Edmund Burke, irlandês
por nascimento, ateve-se durante toda a sua vida à carreira pública como
representante do partido Whig na câmara dos Comuns. Atribui-se a ele, com total
razão, o patronato da fundação do moderno conservadorismo político ocidental. Seus
escritos até hoje são fonte de inúmeros estudos e muitas de suas frases ficaram
grafadas nos livros de história política.
O que não se conta, ou
não se realça – o que, para efeitos práticos, tem quase o mesmo efeito -, é o
amor e reverência que o autor aprendera a nutrir pelos valores e instituições historicamente
constituídos no seio da nação inglesa e que sustentavam o valor máximo da
civilização: a liberdade. A obra As
Reflexões, longe de um mero apanágio ou crítica descabida da mais famosa
das revoluções “burguesas”, é comumente citada como fruto de indústria raivosa
e reacionária, intransigente em aceitar as Luzes que produziam a mudança e
traziam no seu bojo as fulguras da modernidade. Nada mais enganoso: As Reflexões são um apêndice do realismo
político, da sobriedade, um sinal de alerta sobre os tempos vindouros e as
sandices utópicas que filósofos enciclopedistas e, especialmente, os
revolucionários de Paris proclamavam a plenos pulmões.
Antes de mais nada, é
preciso deixar assente sua primeira lição, ainda na primeira parte do escrito,
em que se detém ao sermão do Dr. Price: os ensinamentos de séculos, as
tradições históricas e a experiência são os únicos guias seguros para a mudança
que se faz necessária em casos de urgência. A razão de um só homem, suas
imaginações, desejos, paixões, mesmo quando somada às demais razões de todos
aqueles que vivem, é falível, imperfeita, incapaz de ter em si todo o
conhecimento tácito, o “capital social” acumulado por gerações em nosso pacto
social e mantido justamente pelo fato de ter sobrevivido aos “testes do tempo”.
O povo da
Inglaterra não imitará métodos cuja experiência nunca tenha realizado, nem
retomará métodos que a experiência mostrou ser nocivos. A lei de transmissão
hereditária da coroa aparece-lhe como um de seus direitos, não como um de seus
deveres; como uma vantagem, não como um abuso; como uma garantia de suas
liberdades, não como o selo de sua escravidão. Ele olha a estrutura da coisa
pública, na forma em que ela existe
atualmente, como um bem de valor inestimável; e a transmissão pacífica da
coroa aparece-lhe como a garantia da estabilidade e da perpetuidade de todas as
outras partes de nossa constituição.
O povo da Inglaterra
aprendera, através dos séculos, que a salvaguarda de sua liberdade dependia da estabilidade
e da proteção por parte do monarca, sob uma constituição que representava a
consolidação das tradições e valores deste mesmo corpo político e que limitava
as próprias ações do rei. O pensamento geométrico, perfeito para abstrações
metafísicas e para pôr em prática os mais diversos raciocínios em matéria de lógica
e abstração, não poderia constituir de forma alguma a orientação para ação
política. A sociedade não é um laboratório cujas partes constituintes podem ser
manejadas por seu governante, nem pode ser construída a partir do nada. Não é
possível moldá-la conforme princípios abstratos:
A simples ideia de fabricar um novo Estado é suficiente para nos encher
de repulsa e horror. Desejávamos, quando da Revolução [Inglesa], e desejamos
ainda derivar do passado tudo o que possuímos, como uma herança legada pelos
nossos antepassados. Sobre o velho tronco de nossa herança, tivemos cuidado em
não enxertar nenhuma muda estranha à natureza da árvore primitiva. Todas as
reformas que fizemos até hoje foram realizadas a partir de referências do
passado; e, espero, ou melhor, estou convencido de que todas as reformas que
possamos realizar no futuro estão cuidadosamente construídas sobre precedentes
análogos, sobre a autoridade, sobre a experiência.
As reformas no campo
da política, a nova organização de um Estado não deve jamais pautar-se em
conceitos abstratos, teóricos, sem comprovação empírica. A experiência é mais
sábia e virtuosa do que todas as abstrações e direitos metafísicos. Porque
procedia justamente desta forma, via Burke na Assembleia Nacional, formada com
o estopim da Revolução, a fonte de dois problemas básicos, mas insolúveis: a
criação de um poder ilimitado e sem freios, demagógico e composto
principalmente pelos representantes do terceiro estado, revogando desta forma
os limites representados pelas antigas instituições; e o despreparo dos novos
legisladores e representantes, nada habituados à função a qual eram agora
conclamados a exercer. “Os Franceses
possuíam todas essas vantagens em seus antigos Estados, mas preferiram agir
como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem
tudo refazer a partir do nada. Começaram mal porque começaram por destruir tudo
aquilo que lhes pertencia.”
