"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sábado, 18 de novembro de 2017

Contra a Tirania da Opinião Pública: Por que a Liberdade de Expressão é tão importante?

 Anos atrás, quando Yoani Sánchez desembarcou no Brasil, pronta para apresentar o diagnóstico que fizera da Revolução Cubana, uma horda de desocupados militantes apressou-se a impedir que falasse em público. Em 2012, uma peça de teatro teve sua exibição censurada em virtude de acusação de “racismo” movida por um coletivo negro, muito embora já tivesse estado em turnê em muitos outros momentos, sem ter causado qualquer alvoroço. Em 2016, o conservador Milo Yiannopolous foi coercivamente impedido de discursar na Universidade de Berkeley; do mesmo modo esteve Judith Butler sujeita a constrangimento no ato de sua chegada em São Paulo. Em episódio ainda mais recente, a Justiça determinou que todas as frases “#caetanopedofilo” fossem apagadas das redes sociais, sob penalidade de multa e/ou processo judicial.

 Exemplos, evidentemente, não faltam quando o assunto é o cerceamento da liberdade de expressão. As razões que o justificam costumam expressar a luta contra a intolerância ou o discurso de ódio, promovidos e incentivados por certos grupos – motivação que determinou, por escrito, a decisão favorável aos artistas Caetano Veloso e Paula Lavigne. Não me interesso, aqui, por apontar as razões do meu dissenso dessa decisão ou das severas críticas feitas às exposições “Queermuseum” ou no Museu de Arte Moderna. Antes, pretendo demonstrar porque a liberdade de pensamento, debate e discussão é e deve continuar sendo um valor absoluto e fundamental.

  A obra “On Liberty”, do filósofo inglês John Stuart Mill e publicada em 1859, talvez seja a mais pródiga quando o assunto é a defesa pela liberdade de imprensa e opinião. As justificativas por sua defesa são simples e adaptadas ao o que o autor denomina de “tirania social” ou “tirania da opinião pública”.

 Percebe Mill que a longa tradição da luta contra a autoridade, responsável pela determinação da liberdade em seu sentido negativo (a ação individual não deve ser alvo da intervenção de terceiros), não deve resumir-se na oposição ao poder institucionalizado somente, nem imiscuir-se de agir também de forma positiva. Após a leitura da obra “A Democracia na América”, do amigo e também pensador liberal Alexis de Tocqueville, Mill se dá conta de que o novo fenômeno da igualitarização, marca singular das democracias então nascentes, será responsável por aquilo que Ortega Y Gasset futuramente chamaria de democracia das massas – um novo tipo de força, mais coerciva e constrangedora do que qualquer monarca absoluto poderia ter imaginado.


 Se claro está que deve haver uma esfera de autonomia e independência individuais, ao qual não é legítimo que nem o governo, nem a sociedade possam intervir, surge a questão: como e com o quê poderemos combater a tirania nascente, marcada sobretudo pela mediocridade massificada tornada valor e pelo constrangimento produzido por normas sociais arraigadas e que encontram nos próprios membros da sociedade os seus juízes e promotores?

 A opinião pública, tão policialesca e severa, parece agora constituir o novo braço do poder que censura e representa a tirania da maioria. Para sustentar a necessidade da liberdade de discordar, Mill recorre em primeiro lugar aos exemplos históricos mais notáveis. “A adesão a uma ideia não pode servir como critério de validade”: os julgamentos de Sócrates, Jesus e Galileu evidenciam as trágicas consequências da condenação de ideias e pessoas promovida substancialmente pela opinião pública.

 Em segundo lugar, dado que a constituição humana caminha lado a lado com a existência do erro, consistiria numa presunção terrível imaginar “que se está certo sobre tudo e a todo instante”. Permitir a manifestação da opinião alheia, portanto, é a condição sine qua non para se encontrar a verdade de forma segura. A falibilidade humana, sobre a qual reside o principal argumento em prol da liberdade de pensamento e expressão, não por acaso remete-se ao filósofo Sócrates, o qual subverteu a opinião geral reinante com o exercício das opiniões vigentes submeter ao crivo da razão. No combate à ignorância e às más crenças estabelecidas, é um dever ético combater a ignorância individual e social a partir do diálogo e da disseminação de conhecimento que resultam do debate e do exame racional das diferentes hipóteses levantadas. A fórmula “conhece-te a ti mesmo” não está dissociada nem do uso da razão, nem da prática da liberdade de expressão. A originalidade das ideias que despontam e conduzem a um melhoramento dos hábitos e técnicas de produção não teria sido possível (embora tenha sido dificultada pelo combate à livre expressão de pensamento) sem este exame livre das opiniões aceitas, proporcionada em suma pela possibilidade de expressar visões divergentes.

 Por último, argumenta Mill em prol da autonomia individual, sem nomeadamente referir-se a este termo, como o aspecto positivo da definição de liberdade. O direito à fala, à dissensão, à expressão é fundamental para a busca individual da felicidade. É responsabilidade moral de cada um valer-se não da opinião da maioria, mas realizar-se a partir de sua própria ponderação. Afinal, argumenta Mill, imaginemos quão triste cenário nasceria a nossa frente se apenas a opinião vigente, arraigada na absoluta maioria, servisse de base e princípio orientador na busca por nossos sonhos e desejos?


