"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

As causas do Desenvolvimento Britânico no Século XVIII

 É comum escutar a mal fundamentada afirmação segundo a qual a Inglaterra ou o Reino Unido tal como conhecemos hoje alcançou o desenvolvimento econômico, que lhe permitiu ingressar no século XIX como a primeira entre as potências imperiais, por vias de um forte protecionismo e planejamento estatal centralizado.  Na coluna de hoje, deter-nos-emos à investigação das causas reais do “milagre” econômico britânico a partir das inovações políticas e institucionais trazidas no bojo de duas grandes revoluções.

 Distante do senso equívoco para o qual o desenvolvimento dá-se como um processo cumulativo e inexorável, cabe entender que a força motriz de todo seu crescimento, a Revolução Industrial, não ocorreu por mera contingência histórica. Como veremos, a profunda transformação que a sociedade inglesa experimentou entre os anos 1600-1850 resultou da solidificação dos direitos de propriedade, da expansão da participação política e dos respectivos direitos políticos, do crescente comércio interno e ultramarino e, principalmente, da restrição imposta aos poderes da Coroa e aos monopólios por ela concedidos.

Breve Panorama Histórico

 Com a queda do Império Romano do Ocidente, no século V d.c., a Europa Ocidental viu-se devastada. O processo de urbanização que florescera ao longo dos últimos séculos encontrava-se em retrocesso. O comércio, as portentosas construções romanas e a intensa vida política e cultural que lhe serviam como corolário desvaneciam. No estertor de seu último suspiro, as últimas representações romanas, com todos os seus aparatos administrativos de coleta de impostos e burocracia, partiram do solo inglês para nunca mais retornarem. Tal como praticamente todo o continente Europeu, também a Grã Bretanha mergulhava numa longa Idade Média, marcada pelo campesinato, pela descentralização política, pelas relações de vassalagem e pela forte hierarquia política e social.

 O reino britânico entraria na Idade Moderna com atraso tecnológico em relação às potências europeias da época, tais como Espanha e Portugal. Ainda no século XVII, mais de 2/3 de sua população (incluindo Escócia e País de Gales), então estimada em quase 05 milhões de habitantes, residia no campo. A atividade agrícola compunha sua principal atividade econômica e a miséria e as crises de fome eram episódios frequentes.  Coroa e Parlamento digladiavam-se para estabelecer, no caso da primeira, absoluta disposição do poder e, no caso do segundo, restrições ao poder real, além de maior representação e direitos políticos.

 A situação só começaria a tomar novos rumos a partir da Guerra Civil, eclodida em 1642 – embora seus primeiros movimentos possam ser rastreados até à promulgação da Carta Magna, no ano de 1215. Mesmo anulada por decreto papal, a pedido do próprio monarca João, seus efeitos vingaram e puderam os barões estabelecer certo contrapeso político ao absolutismo real. Como maior vitória, impuseram ao rei a determinação de promulgar novos impostos ou estabelecer alíquotas maiores para os já existentes somente com o consentimento do conselho dos Barões, fonte primitiva do que viria a ser o futuro Parlamento. Ainda no mesmo século ocorreriam as primeiras eleições para o colegiado, formado por 25 eleitos, ainda que apenas os grandes proprietários rurais tivessem sua representação reconhecida.

 Desde então a longa batalha entre Coroa e Parlamento se fez aprofundar, ainda que caracterizadas, em grande parte dos casos, pela vitória dos opositores do poder real. A primeira constatação deste fato advém com a Peste Negra, em 1346. Alertados com a vertiginosa queda na produção no campo em virtude da morte de parte considerável dos servos e camponeses, a elite política, formada pelo monarca e pelos senhores feudais que lhe constituíam a aristocracia imediatamente abaixo, lançou mão de artifícios jurídicos e políticos destinados a expandir sua esfera de exploração. O resultado, entretanto, surgiu na forma de verdadeiras revoltas camponesas que lograram fazer frente, ainda que de forma tímida, aos detentores do poder: os impostos sobre a produção agrícola diminuíram e tornaram-se os servos livres para mudarem de terra sem a permissão do senhor. A servidão que tão intrinsecamente marcara a sociedade feudal começava a esmorecer e a partir de sua erosão a sociedade comercial e as classes dos mercadantes, industriais e manufaturados passaram a despontar como novos protagonistas da vida social inglesa.