Nestas novas medidas,
estavam plantadas as sementes da destruição. Os abusos sobre a constituição eclesiástica,
sobre a magistratura civil até então consolidada, a suspensão dos tribunais
jurídicos – a função de todas estas instituições revestira-se de um caráter
moral, de limitar o máximo possível o arbítrio do poder e de quem quer que
esteja sob seu abrigo e comando. “É
importante que o príncipe, ou o povo, ou quem seja o depositário do soberano,
tenha a noção de que há de vir o momento de prestar contas, mesmo que seja a
Deus” – o poder deve estar restrito a proceder à mudança, sem deixar de
conservar o edifício, e deve sempre agir segundo um princípio que lhe preceda. Pois
a sociedade é uma associação cujos fins não se relacionam com a transitoriedade
dos demais contratos materiais. Ela representa o contrato atemporal entre
gerações, cujos fins não se realizam em curto espaço de tempo. A regeneração, o
conserto das partes em operação do corpo político deve ser objeto de sábia e
prudente análise.
As ignorâncias
demonstradas pelos líderes da revolução em matéria de organização administrativa
do Estado também passaram a custar caro. A irresponsabilidade fiscal de seu
ministério das finanças, a incapacidade de acalmar o furor das forças armadas e
a insurreição dos mais humildes habitantes da França, amotinados e descontentes
com um novo sistema de tributação terrível e pior do que o anterior; os
confiscos da propriedade eclesiástica, que passaram a servir como lastro para a
nova moeda francesa – cujo valor desfez-se em questão de meses – e, pior, as
contradições dos proclamadores dos direitos universais do Homem constituíam um
verdadeiro espetáculo de horrores.
Os senhores
estabelecem proposições metafísicas que têm consequências universais, e depois
tentam limitar a lógica através do despotismo. Os atuais líderes franceses
dizem a todos os homens que têm o direito de tomar de assalto fortalezas,
massacrar guardas, de se apoderar de reis, sem qualquer autorização, nem mesmo
da Assembleia, supremo corpo legislativo que responde pela nação; contudo,
estes mesmos chefes ousam acionar as tropas que participaram das mesmas
desordens, contra aqueles que não fizeram nada além de aplicar os princípios e
exemplos garantidos por sua própria aprovação.
Não sem causas ou razões, torna-se “a democracia perfeita a invenção mais vergonhosa e temível do mundo –
pois o poder absoluto e arbitrário da autoridade popular leva a uma
responsabilidade menor do próprio povo ao sentimento de reputação e da estima
pública. Nela, nenhum membro teme o castigo.” Tal regime não podia senão
ancorar-se na força de um exército, que viria depois a dividir-se e perder
completamente a hierarquia de suas fileiras.
Sua principal lição,
portanto, pode ser concebida na defesa da liberdade, política e civil, como uma
herança, cuja conservação é dever de todos, que deve ser passada de geração em
geração, unindo “os mortos, os vivos e os
que ainda estão por nascer.” A reforma e a política têm as circunstâncias
como fatores que condicionam sua extensão e direção, e a liberdade não é
meramente um agir apaixonadamente. “São
as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que, na
realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito
particular. São as circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou
nocivos à humanidade.”
Portanto, antes de
qualquer consideração, tal como foi no passado, ainda o é e como provavelmente
será no futuro, a luta e a vigilância contra a tirania associa-se com outro
fator de suma importância, qual seja, saber se uma nova liberdade prometida
pode se harmonizar com todos os outros elementos dois quais depende sua
sustentação:
Quando vejo o
princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de
início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido que entra em efervescência
[...] para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se
acalme, que o líquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um
pouco além da superfície agitada [...] Por tal razão, eu deveria me abster de
felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como
esta liberdade se harmoniza com o governo, com o poder público, com a
disciplina e a obediência dos exércitos, com o recolhimento e a boa
distribuição dos impostos, com a moralidade e a religião, com a solidez da
propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes públicos e privados.
[1]
BURKE, E. Reflexões Sobre a Revolução em
França. Tradução de Renato Faria, Denis Pinto e Carmen Moura. UNB:
Brasília, 1997.
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