 O valor fundamental da liberdade de expressão está associado, portanto, a uma finalidade ética e moral, qual seja, a substituição de opiniões equivocadas por outras que sejam corretas, ao aperfeiçoamento daquilo que está ruim. A ignorância nunca é um bem em si mesmo e manter-se voluntariamente nesta escuridão é um ato desalentador e covarde. A repressão à ideia diferente é fenômeno representativo deste medo do diferente e da perda de poder. As nossas certezas, que devem constituir as bases de nossa conduta individual e social, são mais fortes e seguras quando testadas contra todas as teses opostas. Entregar-se à censura é só mais uma prova da rendição face à falibilidade da “natureza” humana, aspecto que nos diz que o erro é mais comum e nocivo à nossa existência do que orientar-se por uma máxima que tenha se provado correta após a submissão ao exame racional e ao livre debate. Acostumar-se ao erro e à inverdade não é senão abrir mão da possibilidade do melhoramento de si mesmo e de uma sociedade inteira: indivíduos, povos e nações apenas se libertam e são mais livres de seus preconceitos e utopias com o uso da crítica e da razão.   

sábado, 11 de novembro de 2017

O Curioso Caso STF versus ENEM

 Não é razoável supor que uma mera redação do Exame Nacional do Ensino Médio possa incorrer numa violação dos direitos humanos. Requer muito esforço de imaginação pensar que as palavras escritas por um indivíduo qualquer tenham como resultado a perda injusta da liberdade, da moradia ou da vida de um ser humano que esteja do seu lado ou a muitos quilômetros de distância.

 Durante parte da Idade Média, como bem retratou Humberto Eco em sua brilhante obra “O Nome da Rosa”, creia-se que a realidade de um ente ou fenômeno manifestava-se, de certa forma, apenas com o pronunciar do seu enunciado – um tipo de platonismo aperfeiçoado com uma roupagem nova, diga-se de passagem.

 O veto contra a penalidade de anulação da redação em virtude da violação ou mesmo da mera apologia à violação dos direitos humanos, expedido pelo STF horas antes da realização da prova, representa uma decisão acertada, sóbria. “Não se pode combater intolerância social com intolerância estatal”, escreveu a meritíssima Carmen Lúcia. A liberdade de expressão ficou assim resguardada, tanto mais porque não se definiu bem, no edital da prova, quais eram esses tão sagrados direitos humanos ou com a definição de qual entidade se associava a cláusula.

 Os mais inditosos defensores da moralidade da luta contra a “barbárie neoliberal” se rebelaram, quase enfurecidos. Afinal, argumentaram, o fascismo poderia discorrer à vontade, sem que nada se lhe opusesse. Ironicamente, contudo, a decisão do STF lhe foi extremamente benéfica.

 A Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, representa o breviário, o estatuto internacional com o qual todas as noções e esforços correntes de proteção dos direitos humanos se referendam. São já notórias as advertências que a ONU dirige ao Brasil no que tange à proteção da dignidade da pessoa humana. Os jovens negros e a comunidade LGBT constituem o foco de atenção e a fonte de muitas das preocupações das organizações multilaterais que concorrem para a promoção dos direitos inalienáveis da pessoa humana. Escreve o projeto Vidas Negras que a cada 02 horas 05 jovens negros são vitimados no país. Salienta a última resolução do Conselho de Direitos Humanos que a cada 28 horas um homossexual/transexual/travesti é assassinado por aqui, muito embora, em contrapartida, não se explique quais são os outros grupos étnicos ou qual a sexualidade dos demais mortos no mesmo espaço de tempo. Segundo o Anuário de Segurança Pública, a cada 02 horas 14 pessoas perdem a vida de forma violenta no Brasil. Se 05 são jovens negros, os restantes só podem ser pessoas brancas, e/ou mestiços e/ou índios, etc... Da mesma forma, temos 196 mortos a cada 28 horas, mas parece interessar a alguns frisar o sofrimento apenas de uma pequena parte da amostra.

 Incongruências à parte, há outros direitos humanos que são violados em nossas terras tupiniquins e cuja defesa (da violação, não da preservação do direito) é hegemônica, para não dizer lastimosa. A Declaração é clara ao considerar a propriedade um direito, e sua violação uma clara violência à dignidade humana. Não fosse o STF, defender as invasões do MST ou do MTST não cairia nada bem. O Conselho dos Direitos Humanos também é claro ao atestar a fragorosa violação em massa dos direitos humanos em Cuba e Venezuela. Não fosse o STF, apoiar Maduro ou apostar nos elogios à Fidel e sua ilha privada tampouco soaria bem. Basta lembrar da obra “Antes que Anoiteça”, do cubano exilado Reinaldo Arenas. E o que dizer então do comunismo? Chegados os 100 anos da Revolução Russa, veem a tona os muitos aspectos ditatoriais e, novamente, intrinsecamente violadores da dignidade humana presentes na doutrina. Tanto que é possível encontrar, online, o Memorial das Vítimas do Comunismo, entidade sem fins lucrativos que se destina ao honroso trabalho de denunciar as inúmeras privações e mortes ocorridas sob o encanto utópico da luta contra a exploração do capital. Andrei Sakharov e sua luta memorável pela instalação de liberdades civis na Rússia comunista que o diga. Não fosse o STF, os jacobinos de Marx, do lulopetismo insano da quimera “socialismo e liberdade” seriam reprovados aos montes.