 Anos depois, como resultado imediato da longa batalha entre as casas de Lancaster e York, em conflito mortal para definir a sucessão ao trono real, a dinastia Tudor se estabeleceria com a subida de Henrique VII ao poder. A partir de seu régio governo e também de seus sucessores, Henrique VIII e Elizabeth I, o sistema de coletas de impostos foi “modernizado” para os padrões da época; as instituições de poder e o funcionamento do estado centralizaram-se num corpo único, assegurando que conflitos internos entre proprietários rurais perdessem força e a lei e a ordem ganhassem terreno por praticamente todo o reino.  Nos princípios dos anos de 1600, a nação inglesa optou por ingressar na exploração das novas terras descobertas pelas grandes navegações. A Virginia & Co., investida pelo monopólio real de explorar as terras ao norte da linha do Equador, transportou à Jamestown seus primeiros colonos. Decorridos os anos, as tentativas de submissão dos povos nativos a partir da construção de uma sociedade baseada na exploração intensa de mão-de-obra escrava ou servil, tal como se vira nas colônias ibéricas, malfadaram-se todas. Apenas o trabalho livre e o direito de autodeterminação de cada indivíduo, livre para apropriar-se do fruto de seu trabalho e do quinhão de terra sobre qual despojava suas forças, viscejaria como forma de organização social. Não tardou, portanto, para que o comércio ultramarino entre comerciantes ingleses, muitos dos quais não eram beneficiários da proteção real à concorrência, e colonos na américa despontasse com uma energia avassaladora e colocasse em xeque as instituições arcaicas então estabelecidas.


  A discórdia entre a Coroa sequiosa de poder absoluto e o Parlamento, que vira ascender à representação política a nova classe de fidalgos, pequenos proprietários rurais associados à manufatura e ao comércio, chegou ao ápice em 1642. Os vitoriosos ao lado de Cromwell, contudo, temerosos com os cursos tomados pela então república inglesa, nada puderam fazer senão reivindicar o retorno da monarquia. Com a dinastia Stuart entronada, a difícil relação entre Coroa e Parlamento chegaria a um novo ápice com a Revolução Gloriosa em 1689, consumada com a promulgação da Declaração dos Direitos e com a proclamação de Guilherme de Orange como novo monarca inglês. A carta inglesa, não obstante, representaria um novo marco na história inglesa, o primeiro exemplo de um artifício constitucional moderno que transmitia à representação legislativa o exercício do poder e limitava com fronteiras claras e rígidas a extensão do poder real. De 1689 em diante, a Grã-Bretanha assistiria a um formidável processo de inovação tecnológica, econômica, social e política que lhe lançaria como o maior império ultramarino do século XIX.

Os Direitos de Propriedade e o Empreendedorismo

 Se antes de 1688 os investimentos eram escassos, com a proclamação da Declaração de Direitos a história inverteu-se por inteiro. Os direitos de propriedade, instáveis e pouco seguros em razão das arbitrariedades dos monarcas, em especial de Jaime II, solidificaram-se com a independência do Parlamento. Antes de 1688, poucos eram aqueles que se arriscavam a direcionar seu capital para a elaboração de qualquer empreendimento, uma vez que seus ganhos futuros, conforme indicavam experiências anteriores, poderiam ser confiscados sem aviso ou justificativa. A primeira manifestação dos benefícios da seguridade jurídica atribuída aos direitos de propriedade manifestou-se logo cedo, com o aprimoramento veloz da infraestrutura nos transportes, em especial com a construção de canais, estradas e ferrovias que, mais tarde, serviriam para reduzir os custos e otimizar o transporte de bens intermediários e dos bens manufaturados pelo indústria, em especial para escoar de forma rápida e segura a produção para os grande portos ingleses. No campo, as leis regentes de propriedade de terras, que impediam seus usuários de arrenda-las ou vende-las, foram reformuladas e em seu lugar instalou-se um eficiente ambiente de aquisição, transferência e uso da terra que impulsionou um forte aumento de produtividade do trabalho rural.

