"Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido; os gases que ele contém se liberam bruscamente: para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o liquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície".
Edmund Burke.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Edmund Burke: Uma lição para Toda a História


 Dedicar-se à leitura da obra Reflexões sobre a Revolução em França[1] é, por assim dizer, um empreendimento notável. A singular análise do autor acerca dos desmandos de uma Assembleia Nacional autoritária, dos abusos metafísicos das leis consolidadas pela história e pela tradição e da incapacidade de seus legisladores de conduzir uma transformação sábia da sociedade francesa – tudo isso e, um pouco mais, reverberam como fatos recentes na história de muitas nações.

 Edmund Burke, irlandês por nascimento, ateve-se durante toda a sua vida à carreira pública como representante do partido Whig na câmara dos Comuns. Atribui-se a ele, com total razão, o patronato da fundação do moderno conservadorismo político ocidental. Seus escritos até hoje são fonte de inúmeros estudos e muitas de suas frases ficaram grafadas nos livros de história política.

 O que não se conta, ou não se realça – o que, para efeitos práticos, tem quase o mesmo efeito -, é o amor e reverência que o autor aprendera a nutrir pelos valores e instituições historicamente constituídos no seio da nação inglesa e que sustentavam o valor máximo da civilização: a liberdade. A obra As Reflexões, longe de um mero apanágio ou crítica descabida da mais famosa das revoluções “burguesas”, é comumente citada como fruto de indústria raivosa e reacionária, intransigente em aceitar as Luzes que produziam a mudança e traziam no seu bojo as fulguras da modernidade. Nada mais enganoso: As Reflexões são um apêndice do realismo político, da sobriedade, um sinal de alerta sobre os tempos vindouros e as sandices utópicas que filósofos enciclopedistas e, especialmente, os revolucionários de Paris proclamavam a plenos pulmões.

 Antes de mais nada, é preciso deixar assente sua primeira lição, ainda na primeira parte do escrito, em que se detém ao sermão do Dr. Price: os ensinamentos de séculos, as tradições históricas e a experiência são os únicos guias seguros para a mudança que se faz necessária em casos de urgência. A razão de um só homem, suas imaginações, desejos, paixões, mesmo quando somada às demais razões de todos aqueles que vivem, é falível, imperfeita, incapaz de ter em si todo o conhecimento tácito, o “capital social” acumulado por gerações em nosso pacto social e mantido justamente pelo fato de ter sobrevivido aos “testes do tempo”.
O povo da Inglaterra não imitará métodos cuja experiência nunca tenha realizado, nem retomará métodos que a experiência mostrou ser nocivos. A lei de transmissão hereditária da coroa aparece-lhe como um de seus direitos, não como um de seus deveres; como uma vantagem, não como um abuso; como uma garantia de suas liberdades, não como o selo de sua escravidão. Ele olha a estrutura da coisa pública, na forma em que ela existe atualmente, como um bem de valor inestimável; e a transmissão pacífica da coroa aparece-lhe como a garantia da estabilidade e da perpetuidade de todas as outras partes de nossa constituição.    

 O povo da Inglaterra aprendera, através dos séculos, que a salvaguarda de sua liberdade dependia da estabilidade e da proteção por parte do monarca, sob uma constituição que representava a consolidação das tradições e valores deste mesmo corpo político e que limitava as próprias ações do rei. O pensamento geométrico, perfeito para abstrações metafísicas e para pôr em prática os mais diversos raciocínios em matéria de lógica e abstração, não poderia constituir de forma alguma a orientação para ação política. A sociedade não é um laboratório cujas partes constituintes podem ser manejadas por seu governante, nem pode ser construída a partir do nada. Não é possível moldá-la conforme princípios abstratos:
A simples ideia de fabricar um novo Estado é suficiente para nos encher de repulsa e horror. Desejávamos, quando da Revolução [Inglesa], e desejamos ainda derivar do passado tudo o que possuímos, como uma herança legada pelos nossos antepassados. Sobre o velho tronco de nossa herança, tivemos cuidado em não enxertar nenhuma muda estranha à natureza da árvore primitiva. Todas as reformas que fizemos até hoje foram realizadas a partir de referências do passado; e, espero, ou melhor, estou convencido de que todas as reformas que possamos realizar no futuro estão cuidadosamente construídas sobre precedentes análogos, sobre a autoridade, sobre a experiência.


