É comum escutar a mal fundamentada afirmação
segundo a qual a Inglaterra ou o Reino Unido tal como conhecemos hoje alcançou
o desenvolvimento econômico, que lhe permitiu ingressar no século XIX como a
primeira entre as potências imperiais, por vias de um forte protecionismo e
planejamento estatal centralizado. Na
coluna de hoje, deter-nos-emos à investigação das causas reais do “milagre”
econômico britânico a partir das inovações políticas e institucionais trazidas
no bojo de duas grandes revoluções.
Distante do senso equívoco para o qual o
desenvolvimento dá-se como um processo cumulativo e inexorável, cabe entender que
a força motriz de todo seu crescimento, a Revolução Industrial, não ocorreu por
mera contingência histórica. Como veremos, a profunda transformação que a
sociedade inglesa experimentou entre os anos 1600-1850 resultou da
solidificação dos direitos de propriedade, da expansão da participação política
e dos respectivos direitos políticos, do crescente comércio interno e
ultramarino e, principalmente, da restrição imposta aos poderes da Coroa e aos
monopólios por ela concedidos.
Breve
Panorama Histórico
Com a queda do Império
Romano do Ocidente, no século V d.c., a Europa Ocidental viu-se devastada. O
processo de urbanização que florescera ao longo dos últimos séculos encontrava-se
em retrocesso. O comércio, as portentosas construções romanas e a intensa vida
política e cultural que lhe serviam como corolário desvaneciam. No estertor de
seu último suspiro, as últimas representações romanas, com todos os seus
aparatos administrativos de coleta de impostos e burocracia, partiram do solo
inglês para nunca mais retornarem. Tal como praticamente todo o continente
Europeu, também a Grã Bretanha mergulhava numa longa Idade Média, marcada pelo
campesinato, pela descentralização política, pelas relações de vassalagem e
pela forte hierarquia política e social.
O reino britânico entraria na Idade Moderna
com atraso tecnológico em relação às potências europeias da época, tais como
Espanha e Portugal. Ainda no século XVII, mais de 2/3 de sua população
(incluindo Escócia e País de Gales), então estimada em quase 05 milhões de
habitantes, residia no campo. A atividade agrícola compunha sua principal
atividade econômica e a miséria e as crises de fome eram episódios frequentes. Coroa e Parlamento digladiavam-se para
estabelecer, no caso da primeira, absoluta disposição do poder e, no caso do
segundo, restrições ao poder real, além de maior representação e direitos
políticos.
A situação só começaria a tomar novos rumos a
partir da Guerra Civil, eclodida em 1642 – embora seus primeiros movimentos possam
ser rastreados até à promulgação da Carta Magna, no ano de 1215. Mesmo anulada
por decreto papal, a pedido do próprio monarca João, seus efeitos vingaram e
puderam os barões estabelecer certo contrapeso político ao absolutismo real.
Como maior vitória, impuseram ao rei a determinação de promulgar novos impostos
ou estabelecer alíquotas maiores para os já existentes somente com o
consentimento do conselho dos Barões, fonte primitiva do que viria a ser o
futuro Parlamento. Ainda no mesmo século ocorreriam as primeiras eleições para
o colegiado, formado por 25 eleitos, ainda que apenas os grandes proprietários
rurais tivessem sua representação reconhecida.
Desde então a longa batalha entre Coroa e
Parlamento se fez aprofundar, ainda que caracterizadas, em grande parte dos
casos, pela vitória dos opositores do poder real. A primeira constatação deste
fato advém com a Peste Negra, em 1346. Alertados com a vertiginosa queda na
produção no campo em virtude da morte de parte considerável dos servos e
camponeses, a elite política, formada pelo monarca e pelos senhores feudais que
lhe constituíam a aristocracia imediatamente abaixo, lançou mão de artifícios jurídicos
e políticos destinados a expandir sua esfera de exploração. O resultado,
entretanto, surgiu na forma de verdadeiras revoltas camponesas que lograram
fazer frente, ainda que de forma tímida, aos detentores do poder: os impostos
sobre a produção agrícola diminuíram e tornaram-se os servos livres para
mudarem de terra sem a permissão do senhor. A servidão que tão intrinsecamente marcara
a sociedade feudal começava a esmorecer e a partir de sua erosão a sociedade
comercial e as classes dos mercadantes, industriais e manufaturados passaram a
despontar como novos protagonistas da vida social inglesa.
