à busca de melhoramentos e da solidificação de nosso conhecimento. Nos termos do próprio Popper:

 “Dentro dessa tradição racionalista, a ciência é estimada, reconhecidamente, pelas suas realizações práticas, mais ainda, porém, pelo conteúdo informativo e a capacidade de livrar nossas mentes de velhas crenças e preconceitos, velhas certezas, oferecendo-nos em seu lugar novas conjecturas e hipóteses ousadas. A ciência é valorizada pela influência liberalizadora que exerce – uma das forças mais poderosas que contribuiu para a liberdade humana.”  

 Este aspecto de natureza deveras positiva do Coletivo, choca-se, contudo, com outro inteiramente distinto, que lhe é inclusive oposto. Jorge Costa parece não se furtar à lógica da racialização que tanto marcou as expedições brutais de exclusão e divisão segundo o critério da raça ou da cor. Há, para ele e o Coletivo, racismo na matemática “tradicional”, pois “a disciplina de matemática é uma das responsáveis pela exclusão de negros e negras das escolas, e consequentemente dos cursos superiores nas áreas tecnológicas”.

 A afirmação é alarmante e levanta, de imediato, muitas questões. São a ciência e o conhecimento racistas? Sabemos que a teoria científica pode ser dita como modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos; que descreve uma vasta série de fenômenos com base em postulados simples e é capaz de fazer previsões igualmente claras e sujeitas ao teste empírico. Neste sentido, ainda que nosso curriculum contemporâneo possa ter sido implementado pelas forças excludentes do colonialismo europeu, de forma alguma pode-se desconsiderar as contribuições imensuráveis de autores como Pitágoras, Newton ou Leibniz para o campo da ciência. Tampouco é isento de exagero associar a engenhosidade de suas obras com a finalidade de exaltar a raça branca ou excluir povo considerados inferiores. Suas descobertas estão muito mais alinhadas com o senso do pensar filosófico e do ímpeto de solucionar mistérios físicos ou matemáticos do que propriamente á exclusão de um grupo sub-representado.  

 Construindo uma analogia com a medicina dos dias atuais, é possível remontar as contribuições mais relevantes neste campo, em sua maioria, ao trabalho acadêmico de cientistas ocidentais. Não por isso, porém, podemos afirmar que um médico oncologista que se anima a salvar seu paciente age de forma discriminadamente racista. Muito menos é crível salientar que um professor de medicina no Brasil ou alhures cometa um ato racista ao apresentar as inovações de Lavoisier ou da descoberta da penicilina.  

 Ademais, salta à vista a conclusão, em si mesmo errônea e muito perigosa, de que a sub-representação de um grupo étnico seja resultado explícito da exclusão institucional promovida por um conjunto de normas e instituições igualmente racistas. Há tantos casos de sub-representação documentados ao longo da história que se faz impossível acreditar que um único fator sobrepujante seja capaz de explicar uma desigualdade que já ocorreu ou que ainda persiste. No caso brasileiro, poderíamos afirmar que a matemática “tradicional” é um fator igualmente decisivo para a exclusão de muitos outros brancos, descendentes de europeus ou imigrantes japoneses, que possam não ter tido acesso a uma educação básica de qualidade. No sul do país, por exemplo, onde parte considerável da população é de pele branca, as parcelas da população de baixa renda e com poucas oportunidades de mobilidade social incluem um grande contingente de descendentes de europeus. Tanto no caso da exclusão dos negros como no dos brancos do sul (e em muitos ouros estados da União, onde há também muitos brancos e mestiços pobres), é possível indagar: foram as condições de natureza sócio-econômica, aliadas a fatores como fragilidade dos serviços públicos, ou a cor da pele os fatores primordiais para a eventual definição do ingresso numa universidade pública ou a um ofício bem remunerado?


 Há ainda neste imbróglio outro aspecto relevante. É evidente que a matemática e as ciências “tradicionais” ocidentais são amplamente ensinadas no mundo acadêmico. Este fato, no entanto, pode estar relacionado à faculdade que elas possuem de responder às necessidades existentes no mundo contemporâneo. A tecnologia da computação, a engenharia, as ciências biológicas, a construção civil e o próprio desenvolvimento econômico e social são extremamente dependentes da boa formação de mão-de-obra, que seja capaz de lidar com os desafios que nascem com a globalização e a competividade – e até o momento, a matemática tradicional tem correspondido com sucesso às demandas do progresso material e das melhorias nas condições básicas de vida.

 A inclusão de vozes e contribuições até então relegadas à marginalização é fundamental para o enriquecimento do processo de se fazer ciência e para o próprio desenvolvimento de novas teorias. Já a prática de rotular um determinado campo do saber, não. Por outros meios, classificar a matemática tradicional como racista implica desestimular ou mesmo condenar seu ensino e aprendizado, tal como fizemos, no passado, com as contribuições de grupos subjugados sob a justificativa de que sua cultura e saber eram inferiores. A difusão de uma ciência não pode se ajoelhar, como argumentaria Popper, a um projeto ideológico de poder. É tudo isto extremamente contrário à tradição filosófica que nos legou o que há de mais precioso para a construção do conhecimento em qualquer sociedade: o debate, a livre expressão e o exercício da razão.

Bibliografia