 A noção de direitos inalienáveis da pessoa humana é uma ideia valiosa. Serve principalmente ao fito de estabelecer uma linha rígida de proteção da integridade individual face ao poder abusivo de um governo. A soberania do indivíduo e a autonomia para realizar-se em sociedade, unir-se com quem quiser e perseguir seus intrincados sonhos constituem um dos pontos fundamentais do seu arcabouço filosófico. Uma grande ideia burguesa, portanto.

 Graças, deste modo, ao STF, mas, mais especialmente à rosa que tem sua realidade derivada não do nome, mas de sua concretude empírica, salvaguarda-se a possibilidade do discurso de esquerda mais radical. Se assim não fosse a linguagem ou a realidade epistemológica, imagine-se o sangue que não se faria verter das mãos daqueles que escrevessem “o comunismo representou um baluarte na resistência contra a civilização ocidental, um ponto positivo para a história humana”.

 Bibliografia   


sábado, 4 de novembro de 2017

A Afro-Matemática não deve ser uma Anti-ciência


 Em outubro deste ano realizou-se a inclusão, na UFABC, do ensino obrigatório da “afro-etnomatemática” no curso de licenciatura em Matemática. A medida, que disparou opiniões controvertidas na opinião pública, apresenta pontos extremamente positivos e notáveis– mas, em contrapartida, outros igualmente deletérios.

 De autoria de Jorge Costa e do Coletivo Negro Vozes, a medida é resultado da plataforma Matemáfrica, cujo objetivo é criar um espaço de publicação de projetos e pesquisas associadas ao ensino e aprendizagem da afro-matemática. A escolha pela implementação da afro-matemática, por sua vez, destina-se a eliminar a sub-representação de negras e negros tanto entre discentes, quanto entre os docentes escolares e universitários.  

Nas palavras de Jorge,

“Referências como o filme ‘Estrela Além do Tempo’, demonstram o quanto negras e negros são produtoras de conhecimento científico e que devem ser introduzidos em nossas escolas, com a finalidade de se quebrar estereótipos e demonstrar o talento e a genialidade de nosso povo também nas áreas consideradas ciências duras como matemática, física e química”.

 Em síntese, a instituição das matérias de Estudos Étnico-raciais e Afro-Matemáticas como Transformadora Social resulta da tentativa de descolonizar o curriculum de ensino atualmente vigente no Brasil e no Ocidente: numa palavra, resistir à imposição de matérias e saberes europeus que excluíram ou deixaram forçosamente à margem contribuições e autores africanos. A sub-representação étnica e, doravante, o racismo ainda em voga encontram sua subsistência e sua retroalimentação no ensino de um conjunto de saberes colonizador – porque oriundo da imposição forçada de colonialistas europeus -  e discriminatório.


 Ora, com base nos ensinamentos de um dos mais notórios filósofos da ciência do século XX, karl Popper, o processo de fazer ciência, e portanto, de constituição do conhecimento, tem na tradição racionalista um se seus aspectos mais importantes. O livre debate e aquilo que herdamos dos filósofos gregos e helênicos, posteriormente renascidos pela pena de Galileu, como a busca da verdade através de uma abordagem racional rica e de múltiplas visões, são fatores fundamentais para a valorização da ciência e para a capacidade humana de se livrar de velhas crenças e preconceitos.

 O debruçar-se sobre teorias e autores até então excluídos em virtude de um processo civilizador é louvável e necessário. Popper nos mostrou sabiamente que a ciência se faz com a virtude da humildade. A ciência e o próprio saber deparam-se com a possibilidade de falseabilidade de suas conclusões a partir do nascimento de novas teorias, e nos conduzem sempre à busca de melhoramentos e da solidificação de nosso conhecimento. Nos termos do próprio Popper:

 “Dentro dessa tradição racionalista, a ciência é estimada, reconhecidamente, pelas suas realizações práticas, mais ainda, porém, pelo conteúdo informativo e a capacidade de livrar nossas mentes de velhas crenças e preconceitos, velhas certezas, oferecendo-nos em seu lugar novas conjecturas e hipóteses ousadas. A ciência é valorizada pela influência liberalizadora que exerce – uma das forças mais poderosas que contribuiu para a liberdade humana.”  

 Este aspecto de natureza deveras positiva do Coletivo, choca-se, contudo, com outro inteiramente distinto, que lhe é inclusive oposto. Jorge Costa parece não se furtar à lógica da racialização que tanto marcou as expedições brutais de exclusão e divisão segundo o critério da raça ou da cor. Há, para ele e o Coletivo, racismo na matemática “tradicional”, pois “a disciplina de matemática é uma das responsáveis pela exclusão de negros e negras das escolas, e consequentemente dos cursos superiores nas áreas tecnológicas”.

 A afirmação é alarmante e levanta, de imediato, muitas questões. São a ciência e o conhecimento racistas? Sabemos que a teoria científica pode ser dita como modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos; que descreve uma vasta série de fenômenos com base em postulados simples e é capaz de fazer previsões igualmente claras e sujeitas ao teste empírico. Neste sentido, ainda que nosso curriculum contemporâneo possa ter sido implementado pelas forças excludentes do colonialismo europeu, de forma alguma pode-se desconsiderar as contribuições imensuráveis de autores como Pitágoras, Newton ou Leibniz para o campo da ciência. Tampouco é isento de exagero associar a engenhosidade de suas obras com a finalidade de exaltar a raça branca ou excluir povo considerados inferiores. Suas descobertas estão muito mais alinhadas com o senso do pensar filosófico e do ímpeto de solucionar mistérios físicos ou matemáticos do que propriamente á exclusão de um grupo sub-representado.  