Anos depois, como resultado imediato da longa
batalha entre as casas de Lancaster e York, em conflito mortal para definir a
sucessão ao trono real, a dinastia Tudor se estabeleceria com a subida de
Henrique VII ao poder. A partir de seu régio governo e também de seus
sucessores, Henrique VIII e Elizabeth I, o sistema de coletas de impostos foi “modernizado”
para os padrões da época; as instituições de poder e o funcionamento do estado
centralizaram-se num corpo único, assegurando que conflitos internos entre
proprietários rurais perdessem força e a lei e a ordem ganhassem terreno por
praticamente todo o reino. Nos
princípios dos anos de 1600, a nação inglesa optou por ingressar na exploração
das novas terras descobertas pelas grandes navegações. A Virginia &
Co., investida pelo monopólio real de explorar as terras ao norte da linha do
Equador, transportou à Jamestown seus primeiros colonos. Decorridos os anos, as
tentativas de submissão dos povos nativos a partir da construção de uma
sociedade baseada na exploração intensa de mão-de-obra escrava ou servil, tal
como se vira nas colônias ibéricas, malfadaram-se todas. Apenas o trabalho
livre e o direito de autodeterminação de cada indivíduo, livre para
apropriar-se do fruto de seu trabalho e do quinhão de terra sobre qual despojava
suas forças, viscejaria como forma de organização social. Não tardou, portanto,
para que o comércio ultramarino entre comerciantes ingleses, muitos dos quais
não eram beneficiários da proteção real à concorrência, e colonos na américa
despontasse com uma energia avassaladora e colocasse em xeque as instituições
arcaicas então estabelecidas.
A discórdia entre a Coroa sequiosa de poder
absoluto e o Parlamento, que vira ascender à representação política a nova
classe de fidalgos, pequenos proprietários rurais associados à manufatura e ao
comércio, chegou ao ápice em 1642. Os vitoriosos ao lado de Cromwell, contudo, temerosos
com os cursos tomados pela então república inglesa, nada puderam fazer senão
reivindicar o retorno da monarquia. Com a dinastia Stuart entronada, a difícil relação
entre Coroa e Parlamento chegaria a um novo ápice com a Revolução Gloriosa em
1689, consumada com a promulgação da Declaração dos Direitos e com a
proclamação de Guilherme de Orange como novo monarca inglês. A carta inglesa,
não obstante, representaria um novo marco na história inglesa, o primeiro
exemplo de um artifício constitucional moderno que transmitia à representação
legislativa o exercício do poder e limitava com fronteiras claras e rígidas a
extensão do poder real. De 1689 em diante, a Grã-Bretanha assistiria a um
formidável processo de inovação tecnológica, econômica, social e política que
lhe lançaria como o maior império ultramarino do século XIX.
Os
Direitos de Propriedade e o Empreendedorismo
Se antes de 1688 os
investimentos eram escassos, com a proclamação da Declaração de Direitos a
história inverteu-se por inteiro. Os direitos de propriedade, instáveis e pouco
seguros em razão das arbitrariedades dos monarcas, em especial de Jaime II,
solidificaram-se com a independência do Parlamento. Antes de 1688, poucos eram
aqueles que se arriscavam a direcionar seu capital para a elaboração de
qualquer empreendimento, uma vez que seus ganhos futuros, conforme indicavam experiências
anteriores, poderiam ser confiscados sem aviso ou justificativa. A primeira
manifestação dos benefícios da seguridade jurídica atribuída aos direitos de
propriedade manifestou-se logo cedo, com o aprimoramento veloz da
infraestrutura nos transportes, em especial com a construção de canais, estradas
e ferrovias que, mais tarde, serviriam para reduzir os custos e otimizar o transporte
de bens intermediários e dos bens manufaturados pelo indústria, em especial
para escoar de forma rápida e segura a produção para os grande portos ingleses.
