"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 18 de novembro de 2017

Contra a Tirania da Opinião Pública: Por que a Liberdade de Expressão é tão importante?

 Anos atrás, quando Yoani Sánchez desembarcou no Brasil, pronta para apresentar o diagnóstico que fizera da Revolução Cubana, uma horda de desocupados militantes apressou-se a impedir que falasse em público. Em 2012, uma peça de teatro teve sua exibição censurada em virtude de acusação de “racismo” movida por um coletivo negro, muito embora já tivesse estado em turnê em muitos outros momentos, sem ter causado qualquer alvoroço. Em 2016, o conservador Milo Yiannopolous foi coercivamente impedido de discursar na Universidade de Berkeley; do mesmo modo esteve Judith Butler sujeita a constrangimento no ato de sua chegada em São Paulo. Em episódio ainda mais recente, a Justiça determinou que todas as frases “#caetanopedofilo” fossem apagadas das redes sociais, sob penalidade de multa e/ou processo judicial.

 Exemplos, evidentemente, não faltam quando o assunto é o cerceamento da liberdade de expressão. As razões que o justificam costumam expressar a luta contra a intolerância ou o discurso de ódio, promovidos e incentivados por certos grupos – motivação que determinou, por escrito, a decisão favorável aos artistas Caetano Veloso e Paula Lavigne. Não me interesso, aqui, por apontar as razões do meu dissenso dessa decisão ou das severas críticas feitas às exposições “Queermuseum” ou no Museu de Arte Moderna. Antes, pretendo demonstrar porque a liberdade de pensamento, debate e discussão é e deve continuar sendo um valor absoluto e fundamental.

  A obra “On Liberty”, do filósofo inglês John Stuart Mill e publicada em 1859, talvez seja a mais pródiga quando o assunto é a defesa pela liberdade de imprensa e opinião. As justificativas por sua defesa são simples e adaptadas ao o que o autor denomina de “tirania social” ou “tirania da opinião pública”.

 Percebe Mill que a longa tradição da luta contra a autoridade, responsável pela determinação da liberdade em seu sentido negativo (a ação individual não deve ser alvo da intervenção de terceiros), não deve resumir-se na oposição ao poder institucionalizado somente, nem imiscuir-se de agir também de forma positiva. Após a leitura da obra “A Democracia na América”, do amigo e também pensador liberal Alexis de Tocqueville, Mill se dá conta de que o novo fenômeno da igualitarização, marca singular das democracias então nascentes, será responsável por aquilo que Ortega Y Gasset futuramente chamaria de democracia das massas – um novo tipo de força, mais coerciva e constrangedora do que qualquer monarca absoluto poderia ter imaginado.


 Se claro está que deve haver uma esfera de autonomia e independência individuais, ao qual não é legítimo que nem o governo, nem a sociedade possam intervir, surge a questão: como e com o quê poderemos combater a tirania nascente, marcada sobretudo pela mediocridade massificada tornada valor e pelo constrangimento produzido por normas sociais arraigadas e que encontram nos próprios membros da sociedade os seus juízes e promotores?

 A opinião pública, tão policialesca e severa, parece agora constituir o novo braço do poder que censura e representa a tirania da maioria. Para sustentar a necessidade da liberdade de discordar, Mill recorre em primeiro lugar aos exemplos históricos mais notáveis. “A adesão a uma ideia não pode servir como critério de validade”: os julgamentos de Sócrates, Jesus e Galileu evidenciam as trágicas consequências da condenação de ideias e pessoas promovida substancialmente pela opinião pública.

 Em segundo lugar, dado que a constituição humana caminha lado a lado com a existência do erro, consistiria numa presunção terrível imaginar “que se está certo sobre tudo e a todo instante”. Permitir a manifestação da opinião alheia, portanto, é a condição sine qua non para se encontrar a verdade de forma segura. A falibilidade humana, sobre a qual reside o principal argumento em prol da liberdade de pensamento e expressão, não por acaso remete-se ao filósofo Sócrates, o qual subverteu a opinião geral reinante com o exercício das opiniões vigentes submeter ao crivo da razão. No combate à ignorância e às más crenças estabelecidas, é um dever ético combater a ignorância individual e social a partir do diálogo e da disseminação de conhecimento que resultam do debate e do exame racional das diferentes hipóteses levantadas. A fórmula “conhece-te a ti mesmo” não está dissociada nem do uso da razão, nem da prática da liberdade de expressão. A originalidade das ideias que despontam e conduzem a um melhoramento dos hábitos e técnicas de produção não teria sido possível (embora tenha sido dificultada pelo combate à livre expressão de pensamento) sem este exame livre das opiniões aceitas, proporcionada em suma pela possibilidade de expressar visões divergentes.

 Por último, argumenta Mill em prol da autonomia individual, sem nomeadamente referir-se a este termo, como o aspecto positivo da definição de liberdade. O direito à fala, à dissensão, à expressão é fundamental para a busca individual da felicidade. É responsabilidade moral de cada um valer-se não da opinião da maioria, mas realizar-se a partir de sua própria ponderação. Afinal, argumenta Mill, imaginemos quão triste cenário nasceria a nossa frente se apenas a opinião vigente, arraigada na absoluta maioria, servisse de base e princípio orientador na busca por nossos sonhos e desejos?


 O valor fundamental da liberdade de expressão está associado, portanto, a uma finalidade ética e moral, qual seja, a substituição de opiniões equivocadas por outras que sejam corretas, ao aperfeiçoamento daquilo que está ruim. A ignorância nunca é um bem em si mesmo e manter-se voluntariamente nesta escuridão é um ato desalentador e covarde. A repressão à ideia diferente é fenômeno representativo deste medo do diferente e da perda de poder. As nossas certezas, que devem constituir as bases de nossa conduta individual e social, são mais fortes e seguras quando testadas contra todas as teses opostas. Entregar-se à censura é só mais uma prova da rendição face à falibilidade da “natureza” humana, aspecto que nos diz que o erro é mais comum e nocivo à nossa existência do que orientar-se por uma máxima que tenha se provado correta após a submissão ao exame racional e ao livre debate. Acostumar-se ao erro e à inverdade não é senão abrir mão da possibilidade do melhoramento de si mesmo e de uma sociedade inteira: indivíduos, povos e nações apenas se libertam e são mais livres de seus preconceitos e utopias com o uso da crítica e da razão.   

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