 As reformas no campo da política, a nova organização de um Estado não deve jamais pautar-se em conceitos abstratos, teóricos, sem comprovação empírica. A experiência é mais sábia e virtuosa do que todas as abstrações e direitos metafísicos. Porque procedia justamente desta forma, via Burke na Assembleia Nacional, formada com o estopim da Revolução, a fonte de dois problemas básicos, mas insolúveis: a criação de um poder ilimitado e sem freios, demagógico e composto principalmente pelos representantes do terceiro estado, revogando desta forma os limites representados pelas antigas instituições; e o despreparo dos novos legisladores e representantes, nada habituados à função a qual eram agora conclamados a exercer. “Os Franceses possuíam todas essas vantagens em seus antigos Estados, mas preferiram agir como se nunca tivessem sido moldados em uma sociedade civil, como se pudessem tudo refazer a partir do nada. Começaram mal porque começaram por destruir tudo aquilo que lhes pertencia.”

 Nestas novas medidas, estavam plantadas as sementes da destruição. Os abusos sobre a constituição eclesiástica, sobre a magistratura civil até então consolidada, a suspensão dos tribunais jurídicos – a função de todas estas instituições revestira-se de um caráter moral, de limitar o máximo possível o arbítrio do poder e de quem quer que esteja sob seu abrigo e comando. “É importante que o príncipe, ou o povo, ou quem seja o depositário do soberano, tenha a noção de que há de vir o momento de prestar contas, mesmo que seja a Deus” – o poder deve estar restrito a proceder à mudança, sem deixar de conservar o edifício, e deve sempre agir segundo um princípio que lhe preceda. Pois a sociedade é uma associação cujos fins não se relacionam com a transitoriedade dos demais contratos materiais. Ela representa o contrato atemporal entre gerações, cujos fins não se realizam em curto espaço de tempo. A regeneração, o conserto das partes em operação do corpo político deve ser objeto de sábia e prudente análise.

 As ignorâncias demonstradas pelos líderes da revolução em matéria de organização administrativa do Estado também passaram a custar caro. A irresponsabilidade fiscal de seu ministério das finanças, a incapacidade de acalmar o furor das forças armadas e a insurreição dos mais humildes habitantes da França, amotinados e descontentes com um novo sistema de tributação terrível e pior do que o anterior; os confiscos da propriedade eclesiástica, que passaram a servir como lastro para a nova moeda francesa – cujo valor desfez-se em questão de meses – e, pior, as contradições dos proclamadores dos direitos universais do Homem constituíam um verdadeiro espetáculo de horrores.
Os senhores estabelecem proposições metafísicas que têm consequências universais, e depois tentam limitar a lógica através do despotismo. Os atuais líderes franceses dizem a todos os homens que têm o direito de tomar de assalto fortalezas, massacrar guardas, de se apoderar de reis, sem qualquer autorização, nem mesmo da Assembleia, supremo corpo legislativo que responde pela nação; contudo, estes mesmos chefes ousam acionar as tropas que participaram das mesmas desordens, contra aqueles que não fizeram nada além de aplicar os princípios e exemplos garantidos por sua própria aprovação.

 Não sem causas ou razões, torna-se “a democracia perfeita a invenção mais vergonhosa e temível do mundo – pois o poder absoluto e arbitrário da autoridade popular leva a uma responsabilidade menor do próprio povo ao sentimento de reputação e da estima pública. Nela, nenhum membro teme o castigo.” Tal regime não podia senão ancorar-se na força de um exército, que viria depois a dividir-se e perder completamente a hierarquia de suas fileiras.

 Sua principal lição, portanto, pode ser concebida na defesa da liberdade, política e civil, como uma herança, cuja conservação é dever de todos, que deve ser passada de geração em geração, unindo “os mortos, os vivos e os que ainda estão por nascer.” A reforma e a política têm as circunstâncias como fatores que condicionam sua extensão e direção, e a liberdade não é meramente um agir apaixonadamente. “São as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou nocivos à humanidade.

 Portanto, antes de qualquer consideração, tal como foi no passado, ainda o é e como provavelmente será no futuro, a luta e a vigilância contra a tirania associa-se com outro fator de suma importância, qual seja, saber se uma nova liberdade prometida pode se harmonizar com todos os outros elementos dois quais depende sua sustentação:
Quando vejo o princípio de liberdade em ação, vejo agir um princípio vigoroso, e isto, de início, é tudo que sei. É o mesmo caso de um líquido que entra em efervescência [...] para se fazer um julgamento, é necessário que o primeiro movimento se acalme, que o líquido se torne mais claro, e que nossa observação possa ir um pouco além da superfície agitada [...] Por tal razão, eu deveria me abster de felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes públicos e privados.




[1] BURKE, E. Reflexões Sobre a Revolução em França. Tradução de Renato Faria, Denis Pinto e Carmen Moura. UNB: Brasília, 1997. 

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