Num
primeiro momento pode causar estranheza ao leitor o título deste ensaio, o qual
associa numa única sentença dois termos considerados, na ciência política, como
antagônicos e que exprimem sentidos de natureza diferentes. O autor assume, humildemente,
que talvez possa estar em vias de
incorrer em ledo engano ao ultimar o termo, porém resguarda-se e lança-se mão
de mostrar ao leitor as razões que o animaram por esta escolha.
Com efeito, emprega-se o termo “golpe” à
medida que visa, sobretudo, à deposição de um governante e chefe político por
vias que não encontram legitimação institucional. De caráter abrupto e freqüentemente
associado historicamente ao ponto de partida da instauração de regimes
autoritários e despóticos, esta deposição é levada a efeito quando as regras constitucionais
ou direitos políticos que conferem a legitimidade ou legalidade de certo corpo
civil são tomados como empecilhos para os anseios de poder de um determinado
grupo, partido ou colégio eleitoral. Neste sentido, o discurso fortemente
crítico e polarizados aos adversários da luta política floreia-se com um senso
ou noção de dever moral para com uma população de particularidades e
características bem definidas - quer dizer, um senso moral que obriga seu
detrator a tomar-se como o possível herói e protetor do povo, nação ou democracia
real. Em resumo, o que bem caracteriza um “golpe” é a ação de tomada de poder
resultante de meios não prescritos no códice legal de determinada organização e
que, por isto mesmo, não se origina dos meios considerados legítimos por este
ordenamento para a escolha do governante e para a condução dos negócios
privados e coloca por terra o conjunto de forças escolhido de forma legítima
pelo eleitorado ou pelo respectivo órgão legislativo.
Em forte oposição ao conceito “golpe”, a
democracia, que possui margem imensurável de discussões e controvérsias acerca
de sua natureza, funções e condições de existência, enquanto regime político
encontra seu fundamento no sufrágio e na decisão livre de seus cidadãos. Neste
regime, a origem do poder reside no indivíduo, e é através da decisão da
maioria do eleitorado, do sufrágio efetivado esporadicamente entre intervalos
previamente definidos e segundo normas, direitos políticos e leis
constitucionais asseguradas, que se constitui o poder executivo e boa parte dos
magistrados que exercem funções importantes na administração deste corpo
político e burocrático.
Nas formas de governo nas quais esta estrutura
ascendente de poder é o fator determinante para a manutenção do poder político,
as vias institucionais, representadas pelo aparato jurídico e pelas Casas do
Legislativo, além de permitirem e garantirem que o verdadeiro poder resida e
seja exercido em nome de seus cidadãos, detém em si a peculiaridade de
constituir barreiras ao exercício das funções do representante do eleitorado e
assim conferir uma esfera segura de independência, autonomia e liberdade a cada
cidadão. Dentre as limitações ao chefe político que são estabelecidos por todo
este aparato, o direito a cada um de possuir sua propriedade, orientar-se segundo
seus próprios objetivos, valores e vontades, poder resguardar-se do
constrangimento ou do uso ilegal da força por parte de terceiros e exprimir seu
próprio pensamento são garantias fundamentais à sua manutenção. O direito
formal, orientado segundo o intuito de promover a justiça por meio da
imparcialidade nas decisões públicas , é também, aqui, o princípio orientador
para que as condições da vida civil sejam mantidas e do qual diversas outras
leis e máximas são deduzidas e afirmadas.
Pois bem. Finalizado este percurso, necessário
para as conclusões que hão de advir com este ensaio, mas que em pouco convergiu
para atenuar o embaraço do leitor, introduzo o fato que me conduz a esta
empresa: a reprovação ampla de boa parte dos partidos de esquerda no Brasil, em
rede nacional, a um possível processo de impeachment da presidente Dilma
Roussef, deposição esta considerada “golpe” e incentivada por uma direita
anti-democrática e opressora.
Afirmam
estes grupos que a mera tentativa de depor Dilma Roussef viola a mais elementar
condição da democracia: a soberania do povo. Candidata eleita em sufrágio
legítimo, tem suas funções e poderes derivados do povo que a elegeu, e que nenhuma
manifestação, grupo de oposição ou discurso contrário é capaz de tirar a
legitimidade de seu governo. Por conseguinte, um processo de impeachment, ainda
que conforme às jurisdições da constituição, não soa razoável à “vontade do
povo”.
Contra esta argumentação elejo os pontos a
seguir – eis a razão deste ensaio -: como já dito inúmeras vezes em outras oportunidades
neste blog, não é tão-somente o sufrágio que confere existência á democracia.
Outros aspectos devem ser observados, pelos cidadãos e pelas estruturas de
limitação às decisões políticas, para que um regime possa ser considerado como
tal. Os direitos essenciais, políticos e civis devem ser assegurados; a
corrupção, falta de transparência pública e as irresponsabilidades com as propriedades
dos pagadores de impostos devem ser frontalmente combatidas. A constituição
deve ser observada, e a liberdade de cada cidadão deve ser seu fim máximo.
Quanto ao povo, vale ressaltar que tal
conceito trata-se antes de uma figura de linguagem ou de um termo de inexistência
real e sentido oblíquo. O que, de fato, assegura o resultado de uma eleição é a
maioria dos votantes. As diferenças de convicções, valores ou opiniões, não
importa a quais áreas estejam voltadas, entre os indivíduos que compõe todo
este eleitorado é quase tão extensa quanto é numerosa a população brasileira. É
impossível estabelecer qualquer senso ou característica unificante entre todos
os cidadãos em termos de preferência, objetivos de vida ou interpretação da
própria existência. A única qualidade que os une num único e inequívoco
conglomerado organizado é o fato de pertencerem à República Federativa do
Brasil.
Assim sendo, a principal consternação do autor
defronte à propaganda partidária das legendas mencionadas refere-se ao fato de
estas serem coniventes, ao fim e ao cabo, com uma presidente e um partido que tiveram
suas contas de campanha rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União, num forte
indício de que recursos de vultuosa quantia foram retirados ilegal e
ilegitimamente de uma empresa estatal para que alianças políticas fossem
consolidadas e processos legislativos ou judiciários fraudados pela
substituição da imparcialidade pelo alinhamento ideológico nos processos democráticos.
Soa também desonroso ao autor uma certa defesa de um chefe executivo que
promoveu um dos maiores calotes aos próprios bancos públicos, descurando por
completo de qualquer responsabilidade fiscal e desrespeitando num grau
assombroso o cidadão pagador de impostos que alimenta, muito contra a própria
vontade, uma máquina estatal inchada e corrupta.
Afigura-se trágico ao autor, por
fim, o apoio concedido a um governo que manifesta animosidade e empréstimos de
recursos financeiros a regimes ditatoriais latino-americanos e que age como se
tivesse estado, todo este tempo, imune ou acima da própria lei que lhe serve de
amparo e de limitação, utilizando por este meio as instituições da República
para proteger e garantir todo seu poder político e reduzir com isto as nossas
liberdades. Qualquer processo de impeachment que possa sobrevir no futuro,
portanto, quanto a atual presidente não apenas é legal, visto que é prescrito
em lei, como também faz-se legítimo, dado que até mesmo sua popularidade ou
base moral esgotaram-se de relevância na disputa política. Tudo isto traz ao
autor severas dúvidas quanto a realmente quem tem por anseio subverter a
democracia e fazer do próprio arbítrio a medida de justeza de suas ações.