 Construindo uma analogia com a medicina dos dias atuais, é possível remontar as contribuições mais relevantes neste campo, em sua maioria, ao trabalho acadêmico de cientistas ocidentais. Não por isso, porém, podemos afirmar que um médico oncologista que se anima a salvar seu paciente age de forma discriminadamente racista. Muito menos é crível salientar que um professor de medicina no Brasil ou alhures cometa um ato racista ao apresentar as inovações de Lavoisier ou da descoberta da penicilina.  

 Ademais, salta à vista a conclusão, em si mesmo errônea e muito perigosa, de que a sub-representação de um grupo étnico seja resultado explícito da exclusão institucional promovida por um conjunto de normas e instituições igualmente racistas. Há tantos casos de sub-representação documentados ao longo da história que se faz impossível acreditar que um único fator sobrepujante seja capaz de explicar uma desigualdade que já ocorreu ou que ainda persiste. No caso brasileiro, poderíamos afirmar que a matemática “tradicional” é um fator igualmente decisivo para a exclusão de muitos outros brancos, descendentes de europeus ou imigrantes japoneses, que possam não ter tido acesso a uma educação básica de qualidade. No sul do país, por exemplo, onde parte considerável da população é de pele branca, as parcelas da população de baixa renda e com poucas oportunidades de mobilidade social incluem um grande contingente de descendentes de europeus. Tanto no caso da exclusão dos negros como no dos brancos do sul (e em muitos ouros estados da União, onde há também muitos brancos e mestiços pobres), é possível indagar: foram as condições de natureza sócio-econômica, aliadas a fatores como fragilidade dos serviços públicos, ou a cor da pele os fatores primordiais para a eventual definição do ingresso numa universidade pública ou a um ofício bem remunerado?


 Há ainda neste imbróglio outro aspecto relevante. É evidente que a matemática e as ciências “tradicionais” ocidentais são amplamente ensinadas no mundo acadêmico. Este fato, no entanto, pode estar relacionado à faculdade que elas possuem de responder às necessidades existentes no mundo contemporâneo. A tecnologia da computação, a engenharia, as ciências biológicas, a construção civil e o próprio desenvolvimento econômico e social são extremamente dependentes da boa formação de mão-de-obra, que seja capaz de lidar com os desafios que nascem com a globalização e a competividade – e até o momento, a matemática tradicional tem correspondido com sucesso às demandas do progresso material e das melhorias nas condições básicas de vida.

 A inclusão de vozes e contribuições até então relegadas à marginalização é fundamental para o enriquecimento do processo de se fazer ciência e para o próprio desenvolvimento de novas teorias. Já a prática de rotular um determinado campo do saber, não. Por outros meios, classificar a matemática tradicional como racista implica desestimular ou mesmo condenar seu ensino e aprendizado, tal como fizemos, no passado, com as contribuições de grupos subjugados sob a justificativa de que sua cultura e saber eram inferiores. A difusão de uma ciência não pode se ajoelhar, como argumentaria Popper, a um projeto ideológico de poder. É tudo isto extremamente contrário à tradição filosófica que nos legou o que há de mais precioso para a construção do conhecimento em qualquer sociedade: o debate, a livre expressão e o exercício da razão.

Bibliografia



quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Impostos e a Curva de Laffer: o site Voyager mentiu de novo



 Recentemente deparamo-nos com o artigo da plataforma online Voyager intitulado “A mentira que inventaram para os ricos não pagarem impostos: Curva de Laffer, um dos pilares da teoria econômica conservadora, é uma mentira”, no qual se pretende demonstrar o equívoco no qual consiste a curva de laffer e as implicações deste modelo.

 Apesar de bem escrito e com várias fontes, o artigo é grosseiro, não leva ou desconhece a teoria tradicional econômica a respeito dos impostos, não reflete ou distorce as próprias fontes que utilizou (o que não é novidade, como pode ser ver neste texto), faz ilações logicamente insustentáveis e termina por demonstrar sua própria ignorância sobre a Curva de Laffer. Na coluna de hoje, faremos uma análise sobre este tema tão controvertido que é a tributação e como determinar seus níveis ótimos, além de nos debruçar sobre este “formidável” artigo, fruto da engenhosidade dos autores da Voyager.  Spoiler: A página te enganou de novo.

Impostos e seus efeitos

 É largamente aceito na Academia nas ciências econômicas que a tributação não traz consequências positivas para produtores e consumidores. Necessários para a arrecadação fiscal, os impostos têm por características principais distorcer os incentivos que regem a atividade individual e reduzir a amplitude ou a dimensão da atividade econômica dos respectivos mercados sobre os quais se aplicam. A chamada Economia do Bem-Estar, ramo da economia que se detém na árdua tarefa de determinar simultaneamente a eficiência alocacional de recursos e sua consequente distribuição de renda, talvez seja um dos campos que mais se dedica ao assunto.

 Na sua acepção, os impostos estão profundamente associados ao conceito de “peso morto”: a perda de bem-estar econômico que é resultante de sua aplicação. Para compreender melhor o processo pelo qual se dá a perda de eficiência e de bem-estar a partir da introdução de um tributo, tome como exemplo um mercado qualquer, perfeitamente competitivo, no qual a livre interação entre vendedores e compradores resulta equilibrada pela ação de um preço de equilíbrio que equaliza as quantidades ofertada e demanda. Neste cenário, dizemos que o mercado encontra-se em equilíbrio, e que as forças em curso (oferta e demanda) o conduzem para um ponto ótimo, no qual há a aplicação máxima e mais eficiente possível dos recursos à disposição de compradores e vendedores, sem que haja desperdícios ou excessos de qualquer natureza. Neste estágio, forma-se um excedente econômico ou social resultante da soma dos excedentes do produtor e do consumidor, que representa o ganho obtido pelas duas partes em interação neste mercado.