No campo, as leis regentes de propriedade de terras, que impediam seus usuários
de arrenda-las ou vende-las, foram reformuladas e em seu lugar instalou-se um
eficiente ambiente de aquisição, transferência e uso da terra que impulsionou um
forte aumento de produtividade do trabalho rural.
Do mesmo modo, os monopólios internos e
externos na produção têxtil e no comércio, então concedidos pelo monarca em
troca de favores econômicos, viram-se abalados com a permissão à entrada de
novos concorrentes e à criação de um ambiente profundamente amistoso á
inovação. Cabe aqui menção especial à criação
do sistema de patentes: inovação para a época, sua regulação transparente
conferiu os incentivos necessários à inovação que antes inexistiam no reino. Antes
da vitória final do Parlamento, a “destruição criativa” viabilizada pela
inovação era mormente temida e combatida pelo poder central – como bem ilustra
o caso de William Lee, um dos primeiros inventores da Inglaterra moderna, cujos
inventos foram tenazmente rechaçados por investirem contra o trabalho exaustivo
da tecelagem manual. Com a Revolução Gloriosa, estavam assentes as bases para a
Revolução Industrial: cientes de que poderiam beneficiar-se de suas inovações,
mentes prodigiosas como James Watt, criador da moderna máquina a vapor, Jonh
Kay, inventor da moderna lançadeira voadora, Edmund Cartwright, criador do tear
mecânico obtiveram o espaço e os incentivos suficientes para concentrar seus
esforços no desenvolvimento de melhores técnicas produtivas. Não sem razão a
lista de inventores da Revolução Industrial não é pequena.
O século XVIII assistiu também à criação de um
moderno sistema financeiro, antes terrivelmente arcaico e incipiente muito em
virtude dos monopólios estabelecidos para a concessão do crédito e para as
incertezas trazidas com as eventuais dívidas jamais pagas pela Coroa. À criação
do Banco da Inglaterra, que garantiu independência do Tesouro e do Fisco em
relação ao poder político, surgido no início do século, seguiu-se a fundação de
muitas outras instituições financeiras, de tamanhos variados, que tornou mais
viável a concessão de empréstimos para empreendedores e trabalhadores sem origem
privilegiada ou de linhagem nobre. Estima-se, inclusive, que, ao longo do
século, mais de 60% dos novos negócios surgidos no reino tenham tido sua origem
nas mãos de comerciantes, manufaturados e trabalhadores sem ascendência social
relevante – um progresso sem tamanho não apenas para a época, mas também para
os padrões de hoje em diversos países.
Foi no campo da tecelagem e da produção
têxtil, porém, que se fizeram sentir os maiores impactos da Revolução
Industrial. No começo do século XVIII eram necessárias 50 mil horas para fiar à
mão 45 quilos de algodão. Com a máquina hidráulica de Arkwright, tornou-se
possível executar o mesmo montante de trabalho em apenas 300 horas e, com o uso
da mula automática, em apenas 135. Neste período é notório o aprimoramento das
instituições políticas inglesas no sentido de impedir a formação de monopólios
protegidos por lei. Em seu exemplo mais significativo, ainda que tenham tido
sucesso ao implementar certas barreiras á entrada de malhas e tecidos
importados da Índia e da China, os produtores de lã não lograram obstar o
desenvolvimento da manufatura algodoeira. A petição enviada ao Parlamento que
exigia tornar lei o uso, por parte de cada um que residisse no reino, de roupas
feitas a partir da lã encontrou sua derrota final com a promulgação da Lei de
Manchester, em 1736, pela qual se assegurou a plena independência dos
produtores de algodão espalhados por toda a Grã-Bretanha. Tais produtores incorreram também noutra
feitura ao deitar por terra os pesados impostos alfandegários sobre o trigo. Em
1849 via-se revogada a então Lei dos Grãos. Concomitantemente, pululavam os
movimentos populares em prol de maiores direitos políticos, representação, o
sufrágio feminino e o fim da escravatura.