 Do mesmo modo, os monopólios internos e externos na produção têxtil e no comércio, então concedidos pelo monarca em troca de favores econômicos, viram-se abalados com a permissão à entrada de novos concorrentes e à criação de um ambiente profundamente amistoso á inovação.  Cabe aqui menção especial à criação do sistema de patentes: inovação para a época, sua regulação transparente conferiu os incentivos necessários à inovação que antes inexistiam no reino. Antes da vitória final do Parlamento, a “destruição criativa” viabilizada pela inovação era mormente temida e combatida pelo poder central – como bem ilustra o caso de William Lee, um dos primeiros inventores da Inglaterra moderna, cujos inventos foram tenazmente rechaçados por investirem contra o trabalho exaustivo da tecelagem manual. Com a Revolução Gloriosa, estavam assentes as bases para a Revolução Industrial: cientes de que poderiam beneficiar-se de suas inovações, mentes prodigiosas como James Watt, criador da moderna máquina a vapor, Jonh Kay, inventor da moderna lançadeira voadora, Edmund Cartwright, criador do tear mecânico obtiveram o espaço e os incentivos suficientes para concentrar seus esforços no desenvolvimento de melhores técnicas produtivas. Não sem razão a lista de inventores da Revolução Industrial não é pequena.

 O século XVIII assistiu também à criação de um moderno sistema financeiro, antes terrivelmente arcaico e incipiente muito em virtude dos monopólios estabelecidos para a concessão do crédito e para as incertezas trazidas com as eventuais dívidas jamais pagas pela Coroa. À criação do Banco da Inglaterra, que garantiu independência do Tesouro e do Fisco em relação ao poder político, surgido no início do século, seguiu-se a fundação de muitas outras instituições financeiras, de tamanhos variados, que tornou mais viável a concessão de empréstimos para empreendedores e trabalhadores sem origem privilegiada ou de linhagem nobre. Estima-se, inclusive, que, ao longo do século, mais de 60% dos novos negócios surgidos no reino tenham tido sua origem nas mãos de comerciantes, manufaturados e trabalhadores sem ascendência social relevante – um progresso sem tamanho não apenas para a época, mas também para os padrões de hoje em diversos países.


 Foi no campo da tecelagem e da produção têxtil, porém, que se fizeram sentir os maiores impactos da Revolução Industrial. No começo do século XVIII eram necessárias 50 mil horas para fiar à mão 45 quilos de algodão. Com a máquina hidráulica de Arkwright, tornou-se possível executar o mesmo montante de trabalho em apenas 300 horas e, com o uso da mula automática, em apenas 135. Neste período é notório o aprimoramento das instituições políticas inglesas no sentido de impedir a formação de monopólios protegidos por lei. Em seu exemplo mais significativo, ainda que tenham tido sucesso ao implementar certas barreiras á entrada de malhas e tecidos importados da Índia e da China, os produtores de lã não lograram obstar o desenvolvimento da manufatura algodoeira. A petição enviada ao Parlamento que exigia tornar lei o uso, por parte de cada um que residisse no reino, de roupas feitas a partir da lã encontrou sua derrota final com a promulgação da Lei de Manchester, em 1736, pela qual se assegurou a plena independência dos produtores de algodão espalhados por toda a Grã-Bretanha.  Tais produtores incorreram também noutra feitura ao deitar por terra os pesados impostos alfandegários sobre o trigo. Em 1849 via-se revogada a então Lei dos Grãos. Concomitantemente, pululavam os movimentos populares em prol de maiores direitos políticos, representação, o sufrágio feminino e o fim da escravatura.

O Comércio Ultramarino   

 Outro ponto no qual concordam eminentes historiadores econômicos da Grã-Bretanha diz respeito ao papel do comércio internacional para a promoção da Revolução Industrial. É seguro dizer que, sem o intercâmbio de produtos, a expansão da produção e as profundas transformações ocorridas nos métodos de produção então vigentes teriam tido um alcance e eficiência absolutamente menores.