 Para ilustrar melhor este processo, observe a tabela abaixo. Nela subscrevem-se a quantidade de produtos dispostos á venda e compradores dispostos a consumir conforme variam os preços finais. Note que as variações nos dois campos representam o funcionamento de duas leis básicas da economia: constantes as demais variáveis, um preço de venda mais alto faz subir a quantidade produzida que os vendedores estão dispostos a ofertar, ao passo que faz reduzir o número de unidades que os consumidores estão dispostos a adquirir. São justamente as leis de oferta e demanda e sua interação que coordenam a alocação de recursos de um dado mercado para um ponto ótimo, onde a quantidade produzida torna-se idêntica à quantidade demanda. Nos termos de Smith, os produtores e consumidores neste processo são levados como que por uma mão invisível a coordenar suas ações de forma eficiente e livre da coerção de um órgão regulatório. Note que a faixa verde a apresenta justamente este preço de equilíbrio:


MERCADO PRODUTO A

PREÇO UNITÁRIO
QUNATIDADE OFERTADA
QUANTIDADE DEMANDADA
 $0
0
0
 $10
50
0
 $8
40
1
 $6
30
2
 $5
20
4
 $4
18
8
 $3
16
10
 $2
15
15
 $1.5
9
22
 $1
4
30
 $0.5
0
50

 Agora, nesta próxima tabela, observe os excedentes do produtor, representado pela diferença entre os custos de produção e receita obtida com as vendas; do consumidor, caracterizado pela diferença entre a disposição de pagar pelo bem e o preço efetivamente pago, e a soma resultante entre ambas que dá origem ao excedente total. Em nosso contexto, o excedente do consumidor é representado pela multiplicação entre o número de consumidores que está disposto a pagar mais do que $2 por unidade e a diferença entre esta disposição o valor efetivamente pago, ao passo que o excedente do produtor é dado pela multiplicação entre os produtores que definitivamente conseguem produzir a um preço de venda inferior a $2 e a diferença entre este custo mínimo e preço efetivo de venda. Para os economistas, o valor demonstrado pelo excedente total representa o ganho geral oriundo da permuta entre vendedores e compradores e pode nos dizer o quanto, em termos de bem-estar, é gerado por determinada atividade e o quanto ficam em melhor situação os agentes envolvidos em tais transações:

PRODUTORES

CONSUMIDORES

QUANTIDADE DE PRODUTORES
PREÇO MÍNIMO ACEITÁVEL
QUANTIDADE DE CONSUMIDORES
PREÇO MÁXIMO ACEITÁVEL
0
 $0
0
 $0
50
 $10
0
 $10
40
 $8
0
 $8
30
 $6
1
 $6
20
 $5
2
 $5
18
 $4
6
 $4
16
 $3
10
 $3
15
 $2
15
 $2
9
 $1.5
22
 $1.5
4
 $1
30
 $1
0
 $0.5
50
 $0.5
EXCEDENTE DO PRODUTOR
 $17.5
EXCEDENTE DO CONSUMIDOR
 $62

 EXCEDENTE TOTAL
 $79.5


 Neste instante, porém, suponha que um benevolente governante estabeleça um imposto sobre os produtores no valor de $0.5 por unidade vendida, e que estes, receosos pela queda na quantidade demanda por seus serviços em razão deste tributo, repassem ao consumidor apenas parte do novo custo, sob a forma de um novo preço de venda, a saber, $2.30. Quais as consequências imediatas resultantes desta medida? Em primeiro lugar, com um novo custo de $0.50, parcialmente repassado ao novo preço de $2.30, subentende-se que aos produtores será necessário produzir os mesmos bens a um custo máximo de $1.80, o que implica na saída deste mercado de todos os ofertantes que não sejam capazes de produzir a um preço de venda (descontados os impostos) inferior a $2. Pelo lado dos compradores, o preço mais alto repele justamente aqueles que não aceitam pagar mais do que $2 por unidade ofertada. Como consequência, portanto, temos um novo preço de equilíbrio:

MERCADO PRODUTO A (COM IMPOSTOS)

PREÇO UNITÁRIO
QUNATIDADE OFERTADA
QUANTIDADE DEMANDADA
 $0
0
0
 $10.3
40
0
 $8.3
30
0
 $6.3
20
1
 $5.3
18
2
 $4.3
16
4
 $3.3
15
6
 $2.30
9
9
 $1.8
4
18
 $1.3
0
25
 $0.8
0
40


E um novo excedente total:

QTD DE PRODUTORES
PREÇO MÍNIMO ACEITÁVEL
QTD DE CONSUMIDORES
PREÇO MÁXIMO ACEITÁVEL
0
 $0
0
 $0
40
 $10.3
0
 $10.3
30
 $8.3
0
 $8.3
20
 $6.3
1
 $6.3
18
 $5.3
2
 $5.3
16
 $4.3
4
 $4.3
15
 $3.3
6
 $3.3
9
 $2.30
9
 $2.30
4
 $1.8
18
 $1.8
0
 $1.3
25
 $1.3
0
 $0.8
40
 $0.8
EXCEDENTE DO PRODUTOR
 $7.2
EXCEDENTE DO CONSUMIDOR
 $53,9