O
Comércio Ultramarino
Outro ponto no qual
concordam eminentes historiadores econômicos da Grã-Bretanha diz respeito ao
papel do comércio internacional para a promoção da Revolução Industrial. É
seguro dizer que, sem o intercâmbio de produtos, a expansão da produção e as
profundas transformações ocorridas nos métodos de produção então vigentes
teriam tido um alcance e eficiência absolutamente menores.
A situação é explicada de forma clara ao
lançarmos os olhos sobre o papel que compreendia o comercio na constituição da
renda bruta do reino em períodos pré e pós Revolução Gloriosa. Se, em meados
dos séculos XVII e XVIII vivam os britânicos da importação substancial – porém artificialmente
concentrada por uma pequena elite - de tecidos oriundos do continente asiático,
que correspondia a quase um quarto do total de importações têxteis, e da parca
produção nacional de grãos e alimentos, sem produção ou largas exportações em
contrapartida, após a Revolução de 1689 o comércio passa a constituir uma das
principais composições de sua renda nacional, superando, em nível da soma de
importações e exportações, os próprios Países Baixos. Também no campo das
importações, sua diversificação provocada pelo surgimento do comércio ultramarino
e pelas possibilidades que dele surgiram salta aos olhos. É possível estimar
que sem a concorrência da produção têxtil externa ou sem a importação do ferro
fundido não teriam as indústrias inglesas se desenvolvido e proliferado com
tamanha rapidez. Com a Revolução Gloriosa, a importação de madras e sedas
chinesas era monopólio exclusivo da Companhia das Índias Ocidentais. Com tal
monopólio posto abaixo, uma nova Companhia foi fundada para fazer-lhe frente em
termos concorrenciais. Por volta desta época, mesmo com a imposição de pesados
tributos à importação de itens manufaturados dos mercados indiano e chinês, os
produtores de lã viram suas tentativas de constituição de monopólio e
concentração de recursos em sua atividade barradas pelo crescimento da produção
de algodão.
Com o poder ligeiramente maior do Parlamento,
uma nova classe de marcadores e empresários, ferrenhos opositores do absolutismo
em Inglaterra, deu início ao incremento das trocas comerciais. Em 1686, por
exemplo, subsistiam em Londres 702 mercadores que exportavam para o Caribe,
além de outros 1.283 importadores. Em toda a américa do norte, que viria sofrer
fortes influências das positivas inovações institucionais inglesas, em especial
a adaptação do sistema de patentes, existiam 691 exportadores e 626
importadores. Nesta vasta rede, empregavam-se gerentes de armazém, marinheiros,
capitães, portuários, escriturários. Outros tantos mercadores já existiam aos
montes nos portos vibrantes de Bristol, Liverpool e Portsmouth. Sem dúvida, é possível afirmar que assistiu a
Inglaterra no século XVIII o nascimento de uma classe de mercadores que
constituiria um poderoso mercado consumidor, responsável por intensificar o
comércio e lançar as bases para o forte crescimento econômico – este sim
inteiramente devido ao comércio internacional sem barreiras
alfandegárias –que adviria no século seguinte.
Conclusão
Toma-se corretamente o Reino Unido como a primeira
nação a industrializar-se e dar os primeiros e mais significativos passos em
direção às modernas instituições políticas e econômicas características das
economias de mercado. Longe de basearam-se num processo cumulativo ou centralmente
orientado, tais transformações foram oriundas da vontade de inúmeros homens e
mulheres, alçados a uma nova condição de participação na vida política e
econômica a partir das mudanças ocasionadas com as revoluções setecentistas.
É verdade que os novos interesses nascidos com
os ares da modernidade encontraram forte representação política no Parlamento a
partir da promulgação da Declaração de Direitos. No entanto, é preciso também
ponderar: o comércio ultramarino e a erosão do sistema feudal, com sua
consequente solidificação dos direitos de propriedade e constituição de eficientes
sistemas de incentivo à produção livre, ao empreendedorismo e à inovação
constituíram as condições de possibilidade para a Revolução Industrial e para o
posterior desenvolvimento econômico e social inglês. Uma nova classe social e
política, com anseios e poderes diferentes, nascia no horizonte e, dado os
acontecimentos históricos, não é de se surpreender que a Revolução Industrial
tenha tido justamente os britânicos como seus protagonistas.
Fontes
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