 A situação é explicada de forma clara ao lançarmos os olhos sobre o papel que compreendia o comercio na constituição da renda bruta do reino em períodos pré e pós Revolução Gloriosa. Se, em meados dos séculos XVII e XVIII vivam os britânicos da importação substancial – porém artificialmente concentrada por uma pequena elite - de tecidos oriundos do continente asiático, que correspondia a quase um quarto do total de importações têxteis, e da parca produção nacional de grãos e alimentos, sem produção ou largas exportações em contrapartida, após a Revolução de 1689 o comércio passa a constituir uma das principais composições de sua renda nacional, superando, em nível da soma de importações e exportações, os próprios Países Baixos. Também no campo das importações, sua diversificação provocada pelo surgimento do comércio ultramarino e pelas possibilidades que dele surgiram salta aos olhos. É possível estimar que sem a concorrência da produção têxtil externa ou sem a importação do ferro fundido não teriam as indústrias inglesas se desenvolvido e proliferado com tamanha rapidez. Com a Revolução Gloriosa, a importação de madras e sedas chinesas era monopólio exclusivo da Companhia das Índias Ocidentais. Com tal monopólio posto abaixo, uma nova Companhia foi fundada para fazer-lhe frente em termos concorrenciais. Por volta desta época, mesmo com a imposição de pesados tributos à importação de itens manufaturados dos mercados indiano e chinês, os produtores de lã viram suas tentativas de constituição de monopólio e concentração de recursos em sua atividade barradas pelo crescimento da produção de algodão.  

 Com o poder ligeiramente maior do Parlamento, uma nova classe de marcadores e empresários, ferrenhos opositores do absolutismo em Inglaterra, deu início ao incremento das trocas comerciais. Em 1686, por exemplo, subsistiam em Londres 702 mercadores que exportavam para o Caribe, além de outros 1.283 importadores. Em toda a américa do norte, que viria sofrer fortes influências das positivas inovações institucionais inglesas, em especial a adaptação do sistema de patentes, existiam 691 exportadores e 626 importadores. Nesta vasta rede, empregavam-se gerentes de armazém, marinheiros, capitães, portuários, escriturários. Outros tantos mercadores já existiam aos montes nos portos vibrantes de Bristol, Liverpool e Portsmouth.  Sem dúvida, é possível afirmar que assistiu a Inglaterra no século XVIII o nascimento de uma classe de mercadores que constituiria um poderoso mercado consumidor, responsável por intensificar o comércio e lançar as bases para o forte crescimento econômico – este sim inteiramente devido ao comércio internacional sem barreiras alfandegárias –que adviria no século seguinte.  

Conclusão

 Toma-se corretamente o Reino Unido como a primeira nação a industrializar-se e dar os primeiros e mais significativos passos em direção às modernas instituições políticas e econômicas características das economias de mercado. Longe de basearam-se num processo cumulativo ou centralmente orientado, tais transformações foram oriundas da vontade de inúmeros homens e mulheres, alçados a uma nova condição de participação na vida política e econômica a partir das mudanças ocasionadas com as revoluções setecentistas.

 É verdade que os novos interesses nascidos com os ares da modernidade encontraram forte representação política no Parlamento a partir da promulgação da Declaração de Direitos. No entanto, é preciso também ponderar: o comércio ultramarino e a erosão do sistema feudal, com sua consequente solidificação dos direitos de propriedade e constituição de eficientes sistemas de incentivo à produção livre, ao empreendedorismo e à inovação constituíram as condições de possibilidade para a Revolução Industrial e para o posterior desenvolvimento econômico e social inglês. Uma nova classe social e política, com anseios e poderes diferentes, nascia no horizonte e, dado os acontecimentos históricos, não é de se surpreender que a Revolução Industrial tenha tido justamente os britânicos como seus protagonistas.  

Fontes










Nenhum comentário:

Postar um comentário