 EXCEDENTE TOTAL
 $61,9


  
 Em segundo lugar, além da redução da receita obtida pelos produtores e do excedente total - o qual demonstra estarem todos os agentes econômicos em pior situação a partir da implementação do tributo, com perda de bem-estar superior a 20% -, temos que os impostos afetam não somente a parte diretamente tributada – em nosso caso, os produtores -, mas estendem seus efeitos sobre todas as partes envolvidas na atividade em questão. Mesmo que os impostos incidissem sobre os consumidores, um preço superior conduziria, inexoravelmente, a uma redução do número de consumidores dispostos a adquirir o bem ao novo preço dado. No fim do processo, com a queda na quantidade demandada, apenas os produtores capazes de produzir a um menor preço permaneceriam neste mercado. O peso morto ocasionado pela implementação de um tributo – neste caso, cerca de $18,6 – representa, por um lado, a receita fiscal obtida pelo governo e, por outro, estima aproximadamente a razão do encolhimento de determinado ramo da atividade econômica.  


 A Curva de Laffer, neste sentido, explicita uma relação aritmética entre a alíquota de um imposto e sua progressão marginal, e o nível de arrecadação obtido para cada aumento. Apesar de não ter por objetivo buscar uma chamada “alíquota ótima”, pelo qual seria possível encontrar a máxima alíquota possível combinada com o maior nível de arrecadação também possível, a Curva é pródiga ao conseguir representar o efeito marginal ou decrescente que resulta da implementação de alíquotas marginais sobre diversos mercados. Por exemplo, ainda que um aumento da alíquota tributária em nosso caso para $0.8 por unidade vendida pudesse conduzir a um aumento da arrecadação, outra alíquota, agora de $1 por unidade, com certeza conduziria a uma redução não apenas da atividade econômica, mas também da arrecadação, de forma que a rentabilidade marginal deste imposto se demonstraria negativa.

Por que a arrecadação pode cair com o aumento de impostos?

 A resposta a esta pergunta esclarece porque a parábola da curva de laffer possui inclinação negativa e porque, afinal, um corte de impostos pode resultar num aumento da arrecadação.

 A chave para este mistério encontra-se na questão dos incentivos e sua relação com o custo de oportunidade, segundo o qual o custo de um bem, ação ou escolha é equivalente àquilo do qual abrimos mão para obtê-lo. Este conceito é melhor exemplificado com o uso do tradeoff mais comum com o qual nos deparamos hoje: a escolha entre desfrutar mais horas de lazer ou dedicar mais tempo ao trabalho. Imagine que um sujeito qualquer receba por hora a importância de $10. Para si, uma hora adicional de lazer significa possuir $10 a menos para gastar com suas preferências e obrigações. No entanto, caso venha a ser promovido e bonificado com um novo salário de $30, cada hora adicional de lazer que decida desfrutar implicará num custo ainda maior em termos de poder aquisitivo. Noutros termos, sua hora livre encarece à medida que aumentam seus rendimentos por hora trabalhada.

 No entanto, a partir do momento em que se inserem os impostos sobre a folha de pagamento, a situação pode inverter-se por completo. Imagine que para cada salário por hora igual ou superior a $20 e inferior a $30 aplique-se uma alíquota de 20% de impostos sobre a remuneração total, e 30% para os ordenados a partir de $30. Neste caso, o mesmo sujeito que passou a receber $30, ficará, em verdade, com apenas 21$ disponíveis para uso próprio. A depender de outros fatores, como custo de vida e nível de preços da economia, $21 pode parecer-lhe insuficiente para abrir mão de mais horas de lazer, levando-lhe à decisão de recusar dispensar mais horas em sua atividade laboral ou mesmo recusar uma simples promoção, já que, por exemplo, $1 a mais de rendimentos para um ordenado $29 significa abrir mão de $9 iniciais, contra apenas uma faixa entre $5.8 e $4 caso permanecesse com seu rendimento entre $20 e $29 por hora trabalhada.

 A mesma situação é premente no que tange aos impostos sobre a renda. Numa situação hipotética na qual os cidadãos de um país com rendimentos anuais de até $19.999,99 são isentos de tributação, receber um centavo a mais no ano fiscal podem oferecer um incentivo contrário à produtividade ou à acumulação de riqueza caso a alíquota para rendimentos superiores seja alta. Neste sentido, 40% de impostos para rendas superiores á isenção informada significam que qualquer cidadão pode se encontrar em situação pior, em termos de riqueza e poder aquisitivo, para cada $1 ganho no ano.      

 A alíquota marginal, ou adicional, que incide sobre a hora trabalhada ou o $1 de renda adicionais pode, portanto, representar uma grande distorção em termos de incentivo desincentivo à produção, ao consumo e à formação de capital. Não á toa David Stockman, diretor de orçamento do próprio governo Reagan, conta a seguinte história:

 [Reagan já estivera ele mesmo na curva de Laffer. “Fiquei rico fazendo filmes durante a Segunda Guerra Mundial”, dizia. Naquela época, a sobretaxa de guerra sobre a renda chegava a 90%. “Bastava fazer quatro filmes para ficar na alíquota mais alta”, observou. “Então todos nós parávamos de trabalhar depois do quarto filme e íamos para o interior”. As alíquotas elevadas faziam que as pessoas trabalhassem menos. Alíquotas mais baixas faziam que as pessoas trabalhassem mais. Sua experiência pessoal provou isso.  


