Anos atrás, quando Yoani Sánchez desembarcou
no Brasil, pronta para apresentar o diagnóstico que fizera da Revolução Cubana,
uma horda de desocupados militantes apressou-se a impedir que falasse em
público. Em 2012, uma peça de teatro teve sua exibição censurada em virtude de
acusação de “racismo” movida por um coletivo negro, muito embora já tivesse
estado em turnê em muitos outros momentos, sem ter causado qualquer alvoroço. Em
2016, o conservador Milo Yiannopolous foi coercivamente impedido de discursar
na Universidade de Berkeley; do mesmo modo esteve Judith Butler sujeita a
constrangimento no ato de sua chegada em São Paulo. Em episódio ainda mais
recente, a Justiça determinou que todas as frases “#caetanopedofilo” fossem
apagadas das redes sociais, sob penalidade de multa e/ou processo judicial.
Exemplos, evidentemente, não faltam quando o
assunto é o cerceamento da liberdade de expressão. As razões que o justificam
costumam expressar a luta contra a intolerância ou o discurso de ódio,
promovidos e incentivados por certos grupos – motivação que determinou, por
escrito, a decisão favorável aos artistas Caetano Veloso e Paula Lavigne. Não
me interesso, aqui, por apontar as razões do meu dissenso dessa decisão ou das
severas críticas feitas às exposições “Queermuseum” ou no Museu de Arte
Moderna. Antes, pretendo demonstrar porque a liberdade de pensamento, debate e
discussão é e deve continuar sendo um valor absoluto e fundamental.
A obra
“On Liberty”, do filósofo inglês John Stuart Mill e publicada em 1859, talvez
seja a mais pródiga quando o assunto é a defesa pela liberdade de imprensa e
opinião. As justificativas por sua defesa são simples e adaptadas ao o que o
autor denomina de “tirania social” ou “tirania da opinião pública”.
Percebe Mill que a longa tradição da luta
contra a autoridade, responsável pela determinação da liberdade em seu sentido
negativo (a ação individual não deve ser alvo da intervenção de terceiros), não
deve resumir-se na oposição ao poder institucionalizado somente, nem
imiscuir-se de agir também de forma positiva. Após a leitura da obra “A
Democracia na América”, do amigo e também pensador liberal Alexis de
Tocqueville, Mill se dá conta de que o novo fenômeno da igualitarização, marca
singular das democracias então nascentes, será responsável por aquilo que
Ortega Y Gasset futuramente chamaria de democracia
das massas – um novo tipo de força, mais coerciva e constrangedora do que
qualquer monarca absoluto poderia ter imaginado.
Se claro está que deve haver uma esfera de
autonomia e independência individuais, ao qual não é legítimo que nem o
governo, nem a sociedade possam intervir, surge a questão: como e com o quê poderemos
combater a tirania nascente, marcada sobretudo pela mediocridade massificada tornada
valor e pelo constrangimento produzido por normas sociais arraigadas e que
encontram nos próprios membros da sociedade os seus juízes e promotores?
A opinião
pública, tão policialesca e severa, parece agora constituir o novo braço do
poder que censura e representa a tirania da maioria. Para sustentar a
necessidade da liberdade de discordar, Mill recorre em primeiro lugar aos
exemplos históricos mais notáveis. “A adesão a uma ideia não pode servir como
critério de validade”: os julgamentos de Sócrates, Jesus e Galileu evidenciam
as trágicas consequências da condenação de ideias e pessoas promovida
substancialmente pela opinião pública.
Em segundo lugar, dado que a constituição humana
caminha lado a lado com a existência do erro, consistiria numa presunção
terrível imaginar “que se está certo sobre tudo e a todo instante”. Permitir a
manifestação da opinião alheia, portanto, é a condição sine qua non para se encontrar a verdade de forma segura. A
falibilidade humana, sobre a qual reside o principal argumento em prol da
liberdade de pensamento e expressão, não por acaso remete-se ao filósofo
Sócrates, o qual subverteu a opinião geral reinante com o exercício das
opiniões vigentes submeter ao crivo da razão. No combate à ignorância e às más
crenças estabelecidas, é um dever ético combater a ignorância individual e
social a partir do diálogo e da disseminação de conhecimento que resultam do
debate e do exame racional das diferentes hipóteses levantadas. A fórmula “conhece-te
a ti mesmo” não está dissociada nem do uso da razão, nem da prática da
liberdade de expressão. A originalidade das ideias que despontam e conduzem a
um melhoramento dos hábitos e técnicas de produção não teria sido possível
(embora tenha sido dificultada pelo combate à livre expressão de pensamento)
sem este exame livre das opiniões aceitas, proporcionada em suma pela
possibilidade de expressar visões divergentes.
Por último, argumenta Mill em prol da autonomia
individual, sem nomeadamente referir-se a este termo, como o aspecto positivo da
definição de liberdade. O direito à fala, à dissensão, à expressão é fundamental
para a busca individual da felicidade. É responsabilidade moral de cada um valer-se
não da opinião da maioria, mas realizar-se a partir de sua própria ponderação. Afinal,
argumenta Mill, imaginemos quão triste cenário nasceria a nossa frente se
apenas a opinião vigente, arraigada na absoluta maioria, servisse de base e
princípio orientador na busca por nossos sonhos e desejos?
O valor fundamental da liberdade de expressão
está associado, portanto, a uma finalidade ética e moral, qual seja, a
substituição de opiniões equivocadas por outras que sejam corretas, ao
aperfeiçoamento daquilo que está ruim. A ignorância nunca é um bem em si mesmo
e manter-se voluntariamente nesta escuridão é um ato desalentador e covarde. A repressão
à ideia diferente é fenômeno representativo deste medo do diferente e da perda
de poder. As nossas certezas, que devem constituir as bases de nossa conduta
individual e social, são mais fortes e seguras quando testadas contra todas as
teses opostas. Entregar-se à censura é só mais uma prova da rendição face à
falibilidade da “natureza” humana, aspecto que nos diz que o erro é mais comum
e nocivo à nossa existência do que orientar-se por uma máxima que tenha se
provado correta após a submissão ao exame racional e ao livre debate.
Acostumar-se ao erro e à inverdade não é senão abrir mão da possibilidade do
melhoramento de si mesmo e de uma sociedade inteira: indivíduos, povos e nações
apenas se libertam e são mais livres de seus preconceitos e utopias com o uso
da crítica e da razão.