 Para fazer coro à conclusão prévia de que alíquotas marginais afetam de forma diferenciada diferentes tipos de grupos e atividades, um recente relatório emitido pelo Banco Central Europeu em 2010, de autoria dos economistas Mathias Trabandt e Harald Uhlig, estimou que as receitas tributárias incididas sobre o trabalho poderiam aumentar em até 30% sem acarretar em perdas adicionais de receita, ao passo que nos impostos sobre os rendimentos de capital tal aumento é viável se estabelecido em até 6%. Na União Europeia, os números são, respectivamente, 8% e 1%. Surpreendentemente, em outro artigo do mesmo período, desta vez da Universidade de Chicago e para o qual colaborou Mathias Uhlig, estimou-se que um corte geral de 32% nas alíquotas de impostos trabalhistas não traria grandes impactos ao orçamento federal americano, ao passo que o mesmo corte poderia ser estabelecido na União Europeia, sem perdas de receitas adicionais, em incríveis 54%. Sobre os rendimentos do capital, pouco mais de 50% de corte nos impostos norte-americanos seriam autossustentados (não exigiriam a contrapartida com outra forma de arrecadação), contra incríveis 79% na Europa. Os casos mais emblemáticos, porém, continuam sendo o de países como Dinamarca e Suécia, que estariam no lado descendente da curva de laffer e, portanto, poderiam melhorar sua situação orçamentária a partir do corte de impostos.     

  Diferentemente, portanto, da forma como a exposição da Curva de Laffer no artigo da Voyager nos leva a entender o assunto, sua contribuição mor encontra-se no papel que as alíquotas de impostos, em especial as marginais, – o imposto adicional pago por uma unidade adicional produzida, consumida ou poupada - exercem sobre os incentivos e, portanto, sobre a atividade econômica como um todo. Salta à vista, doravante, a completa falta de sentido da seguinte afirmação do texto:

 À primeira vista, o argumento pode parecer uma sofisticação de uma primeira aproximação trivial – que seria a simples linha reta ascendente, ou seja, a arrecadação cresceria linearmente de acordo com a alíquota. Mas essa “sofisticação” não resiste a uma análise com certo rigor: mesmo com alíquota 100%, ainda existiria atividade econômica diferente de zero, pois as pessoas não iriam simplesmente ficar inertes, sem fazer nada; e mesmo com altíssima sonegação e mercados paralelos, ainda haveria os “flagrantes” dessas atividades, recolhendo alguma quantia. Portanto, a hipótese de Laffer já parte de uma premissa falsa — o que já permite descartar essa ideia, mas vamos adiante.

 Podemos perguntar ao leitor: quais atividades possuem ou possuíram uma alíquota de 100% sobre a quantidade produzida? O sistema de mão de obra escrava e a servidão feudal constituem ótimos exemplos. E quais os incentivos gerados por estas instituições conduzem à atividade econômica? O medo do açoite e da morte violenta, da exploração do trabalho e do confisco sobre a produção individual. Não chega a ser surpresa, doravante, que o crescimento econômico estabelecido sobre tais instituições costuma ser extremamente limitado, insustentável a longo prazo, legando à boa parte dos membros da sociedade um estado de miséria desolador e irremediável. A ilação do autor da Voyager beira às raias do absurdo, ao nos induzir que não haveria diferenças em termos de produtividade, níveis de produção e até mesmo de direitos humanos entre instituições econômicas com alíquotas tributárias baixas ou razoavelmente altas e outras absurdamente altas.  

A História macroeconômica dos EUA

 Outra conclusão elaborada no texto que não decorre necessariamente das premissas assumidas diz respeito ao sentido geral da interpretação da história macroeconômica dos EUA, a saber, que o corte de impostos foi um fator fundamental para os períodos de baixo crescimento da economia estadunidense. Trata-se, porém, de um raciocínio extremamente falso, pois, como vimos, a principal asserção da Curva Laffer consiste na suposição de que, em determinado momento, um corte adicional na alíquota de um imposto pode ocasionar até mesmo um aumento da arrecadação - em momento algum, contudo, afirmou seu idealizador que a Curva possui ligação direta com o crescimento econômico.

 Com efeito, tanto Krugman quanto Mankiw são contundentes ao esclarecer que o crescimento econômico é resultado da interação de uma série de fatores, entre eles os níveis de poupança nacional, a oferta monetária, a política fiscal, a taxa básica de juros, o estoque de capital, a produtividade dos fatores de produção, a economia externa e a formação de mão-de-obra. Neste sentido, é extremamente difícil – para não dizer incongruente e irresponsável no tema em questão – isolar um único fator a fim de encontrar possíveis relações entre seus efeitos e as causas finais de um processo tão vasto.

 Isto é melhor ilustrado quando nos deparamos com a era Reagan. Ao final dos anos 70 enfrentava os EUA sua maior taxa de desemprego em 20 anos (acima de 7%), com uma inflação anual quase acima dos 10% - a maior registrada em praticamente todo o século XX. A impopularidade do então presidente James Carter em 1980 conduziu à eleição do republicano Reagan, cujas medidas monetárias encabeçadas pelo presidente do Banco Central Americano durante seu governo, Paul Volcker, estabilizaram os níveis de preço da economia e fizeram-nos convergirem para as recém-estabelecidas metas de inflação. Embora os anos de ajuste inflacionário entre 1981 e 1984 tenham assistido a uma das maiores taxas de juros da economia norte-americana e conduzido, momentaneamente, a maior taxa de desemprego desde a Grande Drepressão (quase 10% em 1982 e 1983), há um quase consenso entre os economistas de que as mudanças levadas a cabo durante a administração Reagan prepararam o terreno para o boom econômico que vivenciaria a economia americana toda a década de 90, cujo forte crescimento e outras variáveis indicativas de saúde econômica só se alterariam drasticamente com a crise financeira de 2008.

 Outros pontos importantes a serem destacados dizem respeito, primeiramente, ao esquecimento de que a política fiscal de qualquer nação, outro fator muito importante para o crescimento econômico, inclui os níveis de tributação e o orçamento público. Com efeito, ainda que os EUA tenham testemunhado um corte drástico de impostos durante os primeiros anos da administração Reagan, os déficits públicos consecutivos durante seu governo conduziram a um salto da dívida pública americana e do gasto total público em relação ao PIB: ao fim de seu segundo mandato, a dívida pública havia praticamente triplicado, saindo do patamar de US$ 900 bilhões para incríveis US$ 2.7 trilhões. E, dados os efeitos fortemente negativos de déficits orçamentários frequentes e crescimento acelerado da dívida pública sobre a economia como um todo, quais haveriam de ser as principais causas do baixo crescimento estadunidense durante a década de 90, o corte de impostos ou o descontrole dos gastos públicos, aliados a duras medidas necessárias para reverter o quadro caótico legado pela administração Carter?

 Em segundo lugar, é preciso acrescentar que as taxas de crescimento da era Carter são fortemente distorcidas pelas taxas de inflação da época, o que, num primeiro momento, nos levam a crer que o crescimento real foi bem inferior. Para comparar melhor os dois períodos, iremos utilizar a taxa real de crescimento proporcionada pelo PIB real, donde a inflação já se encontra descontada. Utilizando como referência dólares americanos de 2009, em ambas as décadas o crescimento médio anual é exatamente o mesmo: 3,4% ao final dos anos de 1970-1979 e 1980-1989, sendo que em 1984, em plena administração Reagan, obtiveram os americanos a maior taxa de crescimento desde 1951, com incríveis 7,3%. No tocante à taxa de desemprego, nota-se pouca diferença entre os dois períodos. A década de 70 acumularia média anual de taxa de desemprego de 6,8%, contra 7,3% ao longo da década seguinte.  Já no que se refere à inflação, o período Carter defrontou-se com uma taxa média anual de 7%, contra 5,5% ao longo do período subsequente.

 A história é semelhante nas terras além-mar. No Reino Unido da era Thatcher, marcada por profundas políticas anti-inflacionárias, o alto desemprego em relação aos anos precedentes foram contrabalançados pela redução da taxa de inflação, que observou uma queda do patamar dos quase 20%, em 1979, para 9% em 1990, utilizando-se como ano base a libra esterlina de 1917. Ao longo dos 12 anos em que estivera no poder, a taxa média anual de inflação situou-se em pouco mais de 8%, contra 10,6% nos 12 anos precedentes. A taxa real de crescimento apresenta um movimento semelhante ao observado no contexto americano: tanto o período 1978-1990 quanto o anterior 1967-1979 observam um crescimento médio anual de cerca de 2,6%, com destaques negativos para a década de 70, onde o PIB nominal encolheu mais de 5% em 1976 e onde tiveram os britânicos sérios problemas com dívidas externas associadas ao FMI.

 Em ambos os contextos, porém, observa-se algo em comum, a saber, o direcionamento da política econômica de cada nação ao combate dos fatores desestabilizadores da economia e indutores de baixo crescimento, associados a altas taxas de desemprego, déficits públicos, queda de produtividade e desindustrialização. O corte de impostos foi essencial no sentido de suspender o efeito de retroalimentação causado por longos períodos de inflação, nos quais uma desvalorização constante da moeda acaba contrabalançada por um aumento nos impostos em virtude de evitar déficits maiores.

Conclusão

 Pelo que fica exposto, não resta dúvida de que o artigo da Voyager é mais uma obra preciosa da engenhosidade e artifícios criativos de seus autores. É verdade que a discussão a respeito da Curva de Laffer é extensa e ainda sem um ponto final, bem como é difícil observar, de fato, os efeitos empíricos da teoria.

 No entanto, é evidente a falta de compreensão sobre o assunto, especialmente sobre os impactos dos impostos sobre a atividade econômica. Também salta à vista a descontextualização dos autores citados, o que pode indicar uma clara tentativa de distorcer o sentido de discursos e até mesmo obras inteiras. Krugman, juntamente com Samuelson, por exemplo, considera que os corte de impostos levados adiante após a morte de John Kennedy, e por ele proposto, foram um fator fortemente responsável pelo forte crescimento econômico observado ao longo da década de 1960.

 A lição final que se subtrai desta longa exposição, portanto, consiste numa mensagem simples: os impostos não são positivos, tampouco neutros; alteram os incentivos sobre os agentes econômicos e são responsáveis por reduzir a atividade econômica. A curva de Laffer tem como proposta analisar os impactos de alíquotas marginais sobre a arrecadação, sem ter como único objetivo encontrar um ponto ótimo ou uma alíquota ótima de tributação.